“Foi uma morte condenar o menino a onze anos pelo que não foi dele”, diz mãe de Rafael Braga

    Em ato que reuniu dezenas de pessoas no Centro do Rio para pedir a liberdade do ex-catador de latas preso injustamente, Adriana Braga fala à Ponte sobre seu sentimento diante da notícia da condenação do filho a 11 anos de prisão

    “Foi uma morte condenar o menino a onze anos pelo que não foi dele, forjado. Não consigo viver ainda não. É só tristeza. De vez em quando chorando. Não vou me conformar nunca com isso aí. Onze anos de prisão, não vou me conformar. É uma injustiça o que eles fizeram”, desabafa Adriana Braga, mãe do ex-catador de latas Rafael Braga Vieira, em entrevista à Ponte Jornalismo, sobre a decisão do juiz Ricardo Coronha Pinheiro, que, no dia 20 de abril, condenou o ex-catador de latas a onze anos e três meses de prisão, por tráfico e associação ao tráfico de drogas.

    Depois de trabalhar durante o dia catando latas e visitar o filho na prisão, como faz às quintas-feiras, Adriana foi cansada para o ato pela liberdade de Rafael, que, na noite desta quinta-feira (22/6), reuniu dezenas de pessoas na porta do TJRJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro), no Centro da capital fluminense, reforçando o apoio de ativistas e movimentos de favelas a Rafael Braga e seus advogados de defesa, que aguardam a abertura do prazo para fazer as apelações.

    Para Adriana Braga, notícia da condenação do filho “foi uma morte” | Foto: Luiza Sansão

    Indignados, levando faixas e clamando pela liberdade de Rafael Braga, ativistas e mulheres que tiveram seus filhos mortos por policiais caminharam até a Lapa, percorrendo as ruas Erasmo Braga, Sete de Setembro, avenida Rio Branco e Evaristo da Veiga, onde atraíram a atenção de pessoas bem-vestidas que chegavam ao imponente Theatro Municipal, contando, no alto e bom som de um megafone, quem é Rafael Braga e por que tanta gente estava ali, reunida, para pedir sua liberdade.

    Adriana Braga de mãos dadas com as mães de vítimas de violência de Estado Irone Santiago e Ana Paula de Oliveira | Foto: Luiza Sansão

    Para o advogado Carlos Eduardo Martins, do DDH (Instituto de Defensores dos Direitos Humanos), que atua na defesa de Rafael desde dezembro de 2013, após sua condenação em primeira instância, a mobilização pela liberdade do ex-catador de latas é um apoio muito importante no sentido de “mudar a opinião pública, não só no estado do Rio, mas no Brasil, para o caso que é o espelho da realidade de uma juventude negra, pobre, que abarrota o sistema carcerário do Rio e do Brasil”. Além disso, Martins acredita na necessidade de sensibilizar o Judiciário.

    “A linha de argumentação jurídica está estruturada no sentido da injustiça da condenação do Rafael. O que falta é uma campanha de sensibilização para sacudir as bases do Judiciário, para que ele repense sobre seu papel de garantidor dos direitos fundamentais, principalmente para essa juventude negra, pobre, proletária, que tem sistematicamente seus direitos violados por uma atuação que não respeita minimamente o seu caráter dignitário de ser humano”, afirma o advogado.

    Ativista brada palavra de ordem pela liberdade de Rafael Braga durante ato na frente do TJRJ. | Foto: Luiza Sansão

    Quatro anos de prisão

    No último dia 20, completaram-se quatro anos que o jovem, hoje com 29 anos, foi preso injustamente, acusado de portar material explosivo quando levava apenas dois frascos lacrados de produto de limpeza em 20 de junho de 2013, quando quase um milhão de pessoas tomaram a região central da capital fluminense para protestos cuja motivação o então catador de latas desconhecia.

