Tiroteios na região metropolitana do Recife aumentam 21% no primeiro semestre de 2020

    Plataforma de dados Fogo Cruzado aponta que, mesmo com pandemia, mortes por arma de fogo cresceram 10% na comparação com o mesmo período de 2019

    Junião / Ponte Jornalismo

    O número de tiroteios na região metropolitana do Recife (PE) aumentou 21% no primeiro semestre de 2020 na comparação com o mesmo período do do ano passado, segundo a plataforma Fogo Cruzado, um laboratório de dados sobre violência, que tem atuação em Pernambuco e Rio de Janeiro. O número de mortos por arma de fogo também cresceu: foram 569 este ano e 511 em 2019, um aumento de 10%.

    Leia relatório completo do Fogo Cruzado (PE)

    Dos 869 tiroteios, 52 tiveram participação de agentes da segurança pública, segundo o levantamento, feito a partir de coleta colaborativa de dados pela plataforma e notícias que saem na imprensa. Em 97% dos casos, a motivação foi identificada: 734 foram registrados como homicídio ou tentativa de homicídio, 42 roubo ou tentativa, 31 ações policiais e 17 em brigas.

    Mesmo dentro de casa, 90 pessoas foram baleadas no período. Dessas, 73 não resistiram aos ferimentos e morreram. Das vítimas, 75 eram homens e 15 mulheres. Maio, terceiro mês do isolamento social, foi o que teve maior índice de tiroteios: 175 registros.

    Maio foi o mês mais violento primeiro semestre de 2020

    Para Edna Jatobá, coordenadora do GAJOP (Gabinete Assessoria Jurídica de Organizações Populares) e gestora da plataforma Fogo Cruzado no Recife, o que chama a atenção é o grande número de pessoas baleadas mesmo dentro de suas casas em um contexto de pandemia.

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    “Elas deveriam estar em casa, seguras, mas são vítimas da violência letal”, explica Edna.”É um número altíssimo se compararmos com o Rio de Janeiro, por exemplo, que tem um número muito maior de eventos de balas de fogo”, completa, explicando que, no mesmo período, o Rio de Janeiro registrou 2.606 ocorrências de tiroteios. Desses, 16 eventos dentro de casa e 16 pessoas foram baleadas, sendo que 10 pessoas foram mortas e 6 ficaram feridas.

    “Esperávamos que, com menos pessoas circulando nas ruas, com menos atividades econômicas funcionando, esses crimes e essa violência armada também pudessem diminuir. Mas temos visto o contrário: o aumento dos eventos de disparos, o aumento do número de vítimas e o aumento dos casos de Covid-19”.

    Edna explica que, embora a plataforma não mensure a questão racial, é evidente que as pessoas mais expostas à violência são pobres e negras. “Temos visto é que essas pessoas não encontram saída, não podem sair de casa para não pegar o coronavírus, mas quando ficam em casa são vítimas de violência armada”.

    Recife registrou 350 casos de tiroteio. Seguido por Jaboatão dos Guararapes, com 143, cabo de Santo Agostinho, com 86, Olinda, com 73, e Camaragibe, com 43.

    Entre os baleados, a plataforma contabilizou 4 crianças (até 12 anos incompletos) e 63 adolescentes (de 12 a 18 anos) em 2020. Uma criança e 40 adolescentes morreram no período. Em 2019, foram registrados 6 crianças baleadas e 54 adolescentes, dos quais 38 adolescentes morreram.

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    Edna lamenta o número de vítimas abaixo de 18 anos. “O número de crianças vítimas de balas perdidas é lamentável. No ano em que completamos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, esses eventos mostram que precisamos avançar muito na política de proteção integral das crianças e dos adolescentes”, pondera.

    Bala perdida ou bala achada?

    O Fogo Cruzado também levantou o número de atingidos por “balas perdidas”, ou seja: casos de pessoas baleadas cuja origem do disparo é desconhecida. Segundo o estudo, 26 pessoas foram atingidas por “bala perdida” na região metropolitana do Recife (PE) de janeiro a junho de 2020. O aumento em relação ao mesmo período do ano passado é de 117%. Em 2020, das 26 pessoas vítimas de tiros de arma de fogo que não tiveram a origem identificada, 24 sobreviveram. Em 2019, 12 pessoas foram atingidas e 9 sobreviveram.

    Edna Jatobá, da Plataforma Fogo Cruzado, destaca que o aumento de atingidos por bala perdida segue a tendência do aumento dos crimes violentos. “Se compararmos em todos os meses, de janeiro até junho de 2020, em relação ao mesmo período do ano passado, os números são maiores”.

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    Para o cientista social Matheus Mariano, que trabalha com a temática da violência, é mestrando em sociologia pela Fundação Joaquim Nabuco e membro do Fórum de Juventudes do Cabo, o modelo atual de segurança pública está baseado em uma lógica de guerra e é preciso repensar o termo “bala perdida”. “Os números mostram que as famigeradas balas nunca estão perdidas, pois sempre acham um corpo negro e periférico para se alojar”, frisa.

    Felipe Cavalcanti, integrante do Fórum Popular de Segurança Pública de Pernambuco, que também é coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) local, concorda. “Existe uma política da morte direcionada em que as ‘balas perdidas’ estão relacionadas a corpos e em locais específicos. Falar em bala perdida é retirar responsabilidade. Não existe erro para morte, não existe justificativa”, afirma.

    ‘Vulnerabilidade social se agravou com pandemia’

    Para Felipe Cavalcanti, os crimes violentos estão relacionados às lógicas locais e a resolução de conflitos decorrentes disso, como o mercado de drogas. “O mercado de drogas opera de forma pacífica na classe média e classe alta e de forma violenta nos mercados periféricos”, explica.

    Com a pandemia, explica Cavalcanti, a vulnerabilidade social se agravou e, com isso, mostrou todas as “as mazelas sociais impostas pela omissão do estado, pela falta de responsabilidade, é uma prática genocida”. “É um projeto de genocídio do povo preto. Quem tá morrendo de Covid e quem tá morrendo de bala é preto. É uma questão de controle social por meio das mortes”.

    Apesar da pandemia, Cavalcanti chama a atenção para o fato de que as pessoas vulnerabilizadas não puderam ficar em casa. “Essas populações estão recebendo um auxílio pequeno, que tem sido pago de 45 em 45 dias, que não está sendo minimamente suficiente. Então, as pessoas estão indo para a rua, principalmente em cidades como o Recife, que são desiguais em relação às pessoas que estão em subempregos, onde o mercado informal é muito grande”.

    Para o cientista social Matheus Mariano, falar em aumento de violência durante o isolamento é também questionar o próprio processo da quarentena. “Me parece que as narrativas atuais, de parte da grande mídia e dos governos municipal e estadual, estão tomando por pressuposto que todos os territórios das cidades da região metropolitana estão em isolamento. Essa premissa é falsa, pois desconsidera a realidade dos bairros pobres e periféricos”, explica.

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    Mariano destaca que, se adolescentes e crianças estão fora das escolas, muitos trabalhadores não pararam suas atividades e acabam se deslocando dentro ou fora dos municípios. “Algumas linhas que fazem o trajeto entre Cabo, Jaboatão e Recife permanecem lotadas em horário de pico carregando a massa proletária. Em suma, isolamento nas periferia da região metropolitana é precário”, aponta.

    Outro lado

    A reportagem procurou o Governo de Pernambuco, sob o comando de Paulo Câmara (PSB), para questionar sobre o aumento da violência e aguarda retorno.

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