Dados do Exército mostram que categoria adquiriu mais de 82 mil novas armas, maior crescimento anual desde 2014; “podem vir a ser milícias armadas”, avalia Sou da Paz
Em um ano, o grupo de colecionadores, atiradores e caçadores, os CACs, ativos cresceu 55% e hoje detém 433.246 armas legalizadas em todo território brasileiro, segundo dados do Exército obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo Instituto Sou da Paz. Foram mais de 147 mil novas inclusões na categoria dos CACs no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, um crescimento de 68% comparado aos 87.989 registros de 2018.
No mesmo período, mais de 82 mil novas armas entraram em circulação nas mãos desse grupo, representando um aumento de 24% em relação a 2018, o maior crescimento desde 2014.
Ações do governo Bolsonaro contribuíram e prometem aumentar ainda mais os benefícios ao grupo. O país tem, ao todo, um grupo de 396.955 pessoas listadas oficialmente no Exército como sendo um atirador, colecionador ou caçador, segundo dados de dezembro de 2019. São 200.178 atiradores, 114.210 colecionadores e 82.567 caçadores.
Em dezembro de 2018, antes da posse do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ocorrida em janeiro do ano seguinte, o total de CACs estava em 255.402 e o número de armas nas mãos desse grupo era de mais de 350 mil.
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De acordo com Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, ações do governo federal contribuíram para o crescimento. Aumentar a quantidade de armas com a população é uma promessa de campanha de Bolsonaro que está sendo colocada em prática.
Duas ações contribuíram em maior escala para o aumento dos CACs: a flexibilização da posse de armas, que liberou armamentos de calibres mais potentes; e a revogação de portarias sobre identificação e marcação das armas e munições.
“O crescimento da categoria como um todo é preocupante. Os CAC têm uma série de prerrogativas, acessos a calibres restritos e até a fuzis semiautomáticos, além de quantidade de munição muito maior do que o cidadão comum”, explica.
Segundo ele, o crescimento não se dá de forma orgânica. Não é pelo fato de terem aumentado as competições ou o a prática do tiro esportivo ter se alastrado pelo país. “Todas as pessoas perceberam que os benefícios no Exército são muitos e a fiscalização, pouca”, sustenta.
Em reunião ministerial no dia 22 de abril, divulgada após determinação do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro explicou que a liberação das armas tem como objetivo que o povo não seja refém de uma “ditadura”.
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“Como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta para impor uma ditadura aqui”, defendeu, à época, Bolsonaro.
No dia seguinte à reunião, o presidente publicou a portaria interministerial nº 1634/2020, na qual aumentou o limite de munições para quem possui uma arma, passando de 50 unidades para 600 por ano.
Langeani destaca que o Instituto Sou da Paz havia pedido o detalhamento da justificativa dada pelo Ministério da Defesa e da Justiça para a ampliação da quantidade de munições por pessoa. A resposta não foi dada. “Mesmo o órgão sendo subordinado pelo presidente, precisa ter uma justificativa técnica ou jurídica. Não pode ser uma decisão por interesses particulares, se não estão sendo ofendidos vários princípios constitucionais, o de legalidade, de impessoalidade”, pontua.
Bolsonaro segue fazendo promessas ligadas às armas. Nesta quinta-feira (4/6), conforme publicado pelo O Globo, o presidente se reuniu com integrantes dos CACs e, além de pedir sugestões, garantiu “novidades” a eles. “Dá para melhorar mais ainda”, disse na saída do Palácio do Alvorada. Nesta sexta-feira (5/6), liberou a compra de fuzis calibres 5.56 e 7.62 para essa categoria, antes armas exclusivas do Exército.
Bruno Langeani aponta que as ações, ainda mais depois da reunião ministerial, explicitam que há um caráter pessoal de Bolsonaro nas medidas. “Com 50 milhões de pessoas pensando em auxílio e outros 13 milhões de desempregados, você vê o presidente gastando tempo de uma reunião ministerial para falar de arma. Dar prioridade a esse tema, depois de todas as flexibilizações já feitas, no meio de uma pandemia é totalmente equivocado”, avalia.
“Há vídeo de atiradores com camiseta de Bolsonaro disparando e gritando palavras de apoio ao presidente e xingamentos contra governadores”, exemplifica. “O presidente deixa claro que não é um interesse de as pessoas poderem se defender, mas ter o povo armado para fazer uma contraposição às políticas ou adversários. É um recado assustador que podem vir a ser milícias armadas para tentar constranger a democracia”, diz.
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Segundo ele, ao contrário do que defendem os apoiadores do armamento, mais armas trazem mais risco do que mais segurança. Langeani lembra um caso de 2019, quando um atirador matou um homem em situação de rua em Santo André (SP) e um fuzil da época da 1ª Guerra Mundial que foi apreendido com colecionador em Brasília, em 2018.
Entre os riscos de tanta flexibilização aos CAC, o representante do Sou da Paz cita Ronnie Lessa, ex-PM acusado de integrar o Escritório do Crime, grupo de matadores que prestava serviços à milícia da zona oeste do Rio de Janeiro, e de ter assassinado a vereadora Marielle Franco, em março de 2018.
“O executor da Marielle tinha registro como CAC válido até 2021 quando foi preso. Tinha o registro mesmo estando claramente envolvido com atividades criminosas bastante graves. E estava aproveitando da série de prerrogativas dos CACs para desenvolver atividades criminosas”, diz Langeani.
Há outro risco: de as armas compradas pelo grupo de atiradores, caçadores e colecionadores caírem no crime organizado. Entre 2010 e 2016, os CAC registraram ao Exército o roubo ou furto de 5.808 armas.
“O grande problema é termos subnotificação. A roubada não é notificada ao Exército. É comum ter atiradores mais velhos que, quando morrem, a família vai descobrir que tinha arma em casa e ela já foi furtada”, exemplifica.
Para associação, armas salvam vidas
No dia 30 de maio, a Associação CAC Brasil publicou uma nota em seu Facebook em defesa da categoria e com a defesa de que “armas salvam vidas”. Se definem como cidadãos de bem e afirmam que nos CACs estão “juízes, promotores, advogados, policiais, militares, vigilantes, empresários”.
“A Associação CAC Brasil é uma entidade séria e que engloba pessoas idôneas, cadastradas e fiscalizadas pelo Exército Brasileiro, que tem sofrido constantes ataques ordenados, fake news difamatórios e injuriosos contra nós e pessoas que defendem o direito de possuir e portar armas de fogo para defesa da vida, família e propriedade, sobretudo por apoiar o presidente”, diz parte da nota.
Em outro trecho do comunicado, a associação afirma que agirá como força de reação em apoio ao governo, ao presidente e ao Exército, “contra a roubalheira”, mas que “quem não rouba não deve se ofender”.
Também destacam que os CACs são comprovadamente idôneos e listam os requisitos pelos quais passam para obter a permissão de exercer suas atividades. “Não irão nos calar e nem irão nos impedir de termos o direito a legítima defesa, da prática do esporte sem o controle excessivo, que só onera e dificulta a prática esportiva”, diz outro trecho da nota.