Entre 2015 e 2017, segundo o Centro de Estudos Legais e Sociais, apenas na província e na cidade de Buenos Aires, 23 mulheres foram assassinadas por funcionários das forças de segurança. Na maioria dos casos, agentes estavam fora de serviço
À primeira vista, a cena do apartamento em Ezeiza (cidade da região metropolitana da Cidade Autônoma de Buenos Aires) parecia a de um suicídio: o corpo estendido sobre a cama com uma ferida de bala na têmpora direita e uma arma ao lado. Quando o procurador recebeu os informes da autópsia e da balística, o caso teve uma reviravolta: o corpo de Gisela Dupertuis, policial bonaerense de 32 anos, tinha traumas, havia marcas de bala nas paredes e sinais de luta pelo departamento. Jhonatan Guiliani, policial local de Ezeiza e namorado de Gisela, foi detido em 25 de fevereiro acusado de feminicídio.
Depois do crime contra Gisela outras três mulheres foram assassinadas por seus parceiros ou ex-parceiros policiais. Entre 2015 e 2017, segundo um levantamento do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), apenas na província e na cidade de Buenos Aires 23 mulheres foram assassinadas por funcionários das forças de segurança em contextos de violência doméstica. Na grande maioria desses casos os agentes estavam fora de serviço no momento do disparo.
“A disponibilidade de armas de fogo numa casa aumenta os riscos para a mulher, a arma canaliza outras violências que existem na sociedade, sobretudo violências entre homens e mulheres”, explicou à Cosecha Roja Juliana Miranda, integrante da equipe de Segurança democrática e violência institucional do CELS.
Os feminicídios cometidos por policiais fora de serviço são uma consequência direta do “estado policial”, esse conjunto de direitos e obrigações que converte os agentes em policiais 24 horas dos 365 dias do ano. Um encargo cultural que diz que devem estar armados e prontos para atuar. Quase a totalidade dos policiais faz uso desse direito e depois da jornada de trabalho voltam a suas casas com sua arma regulamentar. “O porte de armas não é só um elemento de força física, mas também simbólica: são utilizadas para exercer perseguições e ameaças. Não é um problema particular de um policial, é um problema institucional, por isso o Estado tem responsabilidade”, explicou Miranda.
Este encargo, que constitui a identidade policial, se converte num perigo real para suas parceiras ou ex-parceiras: a presença de armas de fogo numa casa aumenta cinco vezes a possibilidade de que uma mulher seja assassinada pelo companheiro.
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Gisela passou a véspera de natal em serviço. Em 25 de dezembro, ao meio-dia, festejaram o natal na casa de sua irmã, Jésica. Gisela e seu namorado, Jhonatan Guiliani, ficaram aí até às 7 da noite. Naquela noite, Jésica recebeu várias mensagens de seu cunhado. Ele lhe contou que tinha brigado com Gisela e que havia saído de casa. “Até esse momento não sabíamos que tinham problemas de casal. Ele era um lorde com a gente”, contou à Cosecha Roja Olga, a mais velha das irmãs Dupertuis. Depois do velório de sua irmã, ela saberia que ele a acossava: fazia cenas de ciúmes, a perseguia e revistava seu celular.
Em 26 de dezembro, pouco antes do meio-dia, Jhonatan ligou para sua cunhada. “Jesi, venha, Gisella se suicidou!”, avisou aos gritos.
O apartamento em Ezeiza, em que o casal vivia havia menos de um mês, estava sitiado. “A polícia nos disse que era um suicídio”, contou Olga. Outro agente se aproximou e lhes disse – em voz baixa – um dado que as fizeram desconfiar: nas paredes do apartamento havia três ou quatro impactos de bala.
Em 27 de dezembro a família de Gisela perdeu o rastro de Jhonatan. Ele não foi nem ao velório nem ao enterro de sua namorada.
Os procuradores Claudia Barrios e Carlos Hassan catalogaram o caso como “averiguação das causas de morte”. A autópsia demonstrou que o corpo tinha traumas. Havia cinco cartuchos de bala no departamento e quatro tiros nas paredes. E a desordem da casa confirmava uma briga. Com essas pistas a procuradoria deixou de investigar um suicídio.
Agora os procuradores esperam os informes das análises dos telefones do casal. O crime tem um único suspeito: Jhonatan. Para os investigadores, ele a assassinou e tentou armar uma cena de suicídio. Os procuradores pediram sua detenção. A polícia o procurou em sua casa e no trabalho. No gabinete, apreenderam sua arma regulamentar. Ele se manteve foragido algumas horas. Quando se entregou, foi detido acusado do feminicídio de sua namorada.
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O modus operandi de Jhonatan Guiliani repete uma lógica. “Em muitos casos registrados em nossa base, o policial manipula a cena do crime e inventa um relato”, explica Miranda.
“É importante que essas investigações sejam separadas da força policial à qual elas pertencem: há mecanismos de encobrimento que é necessário quebrar”, complementou Miranda.
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O oficial Héctor Montenegro passou a madrugada de ano novo na delegacia do bairro Borges de Santiago del Estero (capital da província homônima, localizada ao norte da Argentina). Mesmo em serviço, ao meio-dia voltou bêbado a sua casa. Discutiu com sua parceira, Celeste Castillo, a matou com dois tiros de sua arma regulamentar e se suicidou. Ela tinha 25 anos; ele, 24. Esse crime foi o primeiro feminicídio de 2019.
Romina Ugarte tinha 26 anos. Trabalhava no Comando de Patrulhas de Cañuelas, na província de Buenos Aires. Em 16 de janeiro discutiu com seu parceiro, Nicolás Agüero, também policial bonaerense. Ele sacou sua arma regulamentar e disparou em seu rosto, entre o nariz e as sobrancelhas. “Matei ela sem querer”, disse ele aos vizinhos.
Seis dias depois, os vizinhos do número 100 de Zapiola, em Nueva Atlantis, Partido de la Costa (cidade litorânea da província de Buenos Aires), ligaram para o 911 porque escutaram vários disparos numa das casas. Os policiais encontraram mortos o tenente da Bonaerense Omar Ariel Acosta, de 53 anos, e sua ex-parceira, Mariana del Arco, de 32. A mulher tinha seis feridas de bala; ele, uma. De acordo com os investigadores, depois de matá-la com sua arma regulamentar, suicidou-se.
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Do mesmo modo que nos casos de Romina Ugarte e de Gisela Dupertuis, em muitos dos feminicídios cometidos por funcionários das forças de segurança, as vítimas também são policiais. Entre 2015 e 2018, nove mulheres policiais foram assassinadas por seus parceiros.
Segundo resoluções do Ministério de Segurança da Nação e da Polícia da Cidade, todos os agentes que tenham denúncias por violência de gênero têm a obrigação de deixar a arma em seu local de trabalho. “É uma boa prática, mas não é o suficiente”, explica Miranda. Somente uma pequena quantidade de mulheres denuncia seus parceiros policiais, por medo de represálias ou por vergonha.
“Enquanto não se enquadrar o estado policial como contrário às políticas de redução da violência é muito difícil eliminar esses casos. Para além de se reformar leis, é necessária uma mudança cultural dentro da força policial, mais ampla e abrangente”, explicou Miranda.
(Tradução: Olavo Barros)
A Cosecha Roja é uma rede de comunicação, intercâmbio e formação de jornalistas que se propõe a pensar a violência e a segurança a partir de uma perspectiva ampla, valorizando os direitos humanos e a igualdade de gênero.
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