    O jovem negro, pobre, morador de favela e analfabeto foi preso como se pretendesse usar como “coquetel molotov” — que ele sequer sabia o que era — um frasco plástico de desinfetante Pinho Sol e outro de água sanitária da marca Barra, na manifestação que ele não sabia por que estava acontecendo.

    Para ele, “não são só 20 centavos” e outras frases cunhadas em cartazes e palavras de ordem contra os governos do estado e do país naquele junho não faziam o menor sentido. Ele não sabia sequer quem era o governador do Rio ou o prefeito da cidade na qual ele sempre ocupou apenas a margem. Recolher latas e outros materiais recicláveis pelas ruas movimentadas do Centro era o mais perto que ele chegava da visibilidade — que era nenhuma, até ele se tornar símbolo da seletividade do sistema penal brasileiro, com seu rosto estampado em muros por toda a cidade.

    Rafael Braga, em 2015, no escritório onde trabalhou durante o regime semiaberto e aberto | Foto: Luiza Sansão

    “Tão famoso, mas sempre na cadeia”, disse sua mãe à Ponte em fevereiro deste ano. O “sempre” faz já referência à segunda injustiça de que Rafael foi vítima, prolongando sua história no sistema carcerário do estado do Rio. Em 12 de janeiro do ano passado, Rafael encontrava-se em regime aberto com uso de tornozeleira eletrônica, havia pouco mais de um mês, quando foi preso novamente.

    A prisão ocorreu quando ele caminhava da casa de sua mãe para uma padaria na Vila Cruzeiro, favela no bairro Penha, zona norte do Rio, onde vive sua família. Segundo Rafael, tudo o que levava consigo eram os três reais com os quais compraria pães, a pedido de sua mãe, Adriana, por volta das oito horas da manhã.

    “Eu não tinha nada, estava de mãos vazias. Só o que eu tinha era a tornozeleira mesmo e os três reais na mão”, disse ele ao juiz Coronha Pinheiro em audiência acompanhada pela Ponte em junho do ano passado. “Não tinha nenhum entorpecente, nunca fui de boca de fumo, sou trabalhador, auxiliar de serviços gerais no Escritório João Tancredo, na [avenida] Rio Branco”, afirmou, referindo-se ao local onde trabalhou regularmente durante o período que passou em regime semiaberto e aberto.

    “Eu cheguei lá, eles já me puseram no canto da parede, já me chamaram para dentro de um quintal que estava com o portão aberto, um beco estreito, e começaram a me perguntar ‘eu sei que você mora aqui, que você sabe quem são os caras que são os bandidos, você sabe quem é o dono da favela, e você vai dar alguma arma pra nós, alguma droga pra nós’. Eu falei ‘não sei não, senhor; não sou bandido, sou honesto, saio daqui pra trabalhar e voltar pra casa, não fico com bandido, sou só morador mesmo’”, prosseguiu o ex-catador de latas.

    Os policiais, então, seguiram afirmando que ele sabia sim, que ele teria “que dar armas pros caras”, enquanto ele se limitava a responder que não sabia quem eram “os caras” a quem os policiais se referiam e que “não tinha nada para dar para eles”. Enquanto quatro policiais o acuavam dentro do beco, outros dois ficaram do lado de fora, segundo Rafael. “Quando eles viram que eu não tinha nada para dar para eles, um gritou o outro, e esse outro já veio com uma bolsa azul e falou ‘tá vendo essa bolsa aí? A gente vai jogar em cima de você se você não falar!’”, contou ele, que seguiu dizendo aos policiais que não tinha como dizer nada porque nada sabia.

    Levado à UPP Vila Cruzeiro e, em seguida, à 22ª Delegacia de Polícia (Penha), Rafael voltou à prisão. 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão, cujo porte lhe foi atribuído pelos policiais que o prenderam, foram suficientes para que ele fosse condenado por tráfico de drogas e associação para o tráfico, embora Rafael tenha alegado, desde o seu primeiro depoimento, ainda na delegacia, que aquele material não lhe pertencia.

