Com perdão à pena de multa, indulto de Lula beneficia egressos que têm dívidas na justiça

Pessoas que já cumpriram pena mas que ainda estão com multa em aberto podem ter problemas com regularização de documento e até para conseguir emprego; decreto publicado nesta sexta (22) tem “olhar social”, segundo professora

Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

O indulto natalino concedido pelo presidente Lula (PT) em seu terceiro mandato, nesta sexta-feira (22/12), pode beneficiar egressos do sistema prisional que ainda estejam com dívidas na justiça.

O decreto, que é assinado pelo presidente todo o ano próximo às festividades do Natal, é um tipo de perdão judicial e é concedido de forma coletiva a todos que preencham as características prescritas no texto. Isso não significa que as pessoas são liberadas das prisões automaticamente, por exemplo. É preciso fazer uma solicitação no tribunal de justiça competente ao processo da pessoa, que avalia se o caso se adequa ou não ao decreto.

No caso do indulto proferido neste ano, só vale para casos que já tenham transitado em julgado para a acusação, ou seja, quando o Ministério Público não pode mais recorrer da sentença. Uma das novidades foi o perdão à pena de multa que ainda não tenha sido quitada por pessoas que foram condenadas, “independentemente da fase executória ou do juízo em que se encontre, aplicada isolada ou cumulativamente com pena privativa de liberdade”.

O valor dessa multa também não pode ser superior “ao valor mínimo de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, estabelecido em ato do Ministro de Estado da Fazenda”, ou seja, não pode ser superior a R$ 20 mil. Esse é o valor que o poder público considera o mínimo relevante para abrir uma ação judicial para que a pessoa pague dívidas fiscais.

O decreto também considera que mesmo se o débito da multa for maior, são perdoados aqueles que “não tenham capacidade econômica de quitá-la”. Esse é um entendimento que segue o que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu em 2021.

As condições do indulto de Lula têm um viés social, afirma a professora de direito penal e processo penal do curso de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Maíra Zapater. “É bastante interessante do ponto de vista da política criminal e de assistência à população egressa essa previsão, porque o não pagamento da multa impacta na vida da pessoa egressa. Ela pode até ter cumprido direitinho a pena privativa de liberdade, mas não ter conseguido quitar a multa. Vale lembrar que a pena de multa é uma pena cumulativa para a maior parte dos crimes que levam ao encarceramento, que é tráfico [de drogas] e crimes contra o patrimônio, tanto um como o outro têm a pena de multa prevista”, analisa.

De janeiro de 2020 a maio de 2021, a Defensoria Pública de São Paulo localizou 4.529 processos de cobrança de multa em que representava egressos. Com exceção de 526 que não possuíam informações de valores a serem cobrados, 65% dos processos tinham valor de ação de até R$ 1 mil. 53% das cobranças não passavam de R$ 500, como a Ponte mostrou.

Em 355 processos, a Defensoria conseguiu informações sobre o perfil dessas pessoas: 69,9% delas trabalham, 55% têm filhos, 70% têm o ensino fundamental completo ou incompleto e 51,4% informaram que recebiam por mês até R$ 1 mil. As profissões mais recorrentes eram de autônomo, pintor, ajudante, servente de pedreiro, auxiliar de serviços gerais e mecânico. 73,1% informaram que recebem por diária entre R$ 50 até R$ 100. A maioria (96%) não possuía depósito em banco, imóveis (95%) nem veículo (92%) para quitar o débito.

O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) também identificou perfil semelhante em um mutirão carcerário de 241 egressos da capital paulista em dezembro de 2022, indicando que 79% dessas pessoas são negras.

Desde 1996, a pessoa que não paga esse débito não pode ser presa por isso, no entanto, acaba tendo dificuldades para se ressocializar. Ela não consegue emitir uma certidão negativa de antecedentes criminais, a pena continua aparecendo como “em aberto”, pode ter dificuldades para conseguir um emprego, além de impossibilitar a obtenção ou regularização do CPF e do título de eleitor.

O IDDD comemorou o indulto neste sábado (23). “A decisão representa um passo importante para enfrentar um dos maiores empecilhos para a retomada da vida de pessoas sobreviventes do cárcere”, disse em nota, sinalizando que a dívida não quitada “acaba por obstruir o acesso a serviços essenciais, como ser titular de um serviço residencial, de uma conta bancária ou de uma matrícula em instituições de ensino superior”.

Maíra Zapater destacou que os dois últimos governos não tiveram a pena de multa previstas no indulto. “O perfil dos indultos do governo Bolsonaro eram muito direcionados para policiais, agentes das forças de segurança, o que dá a cara do governo. O indulto é um ato político, é concedido pelo chefe do Executivo, então é interessante essa perspectiva, o quanto ele traz características daquele momento político. Se a gente lembrar do indulto de Natal do Temer, atingiu vários condenados por corrupção”, aponta.

A professora também enfatiza outros públicos que foram beneficiados com o perdão da pena. “Pessoas em situação de saúde, [com transtorno] do espectro autista, que é a primeira vez que me lembro de ver, tem hipóteses com relação às mães. Está bem restritivo quanto aos tipos de crimes, mas tem um olhar social interessante.”

Além dos egressos que podem ser beneficiados com o decreto deste ano, é importante lembrar que o indulto é apenas para pessoas que tenham sido condenadas e não tenham cometido crimes com violência ou grave ameaça. Nesse escopo, estão proibidos crimes de tortura, violência de gênero, homicídio, tráfico de drogas, entre outros. O decreto também veda aplicação para líderes de facções criminosas e presos que estejam em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), o mais gravoso para sentenciados.

Por isso, outra novidade do decreto que tem chamado a atenção é de que o indulto não se aplica a quem foi condenado por crime contra o Estado Democrático de Direito, com relação aos crimes de “negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo” e “destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”, ambos artigos incluídos em 2021 no Código Penal, com penas que variam de dois a oito anos de prisão.

Para Zapater, como isso vai ser aplicado aos condenados pelos atos de 8 de janeiro deste ano vai depender da intepretação de cada caso. “Muitos dos crimes que foram praticados ali, do que a gente tem acesso de vídeo, tudo o que foi muito veiculado, não são crimes necessariamente com violência ou grave ameaça à pessoa. Então teria que pensar como vai ser a interpretação disso e se enquadra em uma das hipóteses ali de restrição de concessão desse benefício”, explica.

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Outro ponto é que as condenações pelos atentados de 8 de janeiro aos prédios dos Três Poderes podem ainda não ter transitado em julgado, então o indulto também não se adequaria por esse motivo.

Além disso, o indulto não tem a ver com as saídas temporárias, as chamadas saidinhas, que é um direito previsto na Lei de Execução Penal e é concedido para pessoas presas em regime semiaberto e que tenham bom comportamento para que possam visitar seus familiares, geralmente nos feriados, e que retornam às penitenciárias depois.

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