Encontro da Rede Global de Mães em Resistência formado por mulheres de 3 países é marcado por manifesto em repúdio à violência de Estado que mata negros, pobres e periféricos
“Nós encontramos aqui [na Colômbia] várias mães com histórias de desaparecimento forçado. Em alguns casos foi o Exército colombiano, em outros, grupos paramilitares. É uma diversidade muito grande de violações, mas não é muito diferente do que passamos aí no Brasil, só muda de endereço e de país”, explica Débora da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio em entrevista à Ponte, direto de Cali, na Colômbia. Débora e outras mulheres que perderam familiares – a maioria filhos – vítimas da violência de Estado participaram do III Foro Internacional – El duelo como resistência (o combate como resistência), na Universidade Icesi, em Cali, na Colômbia, na última sexta-feira (7/9).
As duas primeiras edições do seminário aconteceram nos Estados Unidos – Nova York e Chicago – e dessa vez a vizinha Colômbia foi a escolhida. A previsão é que no ano que vem o encontro aconteça no Brasil.
Para Débora, o evento foi um momento muito emocionante e de grande importância de troca de experiências que ajudou a fortalecer a Rede Global de Mães em Resistência, que reúne grupos de mães que lutam por justiça pela perda dos filhos nos Estados Unidos e na América Latina. Além de Débora, representavam o Brasil Rute Fiúza, mãe de David que, aos 16 anos, desapareceu após abordagem policial em Salvador, e Railda Alves, fundadora da Amparar, associação que presta auxílio aos familiares de presos.
Débora teve a oportunidade de falar do movimento Mães de Maio, que surgiu em 2006 depois dos “Crimes de Maio”, quando mais de 500 pessoas morreram em ofensiva das forças policiais para conter ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital). O filho de Débora, Edson Rogério Silva dos Santos, foi morto em um posto de gasolina no dia 15 de maio daquele ano. Rute Fiuza, que representa o movimento no nordeste do país, também teve oportunidade de contar a sua história: o filho, David, desapareceu aos 16 anos em Salvador após abordagem policial. Nesta segunda-feira (10/9), ela soube que o MP-BA denunciou 7 policiais pelo crime de desaparecimento de David, mas não pela morte dele. Railda Alves partilhou da luta a frente da Amparar e denunciou o encarceramento em massa no Brasil.
“É muita força tudo isso. Força de mulheres negras aqui na Colômbia, mulheres combatentes, me dá muito orgulho fazer parte de tudo isso. A luta está cada vez mais forte”, afirmou Débora, emocionada.
No sábado (8/9), as Mães de Maio estiveram com as Madres Falsos Positivos (expressão semelhante aos autos de resistência no Brasil) de Soacha e Bogotá – MAFAPO – e Las Madres de la Massacre de Bojayá em um encontro no Centro Cultural El Chontaduro, no distrito de Aguablanca, também em Cali.
“Quando chegamos em Aguablanca, uma das mães que ia participar do evento com a gente tinha acabado de saber que mataram o filho dela, o Yago. Os paramilitares mataram. A gente se deparou com uma tristeza muito grande, mas também um cultura muito impressionante”, conta Débora. “Para poderem suportar a dor da perda elas cantam uma música em homenagem ao menino morto e ao mesmo tempo bebem. É a maior tristeza, um momento de muita tristeza, mas ao mesmo tempo de união”, conta Débora Silva.
Ao final do encontro, a Rede Global de Mães em Resistência fez um manifesto em favor da vida e contra todo o tipo de violência de Estado. No documento, divulgado com exclusividade pela Ponte, as mulheres afirmam que “lutam com o útero e que a dor que sentem não tem fronteiras”. Em outro trecho, denunciam a violência e cobram justiça nos casos: “Jovens seguem morrendo nas ruas das periferias de Cali, Bogotá, Soacha, São Paulo, Salvador e Chicago. O Estado segue sem responder pelos falsos positivos, o massacre de Bojayá, os crimes de Maio em São Paulo, os desaparecimentos forçados na Colômbia e Brasil, o encarceramento em massa e o genocídio de negros e pobres pelas instituições de estado de todas as Américas. Em todos os nossos países, vivemos a mesma realidade: o estado com a sua ausência não nos cuida e com sua presença nos encarcera e nos mata”.
Confira o Manifesto do III Encontro da Rede Global das Mães em Resistência:
“Nós, mães de vítimas do terrorismo de Estado em toda a América, representando as organizações de direitos humanos Casa Cultural El Chontaduro, Madres de Falsos Positivos de Soacha e Bogotá, Mulheres de Guayacán de Bellavista, Escuela Socio-Política de Mulheres de Bellavista, Mães de Maio, Associação Amparar – Familiares Presos e Presas, e as fundações Ronnieman e Courtney Copeland (EUA), estamos reunidas na Colômbia para nosso III Encuentro de la Red Global de Madres en Resistencia. Criamos essa rede para exigir justiça social com o objetivo de construir a paz na América Latina.
Em um marco de nosso encontro, recebemos a trágica notícia de uma das mães integrantes desse processo de luta, que havia sofrido novamente a perda do filho, vítima de múltiplas formas de violência. Foi através do assassinato do primeiro filho, sob as mesmas circunstâncias, que essa mãe resolveu fazer parte dessa rede global. Essa situação irreparável frustrou a sua participação neste encontro, impedindo que pudesse se amparar e se fortalecer através da nossa rede.
Repudiamos a máquina estatal feita para matar jovens negros e pobres de bairros periféricos e vulneráveis abandonados pelo Estado, que deveria aplicar políticas sociais e garantir os direitos humanos, principalmente o direito à vida. Em solidariedade com essa mãe e com todas as mães que enfrentam essa luta, nos fazemos presentes para declarar que nossos mortos têm voz e que nossos mortos têm mães.
Nós seguimos unidas diante de uma realidade que não distingue fronteiras. Jovens seguem morrendo nas ruas das periferias de Cali, Bogotá, Soacha, São Paulo, Salvador e Chicago. O Estado segue sem responder pelos falsos positivos, o massacre de Bojayá, os crimes de Maio em São Paulo, os desaparecimentos forçados na Colômbia e Brasil, o encarceramento em massa e o genocídio de negros e pobres pelas instituições de estado de todas as Américas. Em todos os nossos países, vivemos a mesma realidade: o estado com a sua ausência não nos cuida e com sua presença nos encarcera e nos mata.
Nós lutamos com o útero, nossa dor não tem fronteiras. Até quando seguiremos perguntando a quem dói os nossos mortos? Quem pagará por isso? Quando o Estado atuará no sentido de dar uma reposta a dor dessas mães?
Basta! Por nossos mortos nem um minuto de silêncio, uma vida inteira de luta até que sejamos livres”