Desembargadores admitiram que procedimento não seguiu Código de Processo Penal, mas mantiveram prisão de João Vitor, na cadeia há 3 anos por roubo, extorsão e corrupção de menores. Mãe diz que filho estava trabalhando no dia do crime
A auxiliar de limpeza Maria Costa, 46 anos, tenta há três anos provar a inocência do filho João Vitor Costa Galindo da Silva, 22. O entregador foi condenado em 2021 por roubo, extorsão e corrupção de menores. No dia do crime, diz Maria Costa, João estava trabalhando. “Eu quero meu filho fora daquele lugar, ele é inocente”, fala. A esperança da mãe foi abalada com uma decisão da 27ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), publicada no final de abril. Mesmo admitindo que o reconhecimento pessoal feito com o jovem não seguiu o que pede o Código de Processo Penal (CPP), os desembargadores mantiveram João preso. A pena inicial de 12 anos também foi aumentada para 18 anos pelos magistrados. “Meu coração está amargurado”, diz Maria.
A Ponte contou a história de João Vitor no ano passado. Ele foi condenado por um roubo que ocorreu em 27 de julho de 2021, no Tatuapé, na zona leste de São Paulo. A data marcava o segundo dia de trabalho do jovem como entregador em uma hamburgueria. Em entrevista à reportagem, o chefe de João confirmou que ele trabalhou naquele dia. “Ele foi trabalhar normalmente, não teve nenhuma ausência além de meia hora, vinte minutos, que era o tempo das entregas. Entrou às 18h e saiu meia-noite”, contou Matheus Silva dos Santos, 28.
João passou a ser investigado quando a Polícia Civil encontrou no Facebook de um suspeito uma foto em que ele aparecia. A imagem mostrava João em uma festa acompanhado por outras pessoas. A vítima o reconheceu na imagem, que foi apresentada, segundo os investigadores, com a de outros suspeitos. Contudo, quando o reconhecimento pessoal foi feito, não se seguiu o que pede o artigo 226 do CPP.
Ao invés de estar acompanhado por pessoas semelhantes a ele, João estava sozinho quando a vítima fez o reconhecimento. A justificativa foi de que na delegacia não havia pessoas parecidas com ele e a pandemia de Covid-19 também era um complicador.
No acórdão expedido em 29 de abril, o relator Maurício Henrique Guimarães Pereira Filho escreveu que “ainda que tal providência não tenha sido adotada, não se pode olvidar de que a lei não exige que sejam colocadas com o suspeito, indiciado ou réu, pessoas parecidas com ele, mas apenas recomenda que assim seja feito, tanto quanto possível”.
“Nesse sentido, é a orientação jurisprudencial majoritária, que entende prescindível a observância das recomendações previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, não acarretando a nulidade do ato a inobservância, portanto”, completou.
O mesmo magistrado, contudo, recusou o pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) para condenar João e os demais investigados por associação criminosa. Para o desembargador, a foto onde o grupo está junto no Facebook não é prova suficiente para condenação. Guimarães Pereira Filho diz que a investigação não conseguiu provar, para além da imagem, que os jovens se juntaram para cometer novos crimes. “porquanto nenhuma prova há de efetiva associação, estável e permanente, entre os apelantes/apelados réus para a prática de crimes”.
Para a advogada criminalista Débora Roque, esse caráter mais legalista deveria ser aplicado também ao reconhecimento. “Não dá para entender qual o critério, porque eles deveriam ter usado o mesmo crivo para o reconhecimento”, afirma.
Débora diz que a interpretação dada ao CPP como mera recomendação acaba relativizando o direito da pessoa que está sendo reconhecida. “São dois lados extremamente opostos no mesmo tribunal”, afirma.
Ela explica que a pena de João foi aumentada porque os desembargadores deixaram de lado o primeiro entendimento previsto no artigo 71 (que é o de crime continuado). Isso ocorre quando, em uma ação, se pratica vários crimes. Na condenação, o juiz aplicará a pena de só um dos crimes, privilegiando o mais grave.
O crime continuado impõe mais de uma ação ou omissão, dois ou mais crimes da mesma espécie e praticados nas mesmas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.
No caso do João, os desembargadores se posicionaram contrários a isso. Eles somaram as penas (aplicando o artigo 69 do Código Penal). Assim, as penas dos três delitos (roubo, extorsão e corrupção de menores) totalizaram 19 anos.
Relembre o caso
O sequestro aconteceu no Tatuapé, em 27 de julho de 2021. João está preso desde setembro do mesmo ano, quando foi determinada a preventiva dele.
Uma perícia feita no carro da vítima encontrou digitais de um adolescente. Na conta dele, a Polícia Civil encontrou uma foto de João. Os dois estavam numa festa e eram amigos no Facebook. João usava um topete no cabelo, mesma característica que a vítima descreveu como sendo de um dos envolvidos no crime.
O caso foi investigado pela 3ª Delegacia de Repressão às Extorsões com Restrição de Liberdade. Primeiro foi feito reconhecimento fotográfico, em agosto. O documento fala que mais fotos, além da de João Vitor, foram apresentadas para a vítima.
Em setembro, foi feito reconhecimento pessoal. Apenas João foi colocado para ser reconhecido. A justificativa é que faltavam outras pessoas semelhantes no local e que era pandemia. Um terceiro reconhecimento, agora fotográfico, foi feito em juízo. A vítima novamente reconheceu João.
No dia do sequestro, João saiu de casa por volta das 17h, diz Maria Costa. O turno dele como entregador começa às 18h e se estendia até a meia-noite. A mãe fala que não houve nenhuma reclamação quanto às entregas. Isso foi confirmado pelo dono da hamburgueria em depoimento e em entrevista para a Ponte.
Depois do trabalho, o filho foi tentar trocar uma motocicleta em São Miguel Paulista, bairro no extremo-leste de São Paulo. Ao chegar lá, o veículo já tinha sido vendido. A mãe tem prints de conversas do filho com o vendedor. A mensagem mostra o envio de mensagem pelo João às 00h33min. Ele manda uma foto de uma rua e pergunta se a pessoa já vendeu a motocicleta.
João chegou em casa por volta da 1h. A mãe já estava dormindo, mas a irmã o viu chegar em casa. Na manhã do dia 28, João fez o registro do filho no cartório.
O adolescente envolvido no sequestro foi até a casa de João no dia 28 para entregar para ele o celular da vítima. A mãe confirma que o filho foi informado de que o aparelho era roubado. Ela confirmou a informação de que João ganhou R$ 150 para desbloquear o aparelho, mas disse que o filho não conhecia a vítima. “Até hoje estou na luta e na busca para provar a inocência do meu filho”, desabafa.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) solicitando entrevista para repercutir o caso. O TJ-SP informou que os magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento.
O MP-SP informou que protocolou recurso especial nesta quinta-feira (9/5), sem explicar o pedido.