Museu Penitenciário Paulista: silenciamento de uma história de massacre

     

    A única narrativa que o poder público é capaz de contar é a da repetição e reedição de dores e massacres, e da manutenção de um sistema prisional que reconta centenas de mortes todos os anos, sem jamais assumir sua responsabilidade pela barbárie

    Movimentos sociais promovem ato em memória para relembrar, vinte e quatro anos depois, o massacre do Carandiru. | Foto: Sérgio Silva

    No ano de 2017 completam-se 25 anos do maior massacre da população prisional da história do Brasil. Desde que mais de 111 pessoas foram assassinadas pelas mãos da Polícia Militar no Carandiru, em 1992, a população prisional aumentou em números estratosféricos e as condições de aprisionamento só reforçaram o caráter de tortura do ambiente prisional. Nas primeiras duas semanas deste ano, mais de 130 pessoas morreram em presídios do Norte e Nordeste do país.

    Em julho próximo, o Museu Penitenciário Paulista completará três anos desde que foi aberto em São Paulo para visitação pública. Inaugurado em uma das beiradas escondidas do Parque da Juventude, onde ficava o antigo Complexo do Carandiru, na capital paulista, o local se propõe a ser um espaço de “reflexão sobre a história penitenciária e a pena”. São poucos os que, mesmo frequentando a região ou trabalhando com o tema, conhecem as salas dessa singular exposição.

    Se coube à Secretaria da Cultura falar sobre as violações durante o período da ditadura civil-militar, por meio do Memorial da Resistência, cujo foco de exposição recai sobre o período de 1964 a 1985, foi atribuída à Secretaria da Administração Penitenciária a tarefa de tratar do cárcere, estrutura que se manteve, antes, durante e depois do período da ditadura a violar direitos todos os dias.

    Diante da barbárie que se mostra enquanto projeto do sistema prisional, a contabilização das mortes do início do ano não surpreende. No Rio de janeiro, nos primeiros 10 dias de 2017, 10 pessoas morreram sem que qualquer massacre ou briga de facções fosse anunciada. Em pleno século XXI, os mecanismos de controle, manutenção e acobertamento dessa máquina de produção de morte e tortura ganharam novas formas, mas o alvo claramente posicionado sobre a população pobre, preta e periférica não se abalou.

    Possibilitar à cidade e à sociedade marcar de outras formas lugares e episódios cujas entranhas estão cobertas por violência é abrir espaço para a reconstrução da memória e para a criação de formas de elaboração coletiva da dor. Nada mais justo do que imaginar um museu, construído sobre o antigo Carandiru, e capaz de expor as violências e os sofrimentos locais. Entretanto, a visita à exposição surpreende em seu poder de silenciamento.

    Um silêncio que denuncia que o Estado é incapaz de nomear essa estrutura de tortura e assumir a sua responsabilidade pela barbárie: a única narrativa que o poder público é capaz de contar é a da repetição e reedição de dores e massacres, e da manutenção de um sistema prisional que reconta centenas de mortes todos os anos.

    Caramante
    O Carandiru – Foto: João Wainer – Acervo Pessoal

    Entre várias outras passagens impressionantes, há uma sala, na exposição, em que é traçada a trajetória do Complexo do Carandiru desde a sua fundação até a implosão e construção do Parque da Juventude, em 2003. Qualquer visitante minimamente atento à história recente do Brasil, direciona o olhar para o ano de 1992, bem no meio da linha do tempo, no painel sobre o Complexo do Carandiru.

    Em se tratando de um Museu do Estado, o grande responsável pelo massacre de mais de 111 pessoas no dia 02 de outubro de 1992, em uma “intervenção” da Polícia Militar no Pavilhão 09 do Complexo do Carandiru, difícil imaginar que a menção ao Massacre fosse vir acompanhada do reconhecimento das atrocidades cometidas. Seria possível imaginar que o museu forneceria justificativas como a culpabilização das vítimas e a alegada “legítima defesa”.

    Em vez disso, no ano de 1992 da tão informativa Linha do Tempo do Carandiru, o que ocorreu, de acordo com a versão do Museu Penitenciário Paulista, foi: “’Motim’ no pavilhão 9, com intensa repercussão nacional e internacional”. E só.

    Massacre, 111 assassinatos, violência do Estado, Polícia Militar? Nada. Em relação a 1992, e justificado de forma silenciosa, por salas iniciais da exposição que misturam “curiosidades” sobre “o criminoso”, com um arsenal teórico que encerra o pensamento da criminologia em Lombroso, e pela ideia de que o Pavilhão 9 era habitado por presos que “facilmente entravam em conflito”, o Museu do Governo do Estado de São Paulo silencia a história de um dos mais marcantes episódios de sua trajetória de violência, e oferece ao visitante a informação de um “motim”.

    Nesses 25 anos, a única resposta possível está nas ruas e nas vozes de quem luta diária e incessantemente contra a violência de Estado e por um mundo sem prisões. Mais uma vez o Estado tenta apagar essa memória, mais uma vez é preciso dizer: “Tentam nos enterrar, mas somos semente”. Não esqueceremos.

     

    * Luisa Cytrynowicz é assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional

     

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