Waltrina Middleton: ‘O lamento das mães no Brasil e nos EUA é muito semelhante’

A pastora, ativista do Black Lives Matter, perdeu sua prima no massacre de Charleston, em 2015, e já se reuniu com mães brasileiras em protesto contra a violência racista

Ilustração: Junião

Para marcar os 15 anos dos Crimes de Maio, a Ponte publica 15 perfis de mulheres que perderam familiares para a violência policial, originalmente publicados no livro “Mães em Luta”, organizado por André Caramante e editado por Ponte e Mães de Maio em 2016

Waltrina Middleton nasceu e cresceu no Estado da Carolina do Sul (sudeste dos Estados Unidos), na comunidade costeira de Sea Islands (Ilhas do Mar), que, próxima à cidade de Charleston, é “conhecida distintamente como uma das comunidades em que as pessoas escravizadas podiam manter suas tradições africanas ancestrais remanescentes”, segundo ela. Embora tenha passado sua infância na região, realizava viagens com sua família por outros estados ao longo da Costa Leste do país.

Por meio da Black Liberation Theology (Teologia da Libertação Negra) e da Womanist Theology (Teologia Womanista), Waltrina percebeu que poderia “ligar elementos de sua identidade com seu compromisso com a justiça social e os direitos humanos”, ordenando-se pastora em janeiro de 2014.

Em 17 de junho de 2015, sua prima, também pastora, DePayne Middleton, com quem tinha um forte vínculo, foi uma das vítimas do Massacre de Charleston, em que nove pessoas negras foram assassinadas na Emanuel African Methodist Episcopal Church (Igreja Metodista Africana Episcopal Emanuel), símbolo da história negra nos Estados Unidos.

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O violento episódio racista, protagonizado por um jovem supremacista branco, aprofundou o ativismo de Waltrina no movimento norte-americano de combate à violência racial Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que ela integra desde 2014.

Em julho de 2016, a ativista juntou-se aos familiares de vítimas de violência policial no Brasil em uma semana de manifestações contra o racismo e a violência de Estado, na cidade do Rio de Janeiro.

Waltrina sempre foi envolvida com o ativismo social e estava se distanciando da igreja porque não se identificava com a forma como a instituição respondia ao “sofrimento do mundo”. “Era como se fosse monótona, silenciosa, superficial e segura”, em suas palavras. O aprofundamento na Teologia da Libertação Negra e na Teologia Womanista inspirou-a a tornar-se pastora.

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— A Teologia da Libertação Negra e a Teologia Womanist eram diretamente vinculadas e comprometidas com a liberdade, direitos e Justiça para o oprimido, e declaravam que Deus é um Deus dos Oprimidos. Isso fala diretamente para o meu espírito, coração e cérebro, e me inspirou a ir a seminários, simplesmente como acadêmica, conta.

Durante os estudos, ela sentiu-se chamada a “servir como clérigo, mas numa paróquia não tradicional”: desejava estar nas ruas. “Enquanto sentia um forte chamado, não queria estar numa paróquia escolhida. Se eu serviria, sabia que precisaria ser entre a margem e atrás das paredes da igreja”, define.

Massacre de Charleston

Marco histórico da cultura afro-americana nos Estados Unidos, a Igreja Metodista Africana Episcopal Emanuel remete à Free African Society (Sociedade Livre Africana), fundada em 1787 por Richard Allen, que nasceu escravo. Símbolo da resistência contra a escravidão e o racismo, a Igreja “Mãe Emanuel”, como é chamada, foi fundada em 1816 pelo pastor negro Moris Brown e é o mais antigo templo negro que permanece erguido ao sul da cidade de Baltimore – já tendo sido visitado pelo reverendo Martin Luther King (1929-1968).

— A história da Mãe Emmanuel fala sobre libertação teológica e sua significância e necessidade na América — diz Waltrina. — Ela definitivamente tem um papel histórico importante, não somente na história negra dos Estados Unidos, mas na história dos Estados Unidos como um todo. O fato é: o papel dos negros na América é fundamental para a simples existência desse país. Nosso sangue, suor, agonia e luta por nossa liberdade, são profundamente impregnados na construção da narrativa americana.

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Na noite de 17 de junho de 2015, o templo foi alvo de um crime de ódio. Após participar de cerca de uma hora de culto, sendo recebido normalmente pela comunidade da igreja, um jovem de 21 anos se apresentou como supremacista branco e abriu fogo durante uma sessão de estudos bíblicos, matando nove pessoas — entre as quais a reverenda DePayne Middleton, prima de Waltrina.

— Estava trabalhando até tarde em Cleveland [Ohio], quando minha irmã e minha mãe me ligaram para avisar que havia uma especulação sobre nossa DePayne estar na igreja no momento do tiroteio. Eu não queria acreditar naquilo, mas sabia que ela estava lá. Liguei para o telefone dela, torcendo para contatá-la, mas ela nunca atendeu.

Vocalista do coral da igreja e docente na Charleston da Southern Wesleyan University, DePayne tinha 40 anos quando foi assassinada e deixou quatro filhas.

— Ela era uma amiga leal e uma mãe apaixonada. Ela viveu e respirou pelos seus filhos e eles a amavam do mesmo modo — diz a ativista, que tinha na prima uma grande referência humana e guarda dela fortes lembranças.

