Francilene: ‘Desaparecimentos não estão nas estatísticas, apenas em nossos peitos’

Depois que o irmão de Francilene Gomes Fernandes desapareceu nos Crimes de Maio de 2006, ela fez da história dele o tema de seu mestrado e a bandeira de sua luta por justiça

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Para marcar os 15 anos dos Crimes de Maio, a Ponte publica 15 perfis de mulheres que perderam familiares para a violência policial, originalmente publicados no livro “Mães em Luta”, organizado por André Caramante e editado por Ponte e Mães de Maio em 2016

O sofrimento da família de Francilene Gomes Fernandes, hoje com 40 anos, foi o que a moveu. Dois irmãos de Fran, como os amigos a chamam, foram vítimas da violência na periferia da zona leste de São Paulo, onde eles nasceram e viveram.

Sobrou apenas Fran. Mas ela foi à luta e, a partir dessa triste história familiar, conseguiu fazer mestrado em Serviço Social na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

“Barbárie e Direitos Humanos: As Execuções Sumárias e Desaparecimentos Forçados em Maio (2006) em São Paulo” foi uma espécie de renascimento e vingança que Fran quis dar para a sua família. A dor virou conhecimento. Aprovado com nota dez pela banca examinadora, o mestrado é uma profunda análise sobre a violência em São Paulo.

No início, existiu um dilema ético em abordar tema tão forte e delicado como parte da história, mas Fran procurou demonstrar aos seus orientadores que, acima de tudo, buscava o conhecimento que, mais tarde, viria a ser retransmitido para seus alunos.

Mães em Luta
Débora Maria da Silva: ‘Ser Mãe de Maio me alimenta’
‘Foram viajar. Um dia viajo também. Vamos nos encontrar e matar as saudades’
Maria Aparecida e a bala (duas vezes) perdida
Waltrina Middleton: ‘O lamento das mães no Brasil e nos EUA é muito semelhante’
‘As mães que lutam contra o Estado representam tudo de bom que tem nesse mundo’
Zilda Maria de Paula: ‘Não sossego enquanto não houver justiça’
Vânia perdeu o irmão para a violência policial e a mãe para a injustiça, mas segue na luta: ‘agora é pelos dois’
Zilda, mãe de Laura Vermont: ‘A Justiça não trata uma pessoa trans como se deve’
Ana Paula, mais uma sobrevivente: ‘enquanto tiver forças, serei a voz do meu filho’
Rute e o holocausto de Davi
Violentada por um policial, Cleuza deu à luz Fernando. Dezoito anos depois, a PM o matou
Quando jovem, Ivani sonhava em ser policial. Adulta, viu a PM matar seu filho
‘Eu confiava na polícia’, diz Maria, mãe de Márcio, morto pela PM
As lutas de Luana

Atualmente, Fran volta todos os dias para casa e gosta do orgulho que seus pais, filhas, Júlia e Sophia, e o marido têm dela: fez o mestrado e, no início de 2012, ela se tornou professora universitária. Dá aulas para cem alunos no curso de Serviço Social, da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas).

— Será que alguém que lê a minha história de vida agora tem ideia de como é importante para alguém da periferia como eu fazer mestrado e poder passar a transmitir conhecimento para outras pessoas? — questiona Fran. — Isso vale uma vida, ou melhor, vale duas vidas, é a minha reação para o fim trágico dos meus dois irmãos.

Juliana, a irmã de Fran que tinha 17 anos, foi assassinada no fim da década de 1990. Paulo, o irmão de 23 anos, foi vítima de um desaparecimento forçado, que é como Fran chama o que aconteceu com ele na noite de 16 de maio de 2006, quando as forças de segurança de São Paulo reagiram em reação a ataques do grupo criminoso PCC (Primeiro Comando da Capital).

Segundo vários moradores de Itaquera, na zona leste de São Paulo e onde Fran vive, Paulinho foi levado com vida por policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), considerada pelo governo paulista como a tropa de elite da PM, na noite de 16 de maio de 2006. Até hoje, a família não sabe o que aconteceu depois daquela abordagem policial. Assim como Paulinho, outros três jovens da periferia de São Paulo também foram vistos ao serem levados vivos por policiais militares naquela semana, período da pior crise na segurança pública de São Paulo, e nunca mais retornaram para suas famílias e seus corpos nunca foram encontrados.

