Artigo | Um holocausto trans? A nova ofensiva contra a população transexual e travesti

    Mundo atual passa por mudanças cujos efeitos mais brutais recaem sobre as parcelas historicamente invisibilizadas, empobrecidas, marginalizadas e precarizadas da classe trabalhadora — entre elas a população trans e travesti

    A deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que foi notificada pela embaixada dos EUA de que em seu passaporte oficial deveria constar o sexo masculino | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

    De tempos em tempos, o mundo passa por grandes mudanças, geralmente provocadas pelos conflitos entre grupos sociais com interesses opostos — elite e classe trabalhadora. Nessas fases, tudo se reorganiza: a política, a economia, as formas de trabalho e as relações sociais. Essas mudanças não acontecem de forma neutra, elas seguem os interesses de quem está no topo da pirâmide social e econômica: os países mais ricos e as elites econômicas (ou burguesia), que controlam as decisões e os caminhos que o mundo vai seguir.

    Essa elite dominante é dona dos meios de produção, ou seja, das ferramentas, indústrias, terras e tecnologias que fazem a economia girar — e, com isso, concentra também a maior parte da riqueza gerada pela sociedade. E não só impõe seus interesses, mas também constrói uma imagem de “sujeito universal” que nada mais é do que o reflexo de si mesmo: geralmente branco, cisgênero, heterossexual, rico, europeu e conservador.

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    A classe trabalhadora, formada por pessoas diversas em raça, etnia, gênero, sexualidade e cultura, perde com isso não só o controle sobre os meios de manutenção da vida, mas também de sua própria identidade e consciência da sua força coletiva. A opressão se intensifica e a ideia de um projeto em comum se esvazia, na medida em que o sucateamento da vida da classe trabalhadora demanda uma jornada pela sobrevivência, distanciada da coletividade.

    O que deveria ser uma busca coletiva por dignidade e bem-estar transforma-se numa disputa individualista por consumo, dinheiro e status. Direitos básicos, como moradia, saúde, educação e respeito à identidade, passam a ser vendidos como mercadoria. E, nesse cenário, surgem também ataques à população trans e travesti.

    Pânico moral contra a ‘ordem natural’ das coisas

    Com o uso do termo “ideologia de gênero”, setores conservadores tentam criar pânico moral e justificar nossa exclusão e violência, como se nossas existências fossem uma ameaça à “ordem natural” das coisas. Mas será que lutar por existência e pertencimento é impor alguma coisa? Se fosse assim, então a destruição do meio ambiente, o racismo, o patriarcado e a concentração de riqueza também seriam apenas “opiniões” e não fatos? E o que seria a ordem natural das coisas?

    A verdade é que essa leitura distorcida da realidade é incentivada pelas elites em momentos de crise do sistema capitalista. Quem tem o poder econômico também tem o controle da informação, da tecnologia, das armas e do discurso. Por isso, mesmo que esse modelo de sociedade seja prejudicial para a maioria, ele continua sendo defendido por quem está no topo porque mantém seus interesses garantidos.

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    No meio dessa lógica cruel, os efeitos mais brutais recaem sobre as parcelas historicamente invisibilizadas, empobrecidas, marginalizadas e precarizadas da classe trabalhadora: pessoas que vivem sob constante vulnerabilidade social e institucional, como a população trans e travesti, população de mulheres, população negra e indígena dentre outros. Já setores da classe média, por medo de “perderem o que têm” e acreditarem estar “próximos” à elite, acabam aderindo a valores parecidos, inclusive conservadores e reacionários. Acabam por servir na manutenção desse sistema de opressões e desigualdades.

    Foi em contextos parecidos com esse, que surgiram os regimes fascistas, como o nazismo na Alemanha, e os golpes de Estado que levaram a ditaduras militares na América Latina. E mesmo quando não temos um regime formalmente instalado, vivemos pequenas ditaduras cotidianas: censuras, burocracias que nos impedem de acessar direitos, autoritarismo disfarçado de normalidade. Para pessoas trans e travestis, esse tipo de violência não é novidade. Estamos falando de séculos de exclusão, violência, invisibilidade e precariedade. Nossas vidas sempre foram tratadas como descartáveis.