— Trago perto do meu coração memórias da nossa infância. Cresci me mirando nela. Ela influenciou meu estilo de cantar. Ela me ajudou a criar meu primeiro sermão. Ela comprou meu primeiro sutiã. Ela teve tempo para conversar comigo e me apoiar em todo e qualquer desafio que eu pudesse enfrentar. Ela amava Deus e amava as pessoas. Mesmo não sendo uma ativista, ela também era consciente e comprometida com a justiça social. Ela também era orgulhosa sobre ser cristã e usar sua fé como plataforma para a Justiça.

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O assassino, Dylann Storm Roof, foi preso na tarde do dia seguinte ao crime. Condenado à pena de morte em 2017, aguarda a decisão final da justiça desde então. Segundo Waltrina, sua família tem sido prejudicada pela falsa narrativa de que teria perdoado o atirador dias após o massacre.

— A negação do nosso direito de sentir raiva, de ficar de luto ou de ter qualquer outra emoção humana na sequência de uma perda trágica é repugnante — revolta-se. Sua família tem lutado, a cada dia, para honrar a vida e memória de DePayne, e prestar forte apoio às suas filhas.

— Meu compromisso com a minha prima é contar a história da nossa família e, talvez por meio do meu ativismo, testemunho e verdade, fazer a diferença no mundo — afirma. — Já estava envolvida no ativismo antes do assassinato da minha prima, mas isso me coloca em um serviço mais profundo como testemunha.

Vidas negras importam

Na luta em defesa da igualdade racial desde muito jovem,Waltrina se envolveu com o ativismo do movimento Black Lives Matter em 2014, acompanhando as mortes dos jovens negros Michael Brown, baleado aos 18 anos por um policial na periferia da cidade Saint Louis (Missouri), e John Crawford, assassinado aos 22 anos por um policial dentro de um supermercado na cidade de Beavercreek (Ohio), ambas em agosto de 2014, e de Tamir Rice, morto aos 12 anos de idade por dois policiais na cidade de Cleveland (Ohio), em novembro do mesmo ano. Acontecimentos que, segundo Waltrina,“moldaram seu ativismo e sua consciência moral”.

— Os progressivos padrões de jovens negros desarmados assassinados me tornaram fisicamente deprimida e doente. Precisava responder e me tornar engajada em um esforço de combater esses crimes — diz a ativista do Black Lives Matter — que surgiu após o assassinato de Trayvon Martin, adolescente de 17 anos de idade baleado pelo segurança de um condomínio na cidade de Sanford, na Flórida, em fevereiro de 2012.

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Ao falar sobre o “trauma testemunhado como uma mulher negra e como uma ativista negra”, em suas palavras, Waltrina demonstra tristeza.

— Nós estamos vivendo cada dia com as imagens repetidas de corpos negros e marrons sendo assassinados por policiais, a ansiedade e o risco de ser o perfilado pela polícia, e o medo de ser a próxima pessoa morta.

Justiça e liberdade

Quando tomou conhecimento do sofrimento das mães brasileiras que tiveram seus filhos assassinados por policiais, por meio do Movimento Independente Mães de Maio, Waltrina considerou importante juntar-se a elas e fazê-las saber que se trata da mesma luta. Assim, ela e algumas de suas companheiras do Black Lives Matter vieram ao Brasil para participar do Julho Negro, em 2016, sequência de manifestações organizadas no Rio de Janeiro, ao longo de uma semana, por movimentos de combate à violência de Estado contra a população negra e favelada.

Durante um dos protestos, indagada sobre o motivo de ter vindo ao país, a ativista respondeu com firmeza que “não tinha escolha a não ser estar aqui” e que, “como uma mulher negra e sobrevivente”, solidariza-se com a luta das mães brasileiras e preocupa-se com a liberdade de todas as pessoas que são oprimidas.

— Fazemos parte de um todo, não estamos isolados, todos fazemos parte do continente. Então, se uma pessoa sofre aqui, nós sofremos. Quando ouço o sino da morte tocando no Brasil, ele está também tocando na Carolina do Sul, em Ohio, em Chicago, em todos os lugares. Nos importamos com o sofrimento dessas mães porque, se olharmos para o outro lado, nós estamos sofrendo a mesma dor.

— Sou uma negra e entendo a discriminação pelo perfil da cor, então, como posso ignorar o sofrimento de outros? Uma criança que morreu assassinada pela polícia é minha filha também. Todas as pessoas têm uma grande responsabilidade diante do sofrimento de qualquer irmão ou irmã nesse mundo.

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Ela afirma sentir-se orgulhosa de compartilhar a luta por justiça e liberdade no Brasil, acredita ser seu dever apoiar o movimento de libertação negra no país e ressalta a importância das mulheres na luta contra a violência de Estado.

— As mulheres são o pulso da comunidade. São corajosas e valentes. É de seus ventres que nascem nações e revoluções. Eu amo o espírito e a luta das mães brasileiras. Elas não se cansam. É certamente muito semelhante, lamentavelmente, ao lamento das mães nos Estados Unidos. Acredito que as mulheres estão mantendo os nomes presentes e visíveis — finaliza.

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