As lutas de Luana

Negra, pobre e lésbica, Luana era alvo frequente e agressões pela PM em Ribeirão Preto (SP). Após uma abordagem violenta, em 2016, ela morreu. “Dói muito saber que a vida dela foi arrancada prematuramente”, afirma sua irmã, Roseli Reis

Ilustração: Junião

Para marcar os 15 anos dos Crimes de Maio, a Ponte publica 15 perfis de mulheres que perderam familiares para a violência policial, originalmente publicados no livro “Mães em Luta”, organizado por André Caramante e editado por Ponte e Mães de Maio em 2016

Luana Barbosa dos Reis nasceu e morreu lutando. A mais nova dos cinco filhos de dona Eurípedes veio ao mundo prematuramente num parto difícil, em 12 de novembro de 1981, apenas dois dias após o assassinato de seu pai, Luiz Barbosa dos Santos, aos 34 anos, por motivos ainda hoje desconhecidos. A bebê ficou alguns dias internada até que pudesse ir para casa. Mas, aos 20 dias de vida, teve de ir para uma creche. Sua mãe foi obrigada a voltar ao trabalho: de dia, como diarista; de noite, como faxineira.

Sua morte, em abril de 2016, ocorreu em decorrência de um espancamento cometido por policiais militares, no dia 8, na periferia de Ribeirão Preto (interior de São Paulo). Luana lutou por sua vida durante cinco dias, enquanto esteve internada na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde deu entrada com suspeita de AVC (Acidente Vascular Cerebral). “Disseram que o caso era grave e que não sabiam se as sequelas seriam reversíveis.” No dia 13, ela morreu em decorrência de uma isquemia cerebral causada por traumatismo crânio-encefálico.

Mães em Luta
Debora Maria da Silva: ‘Ser Mãe de Maio me alimenta’
‘Foram viajar. Um dia viajo também. Vamos nos encontrar e matar as saudades’
Francilene: ‘Desaparecimentos não estão nas estatísticas, apenas em nossos peitos’

Maria Aparecida e a bala (duas vezes) perdida
Waltrina Middleton: ‘O lamento das mães no Brasil e nos EUA é muito semelhante’
‘As mães que lutam contra o Estado representam tudo de bom que tem nesse mundo’
Zilda Maria de Paula: ‘Não sossego enquanto não houver justiça’
Vânia perdeu o irmão para a violência policial e a mãe para a injustiça, mas segue na luta: ‘agora é pelos dois’
Zilda, mãe de Laura Vermont: ‘A Justiça não trata uma pessoa trans como se deve’
Ana Paula, mais uma sobrevivente: ‘enquanto tiver forças, serei a voz do meu filho’
Rute e o holocausto de Davi
Violentada por um policial, Cleuza deu à luz Fernando. Dezoito anos depois, a PM o matou
Quando jovem, Ivani sonhava em ser policial. Adulta, viu a PM matar seu filho
‘Eu confiava na polícia’, diz Maria, mãe de Márcio, morto pela PM

Ela trabalhava como garçonete num grande bufê de Ribeirão Preto e também fazia bicos como faxineira. No dia que foi espancada pela PM, Luana saiu de casa de moto para levar o filho de 14 anos à aula de informática, quando, na esquina de sua rua, foi abordada pelos policiais Douglas Luiz de Paula, Fábio Donizeti Pultz e André Donizeti Camilo, do 51º Batalhão de Polícia Militar do Interior, denunciados pelas agressões que causaram sua morte. O garoto presenciou a cena do espancamento e ouviu de um dos policiais: “sua mãe já era”. Sua cabeça foi empurrada contra a janela da viatura, para que a visse dentro, machucada, com as mãos e pés algemados.

A vida de Luana, negra, lésbica e moradora de periferia foi interrompida aos 34 anos.

— Dói muito saber que a vida dela foi arrancada prematuramente. Ela tinha projetos para o futuro. O fato de ela ser lésbica, negra, periférica e ter passagem pela polícia faz com que sua vida valha menos aos olhos da sociedade — afirma Roseli Reis, irmã de Luana. — E os policiais fazem de tudo para colocar ela como uma pessoa que não tinha família, nome, endereço, amigos.

Luana era alvo frequente de “enquadros” por parte de policiais quando saía de moto. No dia em que foi espancada pelos três PMs, já havia sido parada outras quatro vezes. Era tratada de forma desrespeitosa, violenta, na base do cabeça no muro, abra as pernas, mão na cabeça. Também era comum que a confundissem com um homem, pois Luana usava cabelo curto e roupas tidas como não femininas para o padrão vigente.