— Os quatro desaparecimentos, inclusive o do meu irmão Paulo, não estão em nenhuma estatística, apenas na dos meus pais, na minha dissertação de mestrado e em nossos peitos — diz Fran.

— Infelizmente, vivemos em uma sociedade que tende a tolerar certos crimes cometidos pelo braço forte do Estado, a polícia. Muitas pessoas só passam a prestar atenção na violência policial quando ela atinge alguém próximo e querido — continua a professora universitária.

Quinze anos depois do desaparecimento forçado do Paulo, Fran ainda tenta lidar com a dor, que diz ser eterna. “Mas sei que o Paulinho sente orgulho pela mana dele andar por aí com sua dissertação de mestrado como se fosse um escudo para a batalha da vida”, ela sempre repete.

Leia também: ‘Sumiços forçados continuam’, diz irmã de desaparecido há 12 anos

Desde 2016, Fran desenvolve um doutorado, também na PUC-SP, em que pesquisa o papel dos movimentos sociais e das mídias alternativas no enfrentamento à violência policial no eixo Rio-São Paulo. A ideia nasceu quando ela participou de encontros sobre a violência estatal no Texas e Nova York, nos Estados Unidos.

Desaparecidos da democracia

Quatro jovens, dois deles moradores da periferia de São Paulo e dois de Guarulhos (Grande SP), desapareceram durante o período entre 13 e 16 de maio de 2006, dias mais tensos dos ataques do grupo criminoso PCC contra as forças de segurança do Estado.

Paulo Alexandre Gomes, irmão da hoje professora universitária Francilene Gomes, tinha 23 anos quando foi visto com vida sendo colocado em um carro da Rota. Para sua irmã, Paulo foi levado pelos PMs da Rota por ser negro e ter tatuagem.

Dois dias antes do sumiço de Gomes, no domingo (14/5), Dia das Mães, dois guardadores de carro — Diego Augusto Sant’Anna, de 15 anos, e Everton dos Santos Pereira, de 24 — foram abordados por PMs em uma Blazer, na avenida Paulo Faccini, região central de Guarulhos, e até hoje não foram encontrados por suas famílias.

Segundo três testemunhas, os guardadores de carro foram abordados por PMs.

O quarto caso de desaparecimento em maio de 2006 ocorreu no sábado (13/5) no extremo sul da capital paulista, em Parelheiros. Lá, Ronaldo Procópio Alves, 30, também foi visto ao ser levado vivo por policiais militares.

Até hoje, nenhum dos corpos foi localizado pela polícia e, por isso, para a professora Fran, é necessário que a Polícia Federal seja acionada para investigar os casos.

Vala comum

O único caso de desaparecimento ocorrido durante maio de 2006 e com suspeita de participação de policiais militares que foi esclarecido pelas autoridades envolveu a morte de Maycon Carlos Silva, que sumiu em 15 de maio, no bairro da Casa Verde (zona norte de São Paulo).

Documentos da Ouvidoria da Polícia de São Paulo apontaram fortes indícios de que Silva fora levado por PMs da Força Tática (grupamento especial formado em cada um dos batalhões da PM).

Leia também: O destino dos jovens negros desaparecidos após abordagens da polícia

Após a insistência de seus familiares, a polícia paulista descobriu que Silva era um dos 38 mortos no Estado que haviam sido enterrados sem identidade. Até hoje, 22 dos enterrados em vala comum são tratados como “indigentes” pelo governo de São Paulo.

Sem esclarecimentos

O Comando Geral da Polícia Militar de São Paulo sempre alegou não ter conseguido comprovar o envolvimento de PMs nos quatro desaparecimentos ocorridos em maio de 2006 e não solucionados.

As investigações foram conduzidas pela Corregedoria da PM, mas em nenhum dos casos foi possível coletar provas sobre a ligação de PMs que atuavam nas áreas de São Paulo onde os quatro jovens sumiram.

Os batalhões que atendem as áreas onde aconteceram os sumiços, bem como a Rota, também investigaram os desaparecimentos dos quatro jovens em maio de 2006. Ou seja, colegas investigaram colegas e o resultado foi nenhum.

Os sumiços de Diego Augusto Sant’Anna, Everton dos Santos Pereira, Paulo Alexandre Gomes e Ronaldo Procópio Alves também foram investigados pela Polícia Civil, mas todos os inquéritos policiais foram arquivados sem conclusão.

Em maio de 2007, ao ser questionado sobre os quatro desaparecimentos ocorridos um ano antes, o então secretário da Segurança Pública de São Paulo, Ronaldo Marzagão, disse não saber nada sobre os casos.

