Família de jovem morto aos 21 anos no bairro do Itaim Paulista busca desfecho. Inquérito policial que apura as circunstâncias da morte e possível homicídio cometido dez anos atrás por policiais militares até hoje não foi concluído

A morte de Peterson Conti Senoreli, de 21 anos, completou dez anos na última quarta-feira (19/3). O jovem morreu após ser abordado por policiais militares da Força Tática do 29º BPM/M, no Itaim Paulista, zona Leste de São Paulo. Uma década se passou sem que a família de Renatinho, como o jovem era chamado, tivesse justiça. Neste domingo (23/3), no mesmo bairro, a mãe dele, Marcia Gazza, 64, organizou um ato em memória do filho caçula.
Renatinho foi adotado por Márcia quando tinha 20 dias de vida, sendo filho biológico de uma sobrinha da ativista social. O jovem estava no bairro na casa de primos e, naquele dia, não carregava o RG, mas tinha consigo a certidão de nascimento. Era por volta de 16h. “O Renatinho sabia que não era meu filho biológico, mas ele não gostava que tocasse no assunto. Para mim, ele sempre foi meu filho e, para ele, eu sempre fui a mãe. Naquele momento [da abordagem], os policiais começaram a perguntar o nome dos avós que constava na certidão e ele não soube falar”, conta Márcia — que após o assassinato do filho tornou-se ativista de direitos humanos e coordenadora do Movimento Mães da Leste.
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Segundo a ativista, testemunhas relataram que os policiais passaram a acusar Renatinho de mentir. “Vai, vagabundo, tá mentindo pra nós”, teriam dito em meio às agressões. Márcia estava na aula quando soube que o filho tinha sido levado ao Hospital Santa Marcelina, no Itaim Paulista. Quando chegou à unidade, descobriu que o caçula estava morto. “Eu gritava. Parecia que fiquei sem chão. Eu acho que fiquei uns dois anos vendo o mundo cinza”, conta a ativista.
Para a família, Renatinho morreu após ser espancado pelos policiais. A suspeita surgiu após terem visto o corpo do jovem que, segundo o relato de Márcia, tinha escoriações e ferimentos. Desde 2015, a mãe quer que sejam esclarecidas as circunstâncias da morte, especialmente a ocorrência de tortura.

Inquérito sem fim
O inquérito que apura as circunstâncias da morte de Renatinho e eventual homicídio segue sem conclusão. A morte de Renatinho foi registrada no 50º Distrito Policial (Itaim Paulista). Três policiais militares constam como averiguados pelo caso: Elcio Pelegrin de Oliveira, Victor Pacheco Mascarenhas Freitas e Flávio Souza Santos. Todos seguem trabalhando.
Uma matéria publicada pelo g1 na época da morte corrobora em parte o relato da família. Uma testemunha ouvida pela reportagem disse que o encontro dos policiais e o jovem foi tenso. Renatinho teria sido cercado e foi possível ouvir gritos dele.
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A reportagem diz que Renatinho chegou a ser levado até a delegacia, mas passou mal ao sair e foi levado ao hospital pela PM. Na primeira versão do boletim de ocorrência, os PMs disseram que o jovem se agarrou a um poste de ferro e foi usado força moderada para tirá-lo.

‘Ele era muito feliz’
A sede das Mães da Leste recebeu cartazes com fotos de vítimas da violência policial. Cada um deles carregava a frase “Tarcísio e Derrite, parem de matar nossos filhos!”. O local também reunia uma série de imagens de Renatinho durante a infância e adolescência. O jovem aparece sorrindo na maior parte delas. Um dos retratos traz Márcia e o filho abraçados. “Ele era muito feliz”, conta Márcia.
Na concentração do ato, a ativista fez questão de oferecer comida e água a todos que vieram acompanhá-la. A enfermeira Lilian Regina Conti Lima, 46, irmã de Renatinho, conta que sentia por ele um amor diferente, intenso e cheio de carinho. “Todo mundo tinha muito amor por ele”, lembra.
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A morte do jovem fez Lilian conhecer o sofrimento. Ela desejou por muito tempo esquecer de tudo. Não queria reviver a dor. Hoje, após acompanhar a luta da mãe por uma década, diz que acorda todos os dias motivada a buscar justiça. “O que queremos é justiça para que nenhuma família passe pelo o que a gente passou”, afirma.
O grupo, formado em sua maioria por mulheres, saiu da sede das Mães da Leste e percorreu as ruas próximas até estação da CPTM São Miguel Paulista. “Fora Tarcísio, fora Derrite. Chega de genocídio”, gritavam. A maioria delas perdeu um parente para a violência.
Renata Amorim da Silva, 46, teve o filho Gustavo Amorim, 17, assassinado por policiais militares em 2020. “Os policiais podiam prender, não matar”, disse, às lágrimas. Renata foi acolhida por Márcia em abraço que se repetiu a outras mães durante rasa a tarde. “Você não está sozinha”, falou a ativista.