    O lugar de não-cidadãs

    De acordo com a pedagoga, pensadora afrotransfeminista e mestra Maria Clara Araújo dos Passos, em sua obra “Pedagogia das Travestilidades” (2022), as travestis e demais pessoas trans são banidas para um lugar de não-cidadãs, mesmo em 1988, um momento de importante reconstrução dos princípios constitucionais que sustentam os alicerces democráticos. Não por menos, a transexualidade/ travestilidade só deixa de ser considerada doença em 2022. E, ainda segundo levantamento da Folha de São Paulo (2024), há pelo menos 77 leis municipais e estaduais antitrans em vigor em 18 unidades da federação. Assim, das surdinas, nos fizeram objeto político para a manutenção da ordem.

    Aliás, os avanços tardios têm sido acompanhados de uma forte reação conservadora. E isso é reflexo direto da disputa entre as classes: quando os setores mais ricos e conservadores percebem que podem perder poder, tentam frear os avanços sociais a qualquer custo. É daí que surge a extrema-direita em vários países — espalhando mentiras, negando direitos, negando a ciência, atacando minorias e alimentando o ódio, de forma hostil e espetaculosa. Uma articulação repressiva, bélica e munida de financiamento para fazer o retrocesso.

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    Vemos isso claramente em episódios recentes. As deputadas federais Erika Hilton e Duda Salabert, por exemplo, foram notificadas pela embaixada dos Estados Unidos de que seus passaportes passariam a constar o sexo masculino, por conta de uma nova política que só reconhece dois sexos, fixos desde o nascimento. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma norma que limita o acesso de jovens trans a cuidados de saúde, travando a implantação do Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans.

    Enquanto isso, no Reino Unido, a Suprema Corte decidiu que, legalmente, o termo “mulher” se refere apenas a quem nasceu biologicamente do sexo feminino — excluindo as mulheres trans. Tais decisões não são aleatórias: são financiadas por grandes corporações, instituições religiosas e grupos anti-feministas/ anti-trans, com apoio das elites econômicas.

    Reformas só não bastam

    Tudo isso nos mostra que acreditar em soluções rápidas, dentro das regras e limites do próprio sistema capitalista, pode ser uma armadilha. Reformas são importantes, mas elas sozinhas não bastam: principalmente quando dependem de instituições que muitas vezes servem aos interesses de quem já tem tudo. Precisamos cobrar mais coerência, firmeza e compromisso real com os direitos humanos, através dos movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos comprometidos com as necessidades da classe trabalhadora. Porque nossas vidas não podem depender de uma canetada ou da vontade de quem ocupa cargos de poder. Mas a integralidade disso ainda ficaria para um mundo ideal, pois, no mundo real e capitalista, nossas existências e necessidades sempre estarão em desvantagem — mesmo em uma democracia —, uma vez que essa é manipulada pelos interesses da elite.

    Por último e sem esgotar esse diálogo, reitero a necessidade de construirmos coletivamente um novo projeto de sociedade e de mundo, e sobretudo compreendê-lo como possível além do capitalismo. Um projeto que enxergue a realidade como ela é: diversa em corpos, experiências, gêneros, sexualidades, raças e etnias, que respeite as necessidades dessa pluralidade como base para uma convivência justa e digna. Sobre isso, para quem quiser aprofundar a reflexão, convido à leitura do meu texto “O lugar da travesti na reprodução social: desmistificando o mito cisgênero interseccional para construir um trans-olhar da totalidade a partir das margens e esquinas”.

    Sophia Rivera, militante da Rede Autônoma de Travestis e Transexuais (RATTS), é fundadora e presidenta da Associação de Mulheridades, Transexuais e Travestis (AMTT), escritora transfeminista materialista decolonial, graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora de políticas de Assistência Social, Terceiro Setor e Gênero.

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