Coordenado pelo Instituto Vladimir Herzog, projeto “Heroínas dessa História” visa dar visibilidade às trajetórias de mulheres que até hoje buscam respostas por familiares mortos e desaparecidos
“A repressão considerava as mulheres como incapazes, como frágeis. Mas mostramos que tivemos muito mais coragem do que os homens para lutar cara a cara, olho no olho”, destaca com entusiasmo Crimeia Schmidt de Almeida, que foi guerrilheira, militante do Partido Comunista do Brasil durante a ditadura militar e atualmente ativista da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
No período, Criméia havia entrado para a clandestinidade após a decretação do AI-5, em 1968. Ela era responsável por realizar a comunicação entre guerrilheiros e militantes do partido quando, em dezembro de 1972, grávida de seis meses e meio foi sequestrada junto com os sobrinhos, presa e torturada durante a Operação Bandeirante (Oban), em que militares capturavam pessoas consideradas “subversivas” ao regime em São Paulo. Seu filho, João Carlos, nasceu no Hospital da Guarnição do Exército e o pai, um dos comandantes da guerrilha do Araguaia, Andre Grabois, não o conheceu. André está desaparecido desde 14 de outubro de 1973. “Diversas vezes o general ameaçava levar meu filho, dizendo que um militar queria trocar a filha dele pelo o meu porque para eles as crianças que valiam eram homens, brancos e saudáveis”, lembra.
Sua irmã, Amelinha Teles, também foi presa e torturada em 1972. Em 2005, Criméia e seus familiares moveram uma ação declaratória contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-Codi na época. Ustra levou os dois filhos de Amelinha para vê-la espancada, vomitada e urinada. A resposta só veio três anos depois, quando pela primeira vez a justiça paulista reconheceu um agente da ditadura como torturador. “Eu percebo que eu poderia ter me tornado uma desaparecida. Mas como estou ainda aqui, eu uso a minha voz para ser a voz dos que foram silenciados porque a violência não foi só contra mim, ela foi coletiva, então a luta também é coletiva”, declarou Criméia.
A história de Criméia e de mais 14 mulheres que atuaram e continuam atuando pela memória, justiça e reparação por familiares mortos e desaparecidos pela ação do Estado será reunida em uma primeira coletânea intitulada “Heroínas dessa História”, projeto desenvolvido pelo Instituto Vladimir Herzog e que será lançado no início de 2019.
“Nós percebemos que as mulheres que perderam seus familiares para as mãos do Estado eram sempre mencionadas de forma secundária, era ‘a viúva ou a irmã de alguém’, então é um trabalho inédito que busca homenageá-las, manter a memória viva e pressionar por respostas”, explica a jornalista Tatiana Merlino, uma das coordenadoras da coletânea. Tatiana também é sobrinha do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e morto em 1971, e que em outubro os desembargadores do Tribunal de Justiça anularam uma ação movida pela família por danos morais.
Em roda de conversa na Unibes Cultural, na zona oeste da capital paulista, no sábado (15/12), as presentes também fizeram um minuto de silêncio pela advogada Eunice Paiva, que faleceu aos 89 anos na quinta-feira (13/12), mesmo dia em que a decretação do AI-5 completou 50 anos, devido a complicações do Alzheimer, doença que tinha desde 2004. Eunice é uma das perfiladas do projeto por ter se tornado um símbolo da luta contra a ditadura. Ela passou a cursar Direito para buscar informações sobre o paradeiro do marido, o deputado Rubens Paiva, que foi preso, torturado e assassinado nos porões do DOI-Codi em janeiro de 1971.
De acordo com Merlino, a pesquisa identificou 70 mulheres que lutaram incansavelmente por justiça no período. Porém, o volume de estreia contará com os perfis das que ainda estão vivas. “Esse é um projeto permanente que também contará as histórias das que faleceram e das mulheres que perderam familiares por violência de Estado no período democrático, como o movimento Mães de Maio, Mães da Candelária, Mães em Luto da Zona Leste”.
“Nós também quisemos trazer uma diversidade de mulheres de outros Estados, com presença de mulheres negras, de classe baixa, temos a história de uma indígena, a Carolina Rewaptu, porque são as histórias mais invisibilizadas. “, complementou Carla Borges, que também coordena o projeto.
Para as presentes, o objetivo é manter a memória como resistência. “Hoje nós temos que lutar por duas vezes: para reparação e respostas pelas vítimas e contra o negacionismo de que houve um golpe e uma ditadura no país, para que as pessoas não peçam a volta dos militares. Nessa conjuntura em que estamos, nós temos que estar unidos e não soltar a mão de ninguém”, finaliza Criméia.