Leia também: Mães de Maio, Defensoria e Conectas denunciam desaparecimentos de vítimas dos Crimes de Maio na OEA

No dia em que foi espancada, aconteceu o mesmo. “Ela quis dar uma de macho, tivemos que acalmá-la”, disse, para Roseli, um dos policiais que a espancou. “Vivíamos preocupados com ela. Quando andava a pé, sofria preconceitos, mas não havia casos de enquadros”, afirma a irmã, dois anos mais velha.

Luana e seus irmãos, Roseli, Lolita, Irani e Nathan passaram a infância e adolescência em bairros violentos da periferia de Ribeirão Preto. Na rotina da vizinhança onde moravam, havia briga de gangues, tráfico, estupros coletivos, mortes cometidas pela polícia. Muitos dos conhecidos e amigos foram mortos ou desapareceram.

Desde muito novas, as irmãs mais velhas assumiram o comando da casa junto com dona Eurípedes. Irani abandonou a escola para cuidar de Luana, Roseli e Nathan, que tinha problemas de saúde e tomava remédios controlados. Irani e Luana estabeleceram uma relação semelhante à de mãe e filha. E Lolita, aos dez anos, começou a trabalhar como doméstica para ajudar a pagar o aluguel, a comida e as medicações para epilepsia do irmão. Assim, frequentar a escola era um luxo ao qual apenas as mais novas podiam ter acesso.

— Uma trabalhava, a outra cuidava de nós, e o outro não tinha lugar na escola por ser especial.

Antes de se estabelecerem em Ribeirão Preto, os pais de Luana haviam seguido o mesmo destino de muitas famílias pobres, conduzidas a uma vida itinerante. No ritmo das safras de algodão, cana, laranja, café, percorreram várias cidades agrícolas do interior de São Paulo. A família do pai vivia em Miguelópolis, no Estado de São Paulo, mas foi numa colheita em Goiás que seu Luiz conheceu dona Eurípedes. Goiana, dona Eurípedes mudou para São Paulo quando se casou. E nunca mais soube ou viu seus pais. São mais de 50 anos sem notícias. Não se sabe se morreram, mudaram para outra cidade, nada.

A história sobre a avó paterna que Luana e as irmãs ouviam desde cedo é que ela era filha de uma indígena com um negro e havia sido abandonada na estrada. Uma família a encontrou e a criou, tratando-a, porém, como escrava. Era obrigada a fazer o serviço doméstico, sob espancamentos e tortura. Aos 12 anos, foi vendida, num negócio com cabras e bois, e o homem que a comprou se tornou seu marido.

Já o pai de Luana foi morto quando estava em São Paulo trabalhando como servente de pedreiro. Em 2013, Luana e Roseli descobriram que ele estava enterrado como desconhecido no cemitério de Perus, localizado na zona oeste da cidade de São Paulo, mesmo local onde presos políticos assassinados pela ditadura foram enterrados como indigentes.

Leia também: Seis anos depois, promotora que caluniou Mães de Maio segue sem punição

Na primeira infância, Luana e Roseli passavam os dias numa creche comandada por freiras, que acolhia mães solteiras e viúvas. Quando pequena, Luana era doce, gentil, tímida. Anos depois, buscando um aluguel mais barato, a família mudou-se para um bairro ainda mais violento. Roseli foi para a escola no primeiro ano do fundamental, e Luana ficou esse ano sem estudar, pois na escola não havia educação infantil. Ficava, então, com a irmã mais velha em casa e brincando na rua.

Nessa época, tornou-se mais bagunceira e briguenta e ganhou o apelido de Foguinho. Jogava bola, corria, empinava pipa, brincava de carrinho de rolimã.

— Ela era muito briguenta. Quando vi a Rafaela Silva, me lembrei da minha irmã, por causa do temperamento briguento — diz Roseli, referindo-se à judoca que ganhou medalha de ouro nas Olimpíadas do Rio de Janeiro.

Quando pequenas, dona Eurípedes vestia Luana e Roseli com os mesmos modelos de roupas, mudando apenas as cores e os tamanhos. Mas Luana detestava usar saia e sempre exigiu usar o cabelo curto.

