Delegado deixa de apreender armas de PMs que mataram pedreiro em operação na Baixada

Atitude de delegado infringe Código de Processo Penal e indica “uma carta branca para a polícia matar”, de acordo com Cássio Thyone, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; segundo testemunhas, policiais executaram Alex em casa e lavaram cena do crime

O pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30 anos | Foto: Arquivo pessoal

Após matar o pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30 anos, na casa onde ele vivia, na comunidade do Saboó, em Santos (SP), na última terça-feira (20/2), o sargento Júlio César Teixeira e o cabo Everton Kelvin Soares Damasceno foram dispensados de entregar as suas armas na Polícia Civil para serem periciadas, contrariando o procedimento usual para ocorrências policiais com morte.

O delegado Leonardo José F. Piccirillo, do 5º DP de Santos, da Polícia Civil, permitiu que a dupla de policiais militares permanecesse com as armas utilizadas na ação, alegando que ambos apresentaram “versões incontroversas” sobre o caso e que os PMs necessitavam do armamento para o seu dia a dia. “Face às versões incontroversas dos policiais, as quais indicam a origem dos disparos, deixou a autoridade de proceder à apreensão das armas utilizadas, acrescentando-se ao fato de que tais equipamentos são de uso imprescindível para suas funções diárias”, escreveu o delegado no B.O. (boletim de ocorrência).

Alex foi a 29ª das 32 pessoas mortas pela PM ao longo de 20 dias da operação especial de policiamento decretada pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) na Baixada Santista em reação à morte de três policiais. Ao contrário do delegado Piccirillo, a família afirma que o pedreiro foi executado.

Ouvido pela Ponte, Cássio Thyone, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (RBSP) e perito criminal aposentado da Polícia Civil do Distrito Federal, afirma que o delegado infringiu a lei ao deixar de recolher as armas usadas em uma morte que a Polícia Civil tem a obrigação de investigar. O perito lembra que o artigo 158 do Código de Processo Penal, que trata das perícias em geral, determina que o agente público tem a obrigação de preservar os vestígios relacionados a uma possível infração penal.

Neste caso, a não apreensão do armamento prejudica a produção de prova técnica, segundo o perito. “O B.O. é uma demonstração da carta branca que nós estamos dando para a polícia matar”, aponta Cássio.

“O prejuízo aqui é o seguinte: nós temos que acreditar unicamente em uma versão, a do policial?  No próprio boletim de ocorrência, o registro mostra que as armas não serão apreendidas porque à sociedade não interessa que seja produzida uma prova técnica que pode refutar, mas ela pode também estar alinhada com a declaração do policial. Não é isso que está em jogo. A prova técnica não é criada para concordar ou em desacordo com nenhuma versão. Ela foi criada para demonstrar a verdade de forma técnica”, conclui Cássio Thyone.

Morto em casa

Segundo testemunhas, no dia em que foi morto, Alex estava sozinho em casa quando escutou uma batida na porta. “Quem é? Quem está aí?”, ele teria questionado, segundo o que foi ouvido pelos vizinhos.  Não houve resposta, mas o silêncio durou pouco. Minutos depois, os vizinhos ouviram um som alto de sirenes competindo com o barulho de disparos de arma. Alex teria gritado. 

Baleado pela polícia na barriga, o pedreiro foi levado pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) até a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) Central. Lá, três horas após a internação, a famíia obteve a confirmação que ele havia morrido.

Segundo o boletim de ocorrência, o sargento Júlio César Teixeira admitiu ter disparado com um fuzil uma vez. Já o cabo Everton Kelvin Soares Damasceno atirou três vezes com uma pistola .40. A dupla contou que tentou abordar Alex em uma viela, mas ele teria se escondido em sua residência. Ao entrarem no local, teriam sido recebidos a tiros.

Um vídeo, revelado pelo UOL e ao qual a Ponte teve acesso, mostra a casa de Alex, logo após sua morte, sendo supostamente lavada diante dos policiais militares. A família diz que a limpeza ocorreu antes da perícia chegar ao local.

Nas imagens, é possível ouvir uma mulher perguntando: “Tem que levar a casa, é?”. Um policial faz um aceno positivo com a cabeça. A perícia no local é mencionada no boletim de ocorrência de forma sucinta, informando apenas que os peritos recolheram um número não especificado de cartuchos de armas de fogo no local.

Os policiais alegaram terem apreendido na casa uma pistola, um rádio, um celular e uma quantidade não especificada de drogas: em vez de identificar o peso das substâncias, o boletim fala em 616 “porções” de crack, 490 “porções” de maconha e 205 “porções” de cocaína.

