Polícia brasileira matou crianças como nunca em 2023, aponta Unicef

Estudo do Unicef e Fórum Brasileiro da Segurança Pública indica que uma a cada cinco crianças e adolescentes assassinados no ano passado foi vítima de ações policiais

Ilustração: Antônio Junião/Ponte Jornalismo

A participação das polícias nas mortes violentas de crianças e adolescentes no Brasil chegou ao nível mais alto no ano passado, quando respondeu por 18,6% do total. Isso equivale a dizer que, em 2023, quase uma a cada cinco crianças e adolescentes assassinados foi vítima de ações policiais. 

São dados presentes no estudo Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que teve a segunda edição lançada nesta terça-feira (13/8).

Leia a íntegra do estudo Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil

Os números mostram que a violência contra crianças e adolescentes no Brasil é epidêmica. Nos últimos três anos, mais de 15 mil crianças e adolescentes (com idade entre 0 e 19 anos) foram vítimas de mortes violentas.

Nesse período, a taxa de homicídios nessa faixa etária caiu, mas o número de mortes em intervenções policiais cresceu. Nos últimos três anos, as mortes de crianças e adolescentes provocadas por policiais passaram de 14% do total de mortes violentas, em 2021, para 17,1% no ano seguinte e finalmente chegaram aos 18,6% do ano passado.

O levantamento também revela que crianças e adolescentes negros são as principais vítimas da violência, inclusive quando os algozes são policiais. A chance de um menino negro de até 19 anos ser vítima de homicídio é 21 vezes maior do que uma menina branca na mesma faixa etária.

Ana Carolina Fonseca, oficial de proteção do Unicef no Brasil, destaca que a cor da pele é um fator de risco para crianças e adolescentes negros em todas as faixas etárias. “Estamos falando de racismo que atravessa todos os sistemas, todas as instâncias”, completa.

Leia também: Polícia matou um adolescente por dia no Brasil em 2022

A primeira edição da pesquisa foi publicada em 2021. Os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação. Os pesquisadores tiveram acesso aos microdados (conjunto de informações detalhadas) dos boletins de ocorrência registrados.

Polícias são mais mortais para adolescentes do que para adultos

Crianças e adolescentes são mais vitimadas pela violência urbana, que é mais mortal dependendo da cor da pele. A taxa de vitimização por 100 mil habitantes para meninos negros é de 33,4 vítimas negras e do sexo masculino. A taxa para meninos brancos é de 8,2. 

As mortes por intervenção policial estão em segundo lugar entre as causas de mortes violentas, atrás apenas dos homicídios dolosos.

Os dados mostram uma interação violenta entre a polícia e adolescentes de 15 a 19 anos. Enquanto a taxa por 100 mil habitantes para pessoas com mais de 19 anos foi de 2,8, na faixa etária dos 15 aos 19 a taxa ficou em 6. 

Ou seja, a taxa de letalidade provocada pelas polícias entre adolescentes de 15 a 19 anos é 113,9% superior à taxa verificada entre adultos.

Gênero importa na adolescência; raça, desde a primeira infância

A pesquisa separou os dados em quatro faixas etárias: 0 a 4 anos, 5 a 9, 10 a 14 e 15 a 19. Apesar da queda no número de mortes no quadro geral, houve aumento em 2023 em algumas faixas etárias (dos 0 aos 4 e dos 5 aos 9).

Os dados mostram que a idade é um fator que interfere no fenômeno das mortes violentas. A partir dos 14 anos, o número de mortos cresceu em relação aos mais novos. 

O estudo também apresenta dados de mortes violentas intencionais segundo idade e gênero. Há certa paridade nas faixas etárias de 0 a 4 anos e 5 a 9. Contudo, nas demais, se sobressaem as vítimas do sexo masculino. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos mortos, 92,4% eram meninos. O gênero passa a ser um marcador principalmente na adolescência.

A cor da pele é um marcador presente desde a primeira infância. A desigualdade racial implica em uma maior chance de crianças negras serem vítimas de violência letal desde que nascem. 

Dos 0 aos 4 anos, negros foram 64,3% das vítimas nos últimos três anos. Nas demais faixas etárias, o percentual foi ainda maior: entre 5 e 9 anos: 71,1%, 10 a 14: 79,5% e 15 a 19: 83,6%. No total, foram 9.328 crianças e adolescentes negros assassinados nos últimos três anos.

Os pesquisadores produziram a taxa de violência letal por 100 mil habitantes para cada recorte de raça e gênero, considerando os dados de 2023. A taxa de homicídios de crianças e adolescentes negros do sexo masculino é de 18,2. Para meninas brancas da mesma faixa etária, é de apenas 0,9. Um menino branco da mesma faixa etária tem taxa de 4,1. 

Para Ana Carolina Fonseca, do Unicef, o racismo interrompe as trajetórias de meninos negros. É algo que se inicia na primeira infância, com a ausência de políticas públicas de acesso à educação, por exemplo. O mesmo ocorre na adolescência e o ciclo termina muitas vezes em violência que vitima esse perfil de adolescentes.

A associação do adolescente negro a um tipo e perigo alimenta e legitima um discurso banalizador “de que está tudo bem se esse adolescente perder a vida”, diz Ana Carolina.

Entre as recomendações apontadas pelos pesquisadores está a adoção de protocolos de controle da força. Um dos métodos tidos como bem-sucedidos por especialistas são as câmeras acopladas a fardas. Em São Paulo, o equipamento é usado desde 2020.

No ano passado, o FBSP e o Unicef lançaram um estudo mostrando que a adoção de câmeras corporais salvou 68 adolescentes de serem mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo

Sergipe, Amapá e Bahia lideram

Outro indicador do estudo do Unicef e Fórum Brasileiro da Segurança Pública é a proporção entre as mortes decorrentes de intervenção policial em relação às demais mortes violentas, dividida por estados. Os dados são de 2023.

Sergipe (36,9%), Amapá (32,2%) e Bahia (31,4%) lideram. Mas os pesquisadores chamam a atenção para os casos de São Paulo e Roraima. Ambos os estados apresentam taxa de letalidade policial de crianças e adolescentes abaixo da média nacional, contudo têm uma proporção de mortes de autoria dos agentes estatais elevada. Isso demonstra que a participação do Estado nas mortes violentas intencionais nessa faixa etária é significativa.  

Isso é, se as polícias de São Paulo e Roraima deixassem de usar força letal, haveria uma queda de 30% no número de crianças e adolescentes vítimas de mortes violentas intencionais.

Vida sem brilho

Uma das vítimas contabilizadas pelo estudo chamava-se Luiz Gustavo Costa Campos, o Peu, um menino de 15 anos que adorava bolo de abacaxi caramelizado e era o xodó de sua mãe adotiva, Maria Josefa da Silva, 42, com quem vivia em Guarujá, na Baixada Santista. Segundo a mãe, o adolescente foi morto pela polícia quando ia ao dentista. A PM diz que o jovem foi flagrado vendendo drogas e reagiu a tiros, mas a família nega.

O adolescente foi uma das 28 vítimas na Operação Escudo, uma ação coordenada de vingança contra moradores de bairros pobres da Baixada, deslanchada no ano passado pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, em resposta à morte de um policial das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota).

Leia também: Operação que matou 56 na Baixada Santista não deve ser última de Tarcísio, diz especialista

Mostrando que o raio da violência policial pode cair duas vezes e até mais num mesmo lugar quando se trata das periferias e favelas, Maria Josefa perdeu outro filho, Matheus Ramon Silva de Santana, 22, também vítima de uma ação da PM. Desta vez, a Operação Verão. Matheus foi um dos 56 mortos por policiais. 

Assine a Newsletter da Ponte! É de graça

“Eu não tenho mais destino. Não tenho mais um direcionamento para saber para onde seguir”, disse à Ponte na época. A morte dos dois filhos, diz, fez a vida perder o brilho.“Mal me curei de um, mal estava amenizado e já me levaram o outro.”

*Com colaboração de Jeniffer Mendonça

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
Inscrever-se
Notifique me de
0 Comentários
Mais antigo
Mais recente Mais votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários

mais lidas

0
Deixe seu comentáriox