Leia também: Projeto de lei Mães de Maio quer apoiar vítimas da violência estatal em SP

Se para Roseli a escola era vista como salvação para a pobreza da casa e do bairro, para Luana o ambiente escolar reforçava a condição precária em que viviam. Muitas vezes o caderno que usavam era dado pela professora, e o livro encomendado no começo do ano só poderia ser comprado pela mãe no fim do primeiro semestre. Os sapatos que usavam eram de doação, sempre maiores que os pés, o que as impedia de correr na hora do recreio, sob o risco de ficarem descalças.

— Eu me apeguei à escola. Já para ela era revoltante, humilhante — conta Roseli.

Na rotina do colégio, era comum que as aulas fossem interrompidas por tiroteios que ocorriam na vizinhança, bombas que atingiam a escola e falta de professores, que tinham medo de lecionar no local. E no bairro não havia lazer: praça, parque, biblioteca, museu. Nada.

Na adolescência, Luana foi presa por roubo e porte de arma e passou sua primeira de algumas temporadas em privação de liberdade. Foi mandada para a Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), hoje Fundação Casa. “Não é desculpa porque é minha irmã, mas só quem vive essa realidade pode saber como é. Não dá para dizer que foi uma escolha quando não se tem escolhas”, diz Roseli. A primeira detenção foi seguida de outras, que marcaram a juventude de Luana.

A jovem gostava de escrever, desenhar, futebol e correr. Viajar, ouvir música africana e rap. Ouvia muito as músicas dos Racionais Mc´s, que retratavam sua realidade, como “Negro Drama”.

— Não tem uma letra dos Racionais que não fale da nossa infância, como a que fala sobre a roupa dada pelo patrão — diz Roseli, referindo-se à música “Tô ouvindo alguém me chamar”.

Falava quando era criança
Uma mistura de ódio, frustração e dor
De como era humilhante ir pra escola
Usando a roupa dada de esmola.

Era leitora de literatura periférica, gostava de filosofia. Habilidosa com pintura e atividades manuais, na Copa de 2014 Luana pintou todas as calçadas da rua de sua casa de verde e amarelo.

Durante o tempo em que esteve presa, escrevia muitas cartas e fazia muitos desenhos. Participou de um concurso de desenho organizado pelo governo de São Paulo e ficou em terceiro lugar. O trabalho foi publicado num livro com uma entrevista dela e contou com uma cerimônia de lançamento.

Luana era lésbica, mas, numa relação heterossexual, aos 19 anos, engravidou. Não teve dúvidas e disse à família que teria o bebê. Mas, como para muitas mães, o começo da maternidade foi difícil. Teve dificuldade para amamentar e tinha medo de machucar o filho nas trocas de fralda e banhos. Quando o bebê tinha por volta de um ano, Luana foi novamente presa. A separação foi dura para ambos. Na prisão, ela fazia muitos desenhos e escrevia cartas em que declarava o amor ao filho, lamentava que ele estivesse crescendo na ausência da mãe. Ela dizia que nunca mais faria nada que pudesse levá-la de volta à prisão. Luan também chorava muito nas visitas que fazia à mãe, junto com a avó e a madrinha. “Estou com saudades da minha mãe, quando ela vai voltar?”, Luan perguntava à tia, quando ela ia buscá-lo na creche.

Leia também: Crimes de Maio de 2006: o massacre que o Brasil ignora

Durante um longo período da infância do menino, Luana esteve encarcerada. Em 2009, ela saiu pela última vez da prisão e nunca mais voltou. E então começou a retomar a vida, estudar, procurar emprego. Mãe e filho se reconectaram e reconstruíram a relação.

— Minha irmã passou uma fase muito grande de sua vida encarcerada, deprimida, com autoestima muito baixa, sempre achando que não conseguiria dar a volta por cima. Mas ela conseguiu. Começou a trabalhar, descobriu que poderia construir coisas como qualquer pessoa, que poderia ter carteira assinada.

Logo Luana conseguiu emprego como garçonete num bufê e fazia bicos como faxineira, numa empresa terceirizada, limpando escolas e terminais de ônibus. Também trabalhou lavando carros num lava-rápido. Por causa do trabalho no bufê, viajava bastante para trabalhar em festas.

— Ela virava noites, ia de uma festa para outra, em cidades diferentes. Foi com esse dinheiro que ela pagou a moto que estava quando foi abordada e espancada. Bem quando estava refazendo a vida, no período mais longo de sua vida adulta fora da prisão, aconteceu o que aconteceu. E ela não estava armada, não tinha drogas, tinha ido levar o filho num curso de informática, na moto que ela trabalhou muito para comprar.