    A despeito das contradições apresentadas pelos policiais militares que o prenderam, do depoimento de uma testemunha de defesa que viu o momento em que Rafael foi abordado e das diligências requeridas por sua defesa, representada pelo DDH (Instituto de Defensores de Direitos Humanos), que não foram atendidas, ele foi condenado, com base apenas na palavra dos policiais.

    “Ele devia estar na rua, no trabalhinho dele em que ele tava”, diz Adriana, referindo-se ao Escritório de Advocacia João Tancredo. “Mesmo catando a latinha dele, nunca roubou nem matou ninguém e nunca vendeu droga. Eu queria que ele ainda ficasse livre, mas a Justiça do Estado é muito ruim. Eles fazem o que eles querem, então ele vai continuar lá”, completa Adriana Braga. “Acho que nenhum traficante pega o que meu filho pegou. Ele ainda não se conforma”, afirma.

    Versão dos policiais

    Os PMs da UPP Vila Cruzeiro Pablo Vinícius Cabral, Victor Hugo Lago, Farley Alves de Figueiredo e Fernando de Souza Pimentel, que abordaram e prenderam Rafael na manhã do dia 12 de janeiro de 2016, apresentaram suas versões, em audiências acompanhadas pela Ponte no ano passado, nas quais caíram em diversas contradições.

    Ouvido pelo Juízo em 12 de abril do ano passado, Cabral afirmou que os PMs faziam uma operação na região na manhã do dia 12/01 porque havia “engenheiros fazendo metragem” no local e, quando receberam a denúncia do morador, ele e os colegas se depararam com um grupo de pessoas, e todas teriam corrido em fuga, restando apenas Rafael com uma sacola plástica nas mãos, contendo “drogas e um ou dois morteiros”. Entretanto, na versão apresentada ainda na delegacia, quando Rafael foi preso, ele havia dito que o grupo de PMs fazia um patrulhamento rotineiro na comunidade Vila Cruzeiro quando um morador informou um dos policiais de que havia uma pessoa vendendo drogas na região conhecida como “Sem Terra”, e os policiais então se dirigiram ao local, deparando-se com Rafael.

    Indagado pelos advogados de defesa de Rafael sobre ter afirmado no primeiro depoimento que se tratava de um patrulhamento rotineiro, Cabral respondeu que “operação na favela é todo dia” e naquele dia especificamente a operação foi motivada pela presença dos engenheiros. Sobre ter alegado anteriormente que, quando chegaram ao local denunciado pelo morador, encontraram apenas “um meliante”, e na audiência ter afirmado que havia um grupo, o PM respondeu que “devia ter uns dois ou três, mas os outros correram”.

    Em audiência realizada um mês depois (11/5), o policial Lago afirmou que eles estavam “fazendo a segurança de uma equipe de engenharia” que trabalhava na comunidade naquela manhã, quando foram avisados, por um soldado chamado Lopes, de que “havia venda de drogas na Rua 29” (localidade conhecida como “Sem Terra”) e se dirigiram para o local. Se no depoimento de Cabral, a denúncia tinha vindo de um morador, no de Lago a mesma tinha vindo de um PM.

    Cabral havia dito que, antes de ser conduzido à 22ª DP, Rafael fora levado à sede da UPP local, versão que consta no registro da ocorrência e que é confirmada também por Rafael. Já Lago afirmou que eles o levaram diretamente para a delegacia, sem parar na UPP. Além disso, o primeiro policial afirmou que Rafael foi levado na caçamba da viatura, ao passo que o segundo disse que ele foi colocado no banco de trás.

    Ambos disseram que havia mais pessoas com Rafael e que essas pessoas correram quando viram a polícia, mas o primeiro afirmou que Rafael, único a ficar, carregava uma sacola contendo “drogas e um ou dois morteiros”, largou a sacola no chão e permaneceu parado, próximo a ela. Já o segundo disse que ele largou a sacola e continuou andando – na direção dos policiais.

