Eveline de Sousa Oliveira, 34 anos, passou o inverno de 2019 na rua após ter abrigo negado por não ter feito cirurgia de redesignação sexual; para ativista, Estado não sabe lidar com pessoas trans
De julho a agosto de 2019, a coletora de recicláveis Eveline de Sousa Oliveira, 34 anos, procurou um abrigo para fugir do frio que fazia na cidade de São Paulo, mas sem sucesso. O motivo? Eveline é uma mulher trans. Em 16 de agosto, inclusive, foi questionada se havia feito cirurgia de redesignação sexual antes de ouvir que não haviam vagas para ela no CAE (Centro de Acolhimento Especial) Maria Maria, localizado no Canindé, bairro da zona norte de São Paulo.
Três dias depois, 19 de agosto de 2019, Eveline denunciou a situação na Controladoria Geral da SMADS (Secretária Municipal da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) da São Paulo. Até agora, mais de um ano depois, porém, o processo ainda não foi finalizado.
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Segundo Eveline, a assistente social Ana Maria de Sousa Siqueira, da CAE Maria Maria, negou estadia no abrigo questionando seu gênero. “Você tem órgão masculino, não pode ficar aqui”, teria dito a assistente social, mesmo após a catadora apresentar o documento confirmando sua identidade de gênero.
No processo que apura o caso, o CAE Maria Maria informou que questionaram se Eveline havia feito cirurgia de redesignação sexual “sem intenção alguma de causas constrangimento, apenas para realizarmos o acolhimento de forma adequada”. A denúncia foi aberta por Maria Lumena Balaben Sampaio, ouvidora geral do município.
O CAE, em documento anexado na denúncia, afirmou que a “aparência predominante masculina” de Eveline poderia causar constrangimento nas demais usuárias do abrigo “pois os quartos e banheiros do local são coletivos”. O documento é datado de 18 de outubro de 2019 pela assistente social Ana Maria e pela gerente Nadia Aparecida Nicacio.
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Somente em setembro Eveline conseguiu abrigamento, no CAE Nova Esperança, na Vila Prudente, zona leste da cidade, onde foi a segunda mulher trans acolhida. Mas, em novembro, ela e a outra pessoa trans foram expulsas, sendo acolhidas na Casa Florescer 2, voltada para mulheres trans e travestis, mas não se adaptou por ser vegetariana. De lá foi para o CTA Lapa, na zona oeste da cidade.
Depois de reclamar do racionamento de água e de furto de seus itens pessoais, foi expulsa da unidade, ficando na rua novamente. Em janeiro de 2020 foi encaminhada para o CAE Aparecida, no Belém, na zona leste da cidade, mas só pode ficar uma noite, porque o local também não acolhia pessoas trans.
Essas informações foram repassadas pra a SMADS em 16 de janeiro de 2020 em uma carta de próprio punho escrita por Eveline e anexada no processo. O recebimento foi confirmado por Ana Cláudia Marino Bellotti, chefe de gabinete da SMADS, em 5 de fevereiro deste ano.
À Ponte, a catadora resumiu a situação como “péssima”. “Eu fiquei o inverno do ano passado inteiro na rua. Todo mundo negou vaga. Agora vou para o CAE Ermelino. Desde agosto do ano passado tenho ficado em abrigos femininos. O processo está parado, a Prefeitura não fez nada”.
Estado não sabe lidar com pessoas trans
Para Symmy Larrat, presidenta da ABGLT e fundadora da Casa Neon Cunha, casa de acolhimento em São Bernardo do Campo (Grande SP), o Estado não sabe como lidar com a população transgênera. “A sociedade pensa de maneira binária e enxerga dessa forma todas as relações humanas. Isso dificulta muito o acesso de pessoas trans aos serviços”.
“Os serviços públicos pensam como as pessoas vão lidar com uma pessoa trans, vão se sentir incomodadas com pessoas trans. Em geral, esse incômodo se dá somente pelo preconceito, nunca é pensado como vamos garantir a segurança dessas pessoas trans. Essas dificuldades que as pessoas que trabalham nos serviços públicos, de não querer lidar, fazem com que seja mais fácil afastar esse ‘problema’ e isso causa muita exclusão”, aponta.
Essas falhas do Estado, continua Larrat, não são exclusivas da cidade de São Paulo: é um problema do Estado brasileiro. “Todos os municípios não conseguem absorver, há uma imensa negativa no abrigamento a essas pessoas, culpabilizando a pessoa por ser quem é e não assumindo a ausência do Estado”.
“Essa demanda é recorrente e para provar isso é só observar a quantidade da casas de acolhimentos que os movimentos sociais têm tomado para si, em uma resposta comunitária a um dever e um compromisso que é do Estado brasileiro e ele não vem cumprindo”.
Outro lado
Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo informou à Ponte que “Eveline foi acolhida desde agosto de 2019 em sete serviços da rede socioassistencial para mulheres e mulheres trans. Desde o dia 29/10, ela está acolhida no CAE para mulheres em situação de rua de Emerlino Mattarazzo”.
A pasta também informou que “os princípios e diretrizes que fundamentam a Política de Assistência Social não se orientam por nenhuma forma de discriminação” e que há dois Centros de Acolhida Especiais para mulheres transexuais e travestis em situação de rua com 30 vagas cada, localizados nos territórios da Sé e Santana.
Matéria atualizada às 10h20 do dia 4/11 para inclusão da nota da Prefeitura de SP