Toxicológico negativo
A Ponte teve acesso a trechos do inquérito, que não está disponível na íntegra de forma digital. Um dos documentos acessados é um laudo pericial feito em março do ano passado após solicitação judicial. O documento traz informações sobre o prontuário do Hospital Santa Marcelina, onde Renatinho foi levado pelos policiais. Nele, consta que o jovem deu entrada na unidade às 18h13 sob alegação de ter sido encontrado desnorteado e sob efeitos de drogas.
Renatinho teve uma parada cardíaca logo que chegou ao hospital e foi reanimado por seis minutos, tendo recuperado a consciência. Às 20h30, o jovem teve uma nova parada e morreu.
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O laudo necroscópico, feito em seguida da morte, apontou que Renatinho tinha escoriações nos braços, tórax, no joelho esquerdo e nas nádegas. Um ferimento também foi localizado na cabeça. Renatinho teve um edema — inchaço — no cérebro e nos pulmões. A causa da morte foi insuficiência respiratória decorrente do infarto.
O exame toxicológico deu negativo para drogas e álcool. O que desmonta a versão apresentada pelos policiais quando levaram o jovem ao hospital.

Pedido de nova perícia
Em um exame pericial complementar, feito em 2021, o mesmo perito responsável pela necropsia escreveu não ser possível “afirmar ou afastar o nexo de causalidade, já que o estresse pode ter levado a uma crise hipertensiva e contribuído, junto com miocardiopatia hipertensiva, para o óbito”. Ou seja, para o legista, não era possível confirmar ou descartar que as agressões relatadas pela família tivessem provocado a morte.
O novo laudo apontou que Renatinho tinha alteração cardíaca crônica. Porém, ficou registrado que o jovem sofreu “ação repetitiva e múltipla de agente contundente”. As lesões pelo corpo configuram politraumatismo e um traumatismo crânio-encefálico “decorrentes da ação vulnerante de agente contundente, ou seja, houve transferência de energia externa (mecânica ou cinética, força ou pressão) do meio ao corpo da vítima”.
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Mesmo assim, os peritos disseram não ter elementos que permitissem estabelecer um nexo de causalidade entre os ferimentos encontrados e a morte de Renatinho.
Em 2024, a Justiça de São Paulo negou um pedido de Márcia para que ela tivesse acesso a fotos do exame necroscópico. O objetivo era que o material fosse submetido a uma perícia independente a ser feita na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Um mandado de segurança pleiteando a mesma questão também foi recusado pela 9ª Câmara de Direito Criminal.
Luta coletiva
Foi para não sucumbir à dor que Márcia se transformou em ativista. Hoje, ela é uma das Mães em Luto da Leste — movimento formado por familiares de vítimas de violência policial. “Nós, mães que fazemos isso [mobilizam-se], já temos dificuldade em ter justiça, imagina se a gente se calar?”
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Márcia ressalta que o ato deste domingo não foi só pelo filho, mas por todas as vítimas da polícia e seus familiares. “Esse ato é em memória e justiça ao Renatinho e por todos esses jovens. Eu carrego uma faixa com mais de 30 pessoas. Eu não dou voz só pelo meu Renatinho. Eu dou voz a muitos jovens. Hoje as mães deles são minhas amigas. A gente conversa, chora junto”, conta.
O ato foi encerrado com a apresentação do coletivo Estopô Balaio. Parte da peça Reset Brasil foi encenada na lage da sede das Mães da Leste. A apresentação integra a 10 Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e trouxe o público da estação Brás até a zona Leste. A proposta da peça era um mergulho nas raizes do bairro, percorrendo a trajetória indígena e a violência do Estado contra a juventude pobre e preta.
O ator Dunstin Farias, membro do coletivo, recitou uma poesia crítica à atuação policial. “Da ponte pra cá o inimigo é estatuto. Quantas mães tem que lutar para ter direito ao luto.”
O que diz a SSP-SP
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) sobre a demora na conclusão do inquérito. Também foi perguntado sobre apurações no âmbito da Justiça Militar — se um Inquérito Policial Militar foi instaurado. Não houve retorno até a publicação do texto. Caso haja, a reportagem será atualizada.