Luana também deu seguimento aos seus estudos no programa de educação de jovens e adultos e fez curso para cabeleireira.

— Ela queria terminar os estudos e fazer universidade. Dizia que eu não seria a única da família a cursar universidade. A vida dela entrou nos eixos.

Luana também cuidava da saúde fazendo esportes e havia recém-feito uma cirurgia na coluna.

— Ela tinha projetos para o futuro. Entre as coisas dela, encontrei várias cópias de currículos que ela pretendia enviar.

Um dos sonhos era montar um salão de cabeleireiro no terreno de casa. Ela adorava mudar os cortes de cabelo, que ela mesmo fazia, e tirar fotos do visual novo. E também sempre cortava o cabelo dos amigos, dos sobrinhos, dos irmãos.

Leia também: Artigo | Mais uma Dona Maria de luto: a morte como política de Estado e a busca pela ‘fórmula mágica da paz’

Na relação com Luan, acompanhava e cobrava que o menino estudasse, matriculou-o na natação, e jogavam muita bola juntos. Ela também cuidava de um afilhado como se fosse seu filho. Nos fins de semana e durante as férias, ele se juntava à madrinha e a Luan e batiam uma bola. Os dois, com pais ausentes, contavam com Luana na hora de apartar as brigas de rua. A mãe e madrinha também estava procurando cursos de jovem aprendiz para os dois.

Lésbica assumida, Luana era namoradeira e muito paquerada. Teve alguns grandes amores durante sua vida.

— Teve um período da vida que ela se reconhecia como transexual, e nessa fase a questão da maternidade era mais complicada. Mas nos últimos anos ela se definia como lésbica.

Com algumas companheiras que se relacionou, ela tentou morar em São Paulo, mas não queria deixar o filho em Ribeirão Preto com a mãe. E o menino era muito apegado à avó para se mudar para outra cidade. “Por isso ela acabou nunca indo definitivamente.” Mas reclamava do preconceito que sofria em Ribeirão.

— Eu sempre disse para ela ir embora, por conta da mentalidade provinciana e preconceituosa da cidade. Ela sofria muito preconceito por ser mulher, negra, periférica e lésbica.

Os episódios de discriminação eram frequentes. Numa das empresas onde buscou emprego, por exemplo, desistiram de entrevistá-la quando viram a sua aparência.

— As pessoas olhavam para ela, e na hora de cumprimentar às vezes não pegavam em sua mão. São coisas que eu presenciei relata Roseli.

Com a moto, a situação piorou.

— O racismo e o classismo são tão grandes que, para eles, um tipo como ela na moto só poderia ser bandido. Luana pagou com a vida por conta desse estigma.

Nos primeiros meses após a morte da mãe, Luan não conseguia falar no assunto. Às vezes, acordava e não falava com ninguém. Dormia de luz acesa, com a cabeça coberta, mesmo que o tempo estivesse quente. Teve pesadelos durante a noite e chamava pela mãe e depois pela avó, quando se dava conta de que a mãe não estava mais ali. Uma noite, foi parar no hospital com dor no coração. O médico disse que o sintoma era de infarto, mas depois descobriu-se que não era. Foi morar na casa de uma das tias.

Para sobreviver, dona Eurípedes se apegou a Deus.

— A gente se apega ao que pode, pois não temos histórico de Justiça e sim de impunidade diz Roseli.

Aposentada, o trabalho durante décadas na roça, como diarista, faxineira e passadeira deixou como herança à mãe de Luana uma coluna com artrose e osteoporose. Toma antidepressivos e emagreceu vários quilos.

— Está muito difícil, mas vamos vivendo um dia após o outro — relata Roseli, que também toma medicamentos controlados desde que a irmã caçula morreu.

Dona Eurípedes, que teve um irmão falecido aos 13 anos e uma irmã cujo filho foi morto, lamenta:

— Eu, minha mãe e irmã tivemos o mesmo destino. Perder um filho.

No bairro onde moram, há vários casos de jovens mortos pela polícia e, via de regra, os casos estão impunes, relata Roseli:

— Não temos direitos respeitados, não temos direito de falar. Nada vai reparar nossa dor, trazer a minha irmã de volta. Mas que ao menos a Justiça fosse feita.