A Defensoria Pública moveu uma ação por danos morais para responsabilizar o Estado pelo desaparecimento do irmão de Fran, negada em primeira instância. A Defensoria recorreu e, em 2018, os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo negaram provimento ao recurso. Nas duas instâncias, a Justiça paulista entendeu que os crimes haviam prescrito — apesar de a Declaração sobre a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado e a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas classificarem o desaparecimento com crime permanente.

“Essa decisão absurda, desumana e de descaso, me faz ter certeza absoluta que nossa (in)justiça brasileira e paulista tem classe e tem cor!”, escreveu Fran em artigo publicado na Ponte. “Vivo neste vazio da não resposta, da ausência da verdade, na expectativa de justiça.”

A linha do tempo do desaparecimento de Paulo Alexandre

16/5/2006 – Paulinho desaparece após abordagem policial da Rota, por volta das 23h nas imediações da casa da família, em Itaquera, zona leste de SP, após abordagem violenta.

17/05/2006 – Fran conta que foi informada de que ele não chegou até a casa da namorada no mesmo bairro. A família soube de uma série de abordagens violentas e detenções. No mesmo dia, a família tentou registrar a ocorrência no 103º DP, o que não foi permitido. A informação na época é que Paulo havia passado pelo Sistema Prisional e que a família deveria procurá-lo no IML.

No mesmo mês, houve a abertura de IP (Inquérito Policial) na Corregedoria, testemunhas ouvidas, um PM reconhecido por foto, mas no dia do reconhecimento presencial, testemunhas faltaram. Tempos depois sumiram do bairro. Também houve denúncia no Condepe e para, na época, o senador Eduardo Suplicy, que oficiou o Governo do Estado de SP cobrando respostas.

Maio de 2007 – No aniversário de 1 ano dos Crimes, o Secretário de Segurança Pública à época, Ronaldo Marzagão, pressionado diante da cobertura e cobrança da imprensa de forma geral, fez uma reunião com as 4 famílias dos desaparecidos forçados, entre elas a de Paulo Alexandre, e toda a cúpula da Polícia Civil e Militar. Determinou especial atenção e determinou abertura de inquérito para investigação. Os casos ficaram na Divisão de Desaparecidos do DHPP. Fran conhece as Mães de Maio e se integra ao grupo.

2008 – Continuidade das denúncias, inclusive para o Governo Federal, e a busca do corpo de Paulo Alexandre passou a ser feita em outros locais inclusive em uma pedreira no bairro onde viviam.

2009 – Arquivamentos das investigações na Polícia Civil e na Corregedoria.

2010 – Manutenção de ações permanentes de denúncia com o apoio das Mães de Maio.

2011 – Fran, que está na universidade, reúne denúncias a Violência Policial nos Crimes de Maio e análises de pesquisas sobre o tema para dissertação de mestrado.

2013 – Pela pressão junto ao Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria, um processo por danos morais é aberto contra o Estado que trata especificamente do caso de Paulo Alexandre.

2014 e 2015 – A luta continua: fortalecimento de ações de denúncia e enfrentamento a novas violências com os jovens periféricos, em sua maioria negros. Fran vai ao Texas, nos Estados Unidos, para denunciar os Crimes de Maio, representando as Mães de Maio.

2016 – Fran ingresso no Doutorado na PUC -SP tendo como objeto de pesquisa os movimentos sociais e mídias independentes, no eixo Rio-SP no enfrentamento da Violência Policial.

2018 – Fran se reúne da Procuradoria Geral da República e solicita apoio junto à Defensoria para reverter decisão do Tribunal de Justiça de que o caso teria prescrito e nada mais poderia ser feito. Em 30 de outubro do ano passado, desembargadores negam provimento ao recurso e família sequer fica sabendo.

2019 – Pela segunda vez, Justiça de SP alega que o caso prescreveu e justifica a decisão com a expressão: “o direito não é eterno” e cobra que a família deveria ter entrado com processo antes de 2013.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
1 Comentário
Mais antigo
Mais recente Mais votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
trackback

[…] vivencia diariamente as diferentes dimensões dessa violência. Autora da tese de mestrado “Barbárie e Direitos Humanos: As Execuções Sumárias e Desaparecimentos Forçados em Maio d…, ela é também irmã de Paulo Alexandre Gomes, uma das quatro vítimas dos Crimes de Maio, […]

mais lidas