Hildebrando Simão Neto, 24 anos, estava em casa com a família quando PMs invadiram o local no âmbito da Operação Escudo. Jovem tem doença que pode levar a cegueira e está internado
O jovem Hildebrando Simão Neto, 24 anos, estava em casa com a família na tarde de quarta-feira (7/2), no bairro Parque São Vicente, em São Vicente, litoral de São Paulo. Como de costume, o café da tarde estava sendo servido por volta das 18h30. Do quarto, Neto, como é chamado carinhosamente, questionou: “Está pronto o café?”. Com a resposta positiva, ele foi convidado a se juntar ao restante dos familiares, mas não deu tempo. Policiais militares integrantes das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) invadiram o local, segundo o relato de parentes.
A Ponte conversou com familiares e amigos de Hildebrando que pediram sigilo por medo de represálias. Eles contam que cerca de 10 policiais entraram na casa “já com a mão na nossa cara, falando: não grita, sai, sai”, disse um parente. Ao menos nove pessoas estavam no imóvel, entre elas três crianças.
Parte da família foi retirada de casa pelos policiais, mas Hildebrando e o amigo que o visitava, não. Os parentes contam que começaram a gritar avisando que o jovem tem deficiência visual. “Cuidado para ele não se assustar, não façam besteira com ele”, suplicaram. Em meio aos pedidos desesperados, eles ouviram os disparos.
Na sequência, um policial teria saído da casa e perguntado aos colegas se estava ferido. A atitude revoltou a família, que novamente disse aos agentes que Hildebrando tinha deficiência visual. O jovem, conforme parentes, tem ceratocone (doença que pode levar à perda da visão). “Como ele deu tiro? Ele é cego!”, exclamou uma familiar. Um vídeo registrou o momento dos disparos dentro da residência (veja a abaixo).
Na sequência, ambulâncias do Samu chegaram ao local e a família entendeu que Hildebrando e o amigo estavam feridos. O jovem foi levado ao Hospital do Vicentino, onde passou por cirurgia de emergência. A família conta que ele teve o baço e parte do intestino retirados. Na tarde desta quinta-feira (8/2), ele foi submetido a um novo procedimento cirúrgico que até às 16h ainda não havia sido finalizado. A unidade de saúde não forneceu um boletim médico sobre o caso.
O amigo de Hildebrando foi levado ao Pronto Socorro Central, onde foi atestado o óbito. O jovem tinha 24 anos e a dupla era amiga desde a adolescência. Na tarde de quarta (7), eles estavam no quarto conversando e ouvindo música, segundo familiares.
A versão da família difere da apresentada pelos policiais da Rota na Delegacia de São Vicente. Segundo os depoimentos dos PMs Nielson de Araújo Guedes e Tiago Morato Maciel, as equipes se deslocaram ao local após receberem uma denúncia anônima de que no local estariam abrigadas pessoas ligadas ao tráfico de drogas. Armas e entorpecentes também seriam depositados ali.
Sem mencionar qualquer mandado que autorizasse a ação, os policiais entraram na casa descrita por eles como uma “residência de habitação coletiva” e que “estava com a porta aberta, razão pela qual entraram no imóvel”.
Buscas sem mandado judicial são lícitas apenas quando houver flagrante de delito ou para prestar socorro. Isso tem como base o princípio da inviolabilidade previsto na Constituição Federal e tem respaldo em decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) que já anularam condenações baseadas nesse tipo de abordagem.
Além disso, a família rebate a afirmação de que se tratava de uma residência coletiva e diz que ali moravam Hildebrando e parentes.
Os PMs contaram que revistaram parte das pessoas que estavam no imóvel e prosseguiram na incursão pela casa. Ao entrar em um dos cômodos, Hildebrando supostamente apontou uma pistola e foi atingido por dois tiros de fuzil disparados por Morato e um por Nielson.
Ao perceberem que uma pessoa estava na casa, os policiais teriam ido ao seu encontro, momento em que teriam visto o amigo de Hildebrando, supostamente armado. Sem acatar a ordem de rendição, a dupla disparou mais uma vez. Ele foi morto com dois tiros de fuzil Morato e um de Nielson.
Os PMs relataram ainda que, em buscas pela casa, teriam apreendido um fuzil embaixo da cama do cômodo onde Hildebrando foi encontrado. A família nega que as armas fossem do rapaz. Apesar da denúncia inicial citar um depósito de drogas, nenhum entorpecente foi apreendido pelos agentes.
Prisão preventiva
Mesmo internado em estado grave, Hildebrando teve pedido de prisão preventiva feito pelo delegado Lucas Santana Dos Santos, da Delegacia de São Vicente. Santos pediu exame residuográfico nos policiais militares e também na dupla de amigos. Os fuzis dos PMs e as armas apreendidas no local também devem ser periciados, porém não solicitou as imagens das câmeras nas fardas dos policiais.
A prisão em flagrante de Hildebrando foi convertida em preventiva pelo juiz André Luis Maciel Carneiro, da Vara de Plantão, em Santos. Sem a presença de Hildebrando, que já estava hospitalizado, e nem da promotora de Justiça Mariana da Fonseca Piccinini, que “não compareceu o indiciado, pois se encontra internado em unidade hospitalar por ser alvejado em troca de tiros”, Carneiro prosseguiu a audiência de custódia.
Ao juiz, foi apresentado o histórico negativo de antecedentes criminais do jovem, que nunca tinha sido preso. Mesmo assim, ele justificou a prisão preventiva dizendo que o “investigado não comprovou atividade lícita e residência fixa, a revelar que a chance de fuga é relevantíssima”, escreveu na sentença.
Paixão por cantar
Hildebrando é pai de dois filhos de quatro e três anos. Segundo a família, em razão da deficiência visual, ele saía de casa sempre acompanhado por alguém e costumava ficar muito em casa.
A família estava com processo para que o jovem recebesse benefício do Estado em função da impossibilidade de trabalhar. O exame da perícia, segundo os familiares, estava marcado para os próximos dias.
Recentemente, ele ganhou dos parentes um notebook onde trilhava os primeiros passos rumo ao sonho de ser trapper. Cantar é uma das paixões do jovem. No momento em que foi atingido, ele estava justamente fazendo o que mais gosta.
“Ele estava no quarto porque adorava cantar, sempre ficava fazendo vídeo, cantando as musiquinhas que ele inventava. Estava com o amigo ajudando ele”, conta uma parente.
Operação Escudo
Mortes e casos de violência contra policiais de serviço e folga motivaram a deflagração de novas operações Escudo em São Paulo desde janeiro. A ação ocorre sempre que há registros de óbitos desses agentes públicos, mas é taxada por especialistas como atos de vingança.
Na Baixada Santista, a ação foi intensificada após a morte do policial da Rota Samuel Wesley Cosmo, em Santos, no último dia 2. Ele estava em patrulhamento quando foi atingido no olho.
De lá para cá, ao menos 10 mortes ocorreram após trocas de tiros. Entre elas, o catador de latinhas José Marques Nunes da Silva, 45 anos. Ele foi morto no Jóquei Club, em São Vicente. A família denunciou à Ponte que José implorou para não morrer e contesta a versão de que ele teria atirado contra os policiais.
O que dizem às autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) questionando os apontamentos e feitos ao longo da reportagem e solicitando entrevistas com os PMs, o delegado, o promotor e o juiz do caso. Não houve retorno.