    “Quando avistei o acusado, ele estava numa curva com um pessoal, soltou a sacola, os outros fugiram e ele continuou andando”, afirmou Lago, que disse ter visto o jovem a uma distância de aproximadamente 50 metros. Indagado pela defesa sobre a direção em que Rafael caminhava, ele respondeu que na direção de onde estavam os policiais.

    Lago também contradisse Cabral ao afirmar que o local onde Rafael foi detido era uma “boca de fumo”. Seu colega havia dito, na audiência anterior, que não era uma “boca” (local de comercialização de drogas), segundo um dos advogados de defesa de Rafael, Ednardo Mota, do DDH (Instituto de Defensores de Direitos Humanos), em entrevista à Ponte após a audiência.

    Lago alegou ainda que ele e Cabral foram os policiais que revistaram Rafael. Cabral, entretanto, afirmou, na primeira audiência, que a revista fora feita por outra equipe, lembrou Mota, ao apontar algumas das contradições no depoimento dos policiais.

    Apesar de ter dito que ele mesmo pegara a sacola, Lago não soube precisar o material entorpecente supostamente encontrado com o ex-catador de latas. Quando perguntado sobre isso pela defesa, apenas dizia, de forma vaga e evasiva, que Rafael carregava uma sacola contendo “drogas e fogos”. Questionado pelos advogados sobre que drogas encontrou, ele afirmou não se lembrar bem, devido ao número de prisões que efetua no dia a dia, só que “tinha cocaína”.

    Na audiência seguinte, realizada em 7 de junho do ano passado, foram ouvidos os PMs Farley e Pimentel, convocados a depor após terem sido citados nos depoimentos dos colegas que depuseram anteriormente como integrantes da guarnição que se encontrava no patrulhamento de engenheiros que estariam “fazendo metragem” no local para a construção de uma cabine policial. Nenhum dos dois soube precisar se havia um ou mais engenheiros no local.

    O cabo Farley afirmou não saber se o material supostamente encontrado com Rafael encontrava-se numa sacola ou no corpo do jovem. “Depois que eles recolheram [o material] é que eles trouxeram até mim”, disse o PM, que afirmou ter revistado Rafael após a droga ter sido encontrada pelos dois colegas que estavam à frente da guarnição. Ele também disse que lembrava de ouvir o jovem dizer que a droga não lhe pertencia.

    Enquanto os colegas que depuseram anteriormente afirmaram que Rafael foi encontrado com mais pessoas e que estas teriam corrido, restando somente o ex-catador de latas na localidade conhecida como “Sem Terra”, na Vila Cruzeiro, Farley e Pimentel afirmaram não se lembrar se ele estava sozinho ou em grupo e não terem presenciado a abordagem de Rafael.

    Cabo Pimentel disse que soube pelos policiais que estavam à frente que havia um elemento fazendo tráfico na referida localidade, e que este teria tentado se desfazer do invólucro. Também afirmou não saber se Rafael foi encontrado sozinho ou em grupo. Ele disse ainda que não se recordava se a tornozeleira foi retirada de Rafael, mas que todos os policiais “observaram que ele usava uma tornozeleira”.

    Como o soldado Lago afirmou, na audiência realizada em abril, que a patrulha foi avisada por um soldado chamado Lopes, que seria de outra guarnição policial, de que “havia venda de drogas na Rua 29” (“Sem Terra”), motivo pelo qual se dirigiram ao local, a defesa de Rafael questionou os PMs que depuseram ontem sobre este fato. Farley afirmou não se lembrar disso e Pimentel disse que ele não havia falado com Lopes e não sabia se outro colega o havia feito.

     

    Adriana recebe apoio das Mães de Manguinhos, Fátima Pinho (à esquerda) e Ana Paula de Oliveira (à direita) | Foto: Luiza Sansão
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