O destino dos jovens negros desaparecidos após abordagens da polícia

    Cadu, 20 anos, sumido desde 27/12, é o caso mais recente; familiares de outros desaparecidos relatam indiferença: “nossos filhos são estatísticas”

    Carlos Eduardo pretendia terminar o ensino médio e começar uma faculdade em 2020 | Foto: Arquivo pessoal

    O sumiço de Carlos Eduardo dos Santos Nascimento, 20 anos, no dia 27 de dezembro de 2019, na periferia da cidade de Jundiaí, na Grande São Paulo, segue um padrão de desaparecimentos forçados. É o que avaliam familiares de pessoas desaparecidas após abordagens policiais e estudiosos do assunto.

    Carlos Eduardo estava em um bar no bairro Jardim São Camilo junto de outros quatro amigos, quando foram abordados por policiais militares, segundo testemunhas. Único negro, somente ele foi levado na viatura pelos PMs, conforme os relatos.

    Militante na causa dos desparecimentos forçados, Ivanise Esperidião, 58 anos, aponta que existe um padrão de sumiços após os “enquadros” feitos pela polícia.

    “As pessoas que desaparecem são de classes sociais muito baixas e vivemos em um país onde, infelizmente, o racismo ainda predomina em um grau muito grande”, explica Ivanise, que é a fundadora da Associação Mães da Sé, que busca por desaparecidos. “O policial encontra um rapaz negro a esmo na rua já vai abordando como se fosse bandido”, emenda.

    Foi em 1996 que Ivanise fundou o grupo para encontrar pessoas desaparecidas motivada pela sua filha, então com 13 anos, que sumiu ao ir visitar uma amiga. Das buscas pelas ruas, hospitais, delegacias, unidades do IML (Instituto Médico Legal) e a ausência de respostas, ficou a necessidade de lutar para que filhos de outras pessoas fossem encontrados.

    O contato com sumiços é diário e foi através da sua experiência que pode criar o que ela chama de “padrão” de quem são as vítimas de desaparecimentos forçados: em sua maioria, pessoas vistas sendo abordadas por policiais e, dali por diante, não se têm mais notícias delas.

    Para Ivanise, Carlos Eduardo se encaixa exatamente nesse padrão. “A probabilidade de encontrar esse rapaz com vida, devido à circunstâncias às quais ele foi visto, é muito remota”, analisa. “Dos casos que eu atendi e que eu atendo, onde a vítima foi vista sendo abordada por policiais militares, 99% delas foram encontradas mortas. O restantes, a família não soube mais do paradeiro até hoje”, continua Ivanise.

    No caso de Cadu, como é chamado pelos familiares, a Polícia Civil de Jundiaí iniciou os trabalhos de buscas apenas seis dias após o desaparecimento. Foi quando o pai do jovem, o segurança Eduardo Aparecido Nascimento, 51 anos, registrou B.O. (boletim de ocorrência) na unidade local da DIG (Delegacia de Investigações Gerais).

    “A polícia só começa a investigar sob pressão. Qual é a alegação? Desaparecer não é crime. Só se inicia uma investigação se há indícios de crime. Senão, ninguém faz nada. Para o Estado, nossos filhos fazem parte apenas de uma estatística”, lamenta a mãe da Sé.

    Além da Polícia Civil, a Corregedoria da PM também investiga a suposta participação de policiais militares no sumiço de Carlos Eduardo. O órgão fez buscas nesta quarta-feira (8/1) nos arredores do bar onde ele foi visto pela última vez. A família fez este mesmo trabalho por cinco dias seguidos, desde o desaparecimento até o Ano Novo, sem obter vestígios de Cadu.

    A assistente social e professora universitária Francilene Gomes, 40 anos, é mestra em serviço social com foco em execuções sumárias e desaparecimentos forçados. Formou-se na área motivada pelo desaparecimento de Paulo Alexandre Gomes, seu irmão, então com 23 anos, que sumiu em maio de 2006, em meio aos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) e o revide do braço armado do Estado em São Paulo. Ao saber do sumiço de Cadu, logo se viu diante de um histórico repetido.