A Ponte também teve acesso à imagens que mostram a casa de Alex logo após a ação policial. É possível ver paredes com marcas de tiro e sangue no chão. Cartuchos também aparecem nas imagens.

A família de Alex ainda não foi ouvida pela Polícia Civil. Eles acreditam que, para além dos tiros, ele também tenha sido torturado. Os indícios, segundo parentes, são marcas de ferimentos pelo corpo e um fio desencapado encontrado na casa logo depois da saída da polícia.

Familiar e brincalhão

Alex deixou Juiz de Fora, em Minas Gerais, quando ainda era criança. Tornou-se adolescente e adulto em São Vicente, no litoral paulista. Aos 14 anos, decidiu que queria ser jogador de futebol. 

O mais perto que chegou de realizar o sonho foi passar por uma peneira na Associação Atlética Portuguesa. Sem dinheiro para bancar deslocamentos e outros custos da vida de atleta, Alex mudou a rota. Seu objetivo de vida passou a ser dar conforto para a mãe. 

Passou a trabalhar para ajudar nas despesas. Era o filho do meio na família formada por três filhos. Há menos de um ano, perdeu o pai. “Foi uma tristeza. A gente nem se recuperou direito do primeiro luto”, conta uma familiar.

Era amante de filmes de comédia. Alex se divertia assistindo com frequência Dwayne Johnson dar vida a um agente da CIA que resolve casos importantes, mesmo que de jeito atrapalhado, no filme Um espião e Meio. Costumava imitar o personagem hollywoodiano nas conversas para divertir amigos e familiares.

Para se sustentar, atuou em supermercados, empresas de zeladoria e como ajudante de pedreiro, função que manteve até o fim da vida nos bicos que fazia. Um dos últimos trabalhos foi na cozinha de uma pizzaria, função interrompida por uma doença que provocou bolhas nas mãos e pés. 

Segundo a família, mesmo com tratamento, ele estava debilitado. As mãos chegaram a ficar em carne viva e os pés doíam tanto que Alex tinha dificuldade para andar. No dia em que foi morto, ele tinha reclamado de dor e estava descansando em casa, relatam familiares.

O pedreiro tinha planos de deixar a região. A ideia era se mudar para Minas Gerais. Não deu tempo.

Escudo ou Verão: operação vingança

A Polícia Militar tem intensificado a atuação na Baixada Santista desde 2 de fevereiro, quando o sargento Samuel Wesley Cosmo, 35 anos, membro das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), uma força especial da PM de São Paulo, foi morto em serviço. 

Na ocasião, já estava em andamento na região uma Operação Escudo, nome dado às ações organizadas de vingança instituída pelo governo Tarcísio para intensificar o policiamento em determinadas regiões após a morte de policiais. 

As Operações Escudo são ações organizada de vingança instituída pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) para intensificar o policiamento em determinadas regiões após a morte de policiais. Criticadas por moradores de bairros pobres e por ativistas de direitos humanos pelas práticas de execuções, torturas e ameaças, as operações já foram denunciadas duas vezes na Organização das Nações Unidas (ONU) e também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Apesar de ter anunciado o reforço no policiamento com o nome de Escudo, o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, mudou de discurso e passou a dizer que as mortes e ações atuais estariam no âmbito da Operação Verão — que acontece tradicionalmente entre dezembro e fevereiro no litoral paulista. Contudo, em coletiva de imprensa, Derrite admitiu que o modus operandi é o mesmo nas duas operações.

A confusão em torno do nome da operação tem causado dificuldades até mesmo para o controle das ações. Um dos promotores que integra um grupo criado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) para atuar na fiscalização dessas ações destacou que é difícil delimitar a abrangência de cada uma das operações em andamento. 

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“Uma dificuldade do trabalho que temos agora é separar quais mortes aconteceram após as mortes dos policiais e quais foram decorrentes de um patrulhamento, que não fazem parte da operação. Se na operação do ano passado tinha uma delimitação mais clara, que foram 600 policiais designados para atuar na Operação Escudo e as ações eram descritas como parte da Escudo, agora nós temos que nos separar para entender cada morte”, disse Danilo Orlando Pugliesi, em entrevista à Ponte

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) pedindo entrevista com o delegado Leonardo José F. Piccirillo, uma posição sobre o caso de Alex e questionando os procedimentos adotados pela Polícia Militar e pela Polícia Civil. Não houve retorno. 

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