Munição que matou Marielle é do mesmo lote que já havia sido usado na chacina de Osasco; para especialista, desvio pode ter acontecido no fabricante ou na Polícia Federal
Faz dois anos que um lote de munições 9 mm fabricada pela empresa CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos) e vendida à Polícia Federal vem deixando um rastro de mortes de pessoas negras e faveladas, a mais de 450 quilômetros de distância uma das outras. Segundo o jornal Extra, investigações da Polícia Civil carioca a respeito da morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, na última quarta-feira (14/3) apontam que a munição 9 mm usada no crime pertence ao mesmo lote usado na maior chacina da história de São Paulo, em que policiais militares e pelo menos um guarda civil metropolitano mataram 23 pessoas em Osasco, Carapicuíba, Baueri e Itapevi, na Grande SP, em 2015.
Até o momento, as investigações descobriram o início da trajetória dessa munição. A origem é legal: em 2006, o lote foi vendido pela empresa CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos) à Polícia Federal do Distrito Federal. O que aconteceu nos anos seguintes, e como as munições que deveriam estar nas pistolas de policiais federais na capital do país foram parar dentro de corpos de pessoas como Marielle ou as vítimas de Osasco, é algo que ainda falta descobrir.
A Ponte conversou com Marcos Camargo, presidente da APCF (Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais), e ele disse que há vários caminhos que poderiam explicar o extravio dessa munição. A investigação, segundo o perito, deveria começar pela empresa e depois focar a Polícia Federal.
“Pode haver algum desvio na empresa. O lote [pode] ter sido roubado, furtado. Via de regra, em casos de lote furtado, tem B.O. [boletim de ocorrência]. Essa pode ser uma munição regular decorrente de furto. Ou, então, [pode ter havido] desvio na linha de produção, [ou um] desvio de uma força policial dentro da PF… São várias as possibilidades e, nesse caso, não se pode descartar a possibilidade de como é o controle da empresa para garantir que isso foi mesmo para a Polícia Federal”, sustenta Camargo.
Caso seja comprovado que houve o procedimento correto da empresa na entrega da encomenda à PF, aí será vez da corporação responsável dar explicações acerca das munições. “Superada essa etapa, comprovado que [o lote] foi para a PF, aí vamos ver a segunda etapa: o que aconteceu dentro da PF?”, pondera Camargo.
“O controle da polícia é interno na distribuição das munições. Normalmente, uma unidade recebe uma quantia mediante um estudo de logística. Feito o pedido, vai para determinada superintendência. Em tese, está tudo registrado justamente para evitar desvios. Se é detectado desvio por alguma razão, o procedimento inicial para apurar é abrir processo disciplinar, apurar o que aconteceu e abrir sindicância para averiguar motivo. Se constatado na sindicância, um processo administrativo é aberto e vai avaliar o responsável, a materialidade e autoria”, diz.
Nesta sexta-feira (16/3), o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse que o lote de munição teria sido roubado na Paraíba, sem dar detalhes. “Essa munição foi roubada na sede dos Correios, pela informação que eu tenho, anos atrás na Paraíba. E a Polícia Federal já abriu mais de 50 inquéritos por conta dessa munição desviada”, declarou o ministro, segundo o G1.
A maior das chacinas
A maior chacina ocorrida nas ruas de São Paulo — atrás apenas do massacre do Carandiru, que matou 111 detentos dentro da Casa de Detenção, em 1992 — deixou 17 pessoas mortas em 13 de agosto de 2015, além de outras seis vítimas assassinadas no que ficou conhecido como pré-chacina. Pelas mortes, o tribunal do júri condenou os policiais militares Fabrício Eleutério a 255 nos de prisão, Thiago Henklain a 247 anos e Victor Cristilder dos Santos a 119 anos. O GCM Sérgio Manhanhã recebeu pena de 100 anos.
O promotor Marcelo de Oliveira, que atuou no júri da chacina, disse ao Uol ter ouvido de uma testemunha, um capitão reformado do Exército, que um sargento teria sido demitido por ter extraviado munição para o Rio de Janeiro.
A CBC tem sede em Ribeirão Pires, na Grande SP. Fundada em 1926 pela família Matarazzo sob o nome FNCM (Fábrica Nacional de Cartuchos e Munições), tinha como objetivo parar de importar munições para as caças a tiros feita por membros da família, segundo o site da CBC. Seis anos mais tarde, a empresa passou o controle acionário para a Remington Arms (dos EUA) e ICI (Inglaterra) e passou a se chamar CBC. A produção de calibre 9mm, usada nos assassinatos no RJ e em SP, tornou-se internacional em 1975. Quatro anos mais tarde, voltou a ser nacionalizada. Hoje, a fabricante de munições está presente em 130 países.
O site do DPFC (Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados), do Comando Logístico do Exército, detalha as regras para membros da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal adquirirem e terem acesso a armamentos. No mercado nacional, estão liberados a comprarem apenas duas armas de uso restrito, sendo estas de calibres .40 S&W, .45 ACP e .357 Mag, com limite de 600 munições por ano a cada armamento. Os pedidos são feitos através da PF.
Outro lado
A Ponte entrou em contato com a CBC por telefone por volta de 15h. Em duas chamadas, as ligações foram atendidas e, logo em seguida, desligadas, sem resposta. Às 18h15 minutos, um funcionário atendeu e explicou que somente pessoas do setor jurídico ou do controle de munições poderiam se pronunciar sobre o caso. Solicitou à reportagem que ligasse no horário comercial na terça-feira (20/3), pois segunda-feira (19/3) é feriado em Ribeirão Pires.
Questionada, a a assessoria de imprensa da Polícia Federal não se manifestou.