    “É um caso muito parecido com o do meu irmão, sumiu do mesmo jeito: a polícia aborda um grupo de amigos em um bar e só pegam ele, o negro. E ninguém mais vê”, comenta Francilene, em entrevista à Ponte, desanimada com os próximos passos. “Não tenho muita esperança, não”, admite.

    São 14 anos de buscas e nenhum sinal de Paulinho, forma com que o irmão era carinhosamente chamado. Ela alerta que a demora no começo das buscas influenciou o fato de não encontrarem seu irmão: um intervalo de 10 dias entre o sumiço e o aviso à polícia. Com Cadu, o tempo foi de seis dias.

    “Isso é determinante. Esse lapso de tempo dá a impressão de ser tudo intencional. Somem com o cara e o sistema responsável por dar conta faz descaso. ‘Jovem negro de periferia? Deve ter fugido, o crime [deve ter] assassinado’. É o que falam, não dão muita atenção”, conta Francilene.

    O seu mestrado incluiu o caso de Paulinho e de outros quatro jovens. “Pegamos documentos, fizemos comparação e é o mesmo jeito: rapazes de lugares pobres, periféricos, e total negligência do estado. Nos casos que estudamos é o mesmo perfil: um jovem negro que vive de bicos e que tenham algum histórico de conflito com a lei, seja como adolescente ou já na vida adulta”, define.

    Até sumir, Carlos Eduardo ganhava a vida com bicos enquanto buscava um trabalho formal. Trabalhava como pintor e ajudante de caminhão, fazendo carga e descarga, o que garantia semanalmente de R$ 300 a R$ 400.

    Três policiais militares foram afastados dos trabalhos de rua suspeitos de envolvimento no sumiço de Cadu. Eles eram responsáveis pelo policiamento da área no dia 27 de dezembro, conforme apurado pela Corregedoria da PM. O trio atua em trabalhos administrativos, mantendo o recebimento normal de seus salários.

    A promotora Eliana Vendramini, coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Pessoas Desaparecidas do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), explica que a condução de investigações sobre desaparecimentos é “bastante fraca no Brasil”. Para ela, o tempo é um elemento importantíssimo nas buscas.

    “Não pode haver arquivamento e, óbvio, qualquer tomada de decisão pode fazer com que a investigação não ande e, não andando, perde os únicos possíveis indícios próximos da data do desaparecimento”, pontua. “Isso para qualquer investigação. Uma presunção, e que não é realidade, é de que há alguma motivação, de que geralmente é culpa da vítima, o que é um problema cultural brasileiro”, afirma.

    Para ela, qualquer elemento ganha peso nestas apurações. “É essencial o contato tanto com investigação da Corregedoria e Polícia Civil quanto saber que dados eles têm. A imprensa vem alardeando de forma mais profunda de que há indícios suficientes [no caso de Carlos Eduardo] para abertura de inquérito e isso tem que ser tratado com cuidado”, avalia a promotora.

    O promotor Jocimar Guimarães, do Ministério Público de Jundiaí, é responsável por acompanhar as investigações da Polícia Civil e da Corregedoria. A Ponte solicitou à assessoria de imprensa do MP entrevista com Guimarães, mas obteve resposta negativa pois ele “está no aguardo de mais informações por parte da investigação policial. No momento, ele prefere não se manifestar”, explicou a assessoria.

    Questionada pela Ponte, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, liderada pelo general João Camilo de Campos neste governo de João Doria (PSDB), explicou que a DIG de Jundiaí ouviu testemunhas e familiares “para a localização do desaparecido”.

    “As fotos e qualquer outra informação recebida serão enviadas à autoridade que preside o IPM (Inquérito Policial Militar) para análise. A Corregedoria da PM acompanha as investigações e os militares integrantes da viatura citada foram identificados e remanejados para atividades administrativas”, confirmou a pasta, por meio de sua assessoria de imprensa terceirizada, a InPress.

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