Pessoas trans que estavam agendadas para serem atendidas no posto da Justiça Itinerante na Maré, no Rio de Janeiro, foram dispensadas pelo promotor Roberto Góes Vieira; especialistas afirmam que recusa viola direitos humanos
Em março de 2018, em uma decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a importância de retirar a obrigatoriedade de cirurgia e solicitação judicial para a retificação do nome e gênero de pessoas trans. A decisão foi oficializada pelo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Provimento nº 73/201814, em junho do mesmo ano.
Apesar disso, na última quarta-feira (02/12), quase três anos depois, um promotor de justiça se recusou a dar andamento à solicitação de pessoas trans em um trailer da Justiça Itinerante, um serviço do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
A ideia da Justiça Itinerante é facilitar o acesso ao sistema de justiça para pessoas em situação de vulnerabilidade, social ou econômica, no Rio. São 26 postos espalhados pelo estado e funciona de segunda a sexta das 9h às 15h. Mas, as pessoas trans que foram ao posto da rua Leopoldo Bulhões, na Fiocruz, na Maré, zona norte da cidade do RJ, nesta quarta-feira