Para além da dor da morte, a falta de apoio dói na família de Luana:

— As pessoas não tem noção de como é lutar de forma legal, jurídica. Elas lutam no dia a dia, sobrevivem à falta total de tudo, mas não há nenhum programa de apoio jurídico e emocional às famílias. Não sabemos quanto tempo levará e se haverá Justiça”. A cultura de impunidade em mortes cometidas contra moradores da periferia é tamanha que ao saber da história de Luana, há quem pergunte ‘Mas o que ela fez?’.

Leia também: O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil

A família tem tentado se apegar às boas lembranças de Luana mãe, filha, irmã e amiga.

— Temos tentado trazer as boas lembranças. Minha irmã era muito sensível. Aprendemos a ser sensíveis em relação ao sofrimento do outro.

O único irmão homem, embora tenha deficiência e não consiga entender direito o que ocorreu com a irmã, expressa a falta que sente da irmã lembrando as coisas que ela fazia por ele, como levar para passear e cortar o cabelo.

Um episódio da solidariedade de Luana foi o gesto que teve com a irmã mais velha Irani, que por conta de um tratamento contra um câncer de mama estava angustiada com a queda dos cabelos. Em apoio, Luana raspou o próprio cabelo também.

Francisco, filho de Lolita, também era muito apegado à tia. Acompanha a família nas visitas regulares ao cemitério e foi a um dos inúmeros atos que ocorreram em homenagem à tia. Num dia em que viu Roseli chorando muito de saudades da irmã, disse: “Tia Rose, por favor, fique calma. Eu já perdi a tia Luana, não quero te perder também”. Em outra ocasião perguntou à mãe: “Também vou morrer jovem como a tia Luana?”.

Leia também: O que é genocídio — e as formas que assume no Brasil

Para Roseli, também tem sido doloroso o dia a dia na casa, olhar para o portão, para a rua e lembrar que foi ali que ela apanhou, exatamente na frente da casa onde viviam. Foi onde Roseli testemunhou a violência contra a irmã: Luana estava ajoelhada, mãos para trás, bermuda preta, só de top. Dois policiais a imobilizavam. Um deles, apontou a arma para Roseli e dona Eurípedes e disse “entra [na casa], senão morre”.

Após a ameaça, policiais entraram na casa da família, perguntaram se Luana morava ali, se era usuária de drogas, se traficava ou roubava. Também perguntaram no que ela trabalhava e revistaram o seu quarto. De acordo com testemunhas, os policiais chutaram Luana para obrigá-la a abrir as pernas. Ela caiu e, ao se levantar, deu um soco em um dos PMs e um chute no pé de outro. Foi quando começou a ser espancada com cassetetes e com o capacete que usava. A violência dos policiais militares contra Luana foi revelada pela Ponte Jornalismo.

— Mesmo após ter explicado que era mulher, os policiais seguiram a abordagem violenta e quiseram revistá-la. Mesmo depois de ter sido agredida, ela levantou a camiseta para provar que era mulher — relata Roseli.

Num vídeo gravado por familiares após as agressões, Luana conta que os policiais a mandaram abaixar a cabeça e colocar as mãos para trás: “Aí eu comecei a apanhar, já me deram um soco e um chute”. “Falou que ia me matar e matar todo mundo da minha família. Eu vomitei até sangue. Falou que vão matar todo mundo. Não é só eu não, vão matar até meu filho”.

Dois laudos do IML (Instituto Médico Legal) constatam as agressões às quais Luana foi submetida. Um de quando ainda estava internada no Hospital das Clínicas atesta politraumatismo causado por agente contundente. O exame necroscópico constata morte por traumatismo crânio-encefálico e isquemia cerebral provocada por “dissecção de artéria vertebral à esquerda secundária a espancamento”, conforme resultado de angiografia cerebral.

Ajude a Ponte!

A Polícia Civil indiciou os policiais em abril de 2018, dois anos depois do crime, enquadrando-os por lesão corporal seguida de morte (em que o criminoso mata sem querer assumir o risco de matar). O promotor Eliseu José Berardo Gonçalves, contudo, preferiu denunciar os três por homicídio triplamente qualificado (por motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou defesa da vítima). A Justiça aceitou a denúncia em junho de 2018 e, em fevereiro de 2020, decidiu que os PMs serão levados a júri popular. Os réus alegam inocência e dizem que Luana reagiu à abordagem policial.

— Minha irmã lutou muito para viver. O histórico da nossa família, seu nascimento, as prisões, a volta para o caminho do bem. Ela tinha muita força. Viveu cinco dias em coma antes de morrer. Sua vida foi arrancada, isso é inaceitável.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas