Morre Francilene Gomes, pesquisadora e integrante do movimento Mães de Maio

    A ativista buscou respostas sobre o desaparecimento do irmão, Paulo Alexandre, após uma abordagem policial nos Crimes de Maio de 2006, em São Paulo. Fran morreu aos 44 anos em decorrência de um câncer

    Francilene Gomes, pesquisadora em Serviço Social e integrante das Mães de Maio | Foto: Arquivo pessoal

    Doutora em Serviço Social e integrante do Movimento Independente das Mães de Maio, Francilene Gomes Fernandes morreu na último sábado (28/9) aos 44 anos, em São Paulo. Fran, como era chamada pelos amigos, lutou por justiça e reparação em memória do irmão Paulo Alexandre, 23, vítima de um desaparecimento forçado durante os chamados Crimes de Maio de 2006.

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    Fran cursou Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), mesma instituição onde se tornou mestra e doutora na área. Em entrevista concedida à Ponte em 2014, em meio à conclusão do mestrado, Francilene destacou a importância de alguém como ela — periférica e vítima da violência do Estado — pesquisar justamente sobre o tema. “Isso vale uma vida, ou melhor, vale duas vidas, é a minha reação para o fim trágico dos meus dois irmãos”, disse. 

    Juliana, irmã de Fran, foi assassinada aos 17 anos na década de 1990 em um crime que nunca foi solucionado. O mesmo aconteceria com seu outro irmão, Paulo Alexandre. 

    Testemunhas contaram à família que o jovem foi visto sendo colocado com vida em uma viatura das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota), considerada pelo governo paulista como a tropa de elite da Polícia Militar, no dia 16 de maio de 2006, em Itaquera, zona leste da capital. Fran sempre afirmou acreditar que Paulo foi levado por ser negro e ter tatuagem. Até hoje a família não sabe o que aconteceu depois da abordagem.

    Francilene ao lado do irmão Paulo Alexandre, que desapareceu após abordagem policial | Foto: arquivo pessoal

    Naquela semana, outros três jovens da periferia de São Paulo também foram vistos sendo abordados por policiais e nunca mais voltaram. O período marcou a pior crise na segurança pública de São Paulo. 

    O silêncio, a falta de investigação e a ausência de acolhida deixavam Francilene inquieta. “Infelizmente, vivemos em uma sociedade que tende a tolerar certos crimes cometidos pelo braço forte do Estado, a polícia. Muitas pessoas só passam a prestar a atenção na violência policial quando ela atinge alguém próximo e querido”, disse Fran à Ponte em 2014. 

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    Militância

    A morte de Fran é mais uma grande perda para o Mães de Maio. Desde que foi formado, o movimento independente de familiares de vítimas da violência do Estado já enterrou algumas de suas lutadoras. 

    Débora Maria da Silva, uma das fundadoras, lembra com carinho das refeições preparadas por Maria Prudencia, avó de Ricardo Porto Noronha — também morto nos Crimes de Maio. Depois dela, o adoecimento levou Rita de Cássia, Maria Aparecida e Vera Lúcia Gonzaga. 

    “O luto precisa ser cuidado porque ele é adoecedor”, diz Débora. As Mães de Maio militam há quase duas décadas por uma política pública que atenda aos familiares da violência do Estado. O cuidado multidisciplinar é descrito no projeto de lei 2999/2022, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB), que propõe a “Lei Mães de Maio”, um programa de enfrentamento dos impactos da violência institucional e da revitimização de mães e familiares de vítimas de ações violentas da polícia.

    Franciele e Débora Maria da Silva | Foto: Arquivo pessoal

    A proposta está parada na Câmara dos Deputados desde fevereiro do ano passado. “O Estado mata e descarta as famílias inteiras, então a gente precisa continuar gritando”, diz. 

    Fran temia seguir gritando sem ser ouvida. É o que conta a jornalista e ativista por Direitos Humanos Ali Rocha. As duas se conheceram em 2007, quando os Crimes de Maio completavam um ano. Ali conta que durante uma entrevista com Francilene sobre a história de Paulo, a pesquisadora dividiu a angústia que sentia. “O que ela mais temia era não saber nunca o que aconteceu com seu irmão. Estar, como os familiares de desaparecidos da ditadura, por décadas buscando por respostas e justiça”, diz.

    A militância e a pesquisa foram as formas que Fran encontrou para gritar. “Militar em direitos humanos é se doar, ser solidário, respeitar o outro, poder ter empatia. É uma missão e isso a Fran tinha. A sensibilidade com que ela falava com as pessoas, a sensibilidade que ela tinha com as mães, o cuidado com o outro eram impressionantes. E, ao mesmo tempo, ela tinha uma garra imensa”, lembra a psicóloga Marisa Fefferman, integrante de Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.

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    A cineasta e antropóloga na área de Justiça Criminal e Direitos Humanos Natasha Neri se aproximou de Fran em 2018, quando lançou o filme Auto de Resistência em São Paulo. O documentário trata da violência policial no Rio de Janeiro. Fran pediu à cineasta para organizar debates do filme em São Paulo. Os eventos foram um sucesso de público. A doçura de Fran marcou Natasha: “Ela era uma pessoa muito firme, forte, mas também muito doce, muito carinhosa.”

    Doença

    O analista de suporte Alexssandro Fernandes Siqueira, 47, foi casado com Fran por 22 anos. O marido esteve presente em toda a trajetória acadêmica da pesquisadora, desde a graduação como bolsista na PUC-SP até a conclusão do doutorado na mesma universidade. 

    Grávida de Noah, seu terceiro filho, Francilene descobriu tumores na coluna, pulmões e bacia. O tratamento começou quando a criança nasceu e seguiu por quatro anos, até o fim da vida da pesquisadora.

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    Nesse período, recebeu o retorno positivo da Cortez Editora, que transformou sua pesquisa de doutorado no livro Tecendo Resistências — Trincheiras contra a violência policial (2024). Parte da revisão da obra foi feita por Francilene quando já estava internada. 

    Este ano, durante um período de melhora, Fran chegou a ficar 32 dias em casa. “Ela voltou andando para casa. Uma guerreira”, lembra o marido. A oportunidade de ficar perto dos três filhos e poder acompanhar a rotina da casa trouxe alento para a pesquisadora. Alessandro conta que os filhos, principalmente os mais novos, ficaram chateados quando a mãe precisou voltar ao hospital. “Em casa todo mundo acreditava que com fisioterapia e os tratamentos ela ia se recuperar”, conta.

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    Bastante debilitada, Francilene não conseguiu lançar o livro que consolidou sua pesquisa, Alexssandro pensou em organizar o lançamento dentro do hospital AC Camargo, em um espaço improvisado. Não deu tempo. 

    Francilene deixa, além dos filhos Júlia, 22, Sophia, 11, Noah, 4, e o marido Alex, seus pais, Francisco, 77, e Maria, 74. 

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