Artigo | Memória e luto: as mães que a Ponte não esquece

Mesmo depois da morte, seguem vivas as histórias de mães que enfrentaram o Estado para transformar o luto em luta por justiça — enquanto falham os órgãos competentes, como o MP, a quem cabe o controle externo da atividade policial

Perdemos duas mães essa semana. Duas mulheres que, apesar de carregarem a dor da perda de seus filhos, transformaram o luto em combustível para lutar por justiça para si e para outras mulheres — sempre elas — que se colocam na linha de frente na luta contra a violência policial. 

Cecília Lopes morreu sem ver a justiça ser feita para seu filho Lucas Lopes, jovem cabeleireiro de 23 anos morto ao ser espancado pela Polícia Militar em Sorocaba (SP), em 2019. Já Evanira Aparecida da Silva era mãe de Eduardo da Silva, um dos nove mortos durante o Massacre de Paraisópolis, também em 2019. Ano passado, perdemos Francilene Gomes, que se tornou pesquisadora e integrante das Mães de Maio para denunciar o desaparecimento do irmão Paulo Alexandre durante os Crimes de Maio de 2006. Dona Zilda Laurentino, mãe de Laura Vermont, jovem travesti morta em  2015 pela violência transfóbica, também nos deixou. 

Leia mais: Morre Cecília Lopes, mãe e ativista que transformou dor da violência policial em propósito

Essa série de falecimentos deixou a equipe da Ponte reflexiva. Acompanhamos a luta dessas mulheres e muitas outras ao longo desses 11 anos de existência. Em mais de um caso, vemos como elas se colocam em um papel de conhecedoras do direito para cobrar um direito básico: investigação, julgamento, memória e reparação.

Sabemos que quem deveria atuar nisso é o Estado, sobretudo o Ministério Público, cujo papel de controle externo da atividade policial está definido na Constituição Federal. Entretanto, conforme nossa ex-colega Jennifer Mendonça apontou em reportagem para Agência Pública, apenas 4% dos promotores acreditam que essa é uma prioridade do trabalho deles — de acordo com uma pesquisa realizada pelas universidades UFMG, Unirio e Unicamp.  

Encarando ameaças e muitas vezes abrindo mão de suas atividades profissionais, essas mães sequer podem contar com um acompanhamento psicológico especializado ao longo de suas trajetórias. Algumas tornam-se pesquisadoras com bolsa para poder sobreviver enquanto ativistas. Outras precisam fazer vaquinha. São mulheres da classe trabalhadora, que começaram a trabalhar ainda meninas, mães solos, e que têm o rumo da vida alterado de forma irreparável. 

Leia mais: Morre Evanira da Silva, mãe à espera de justiça cinco anos após massacre de Paraisópolis

É a inércia do Estado e da sociedade também que força essas mulheres a lutar. É a falta de um sistema de investigação eficiente e de um controle externo da atividade das forças de segurança que lança essas mães, irmãs e tias na busca de direitos que lhes seriam naturalmente garantidos por lei. Elas carregam o luto no peito e seguem na luta, mas quem ouve seus medos, seus traumas? Quem ouve essas humanas? Porque é isso que são: humanas que seguem sem amparo para o que lhes vai à mente.

São celebradas por sua luta, mas não têm quem ouça suas angústias, ansiedades e medos. Quem cuida das mães que lutam? 

Como disse em um texto de outubro do ano passado, “essas mulheres nunca pediram para virar referências de luta. Foi a violência genocida que as impeliu a pressionar as autoridades para que a justiça seja feita”. Enquanto o Estado não assume sua obrigação de cuidar do bem estar dessas mulheres, elas seguem lutando nas ruas e nos tribunais, na academia e nos gabinetes no Curió, em Londrina, no Nordeste, em Manguinhos, em Osasco e em toda América Latina. Elas sistematizam essa batalha e apoiam umas às outras numa grande rede tecida em apoio e afetos por justiça, memória e reparação. 

Elas querem parir um novo país para que nenhuma outra mãe perca seu filho para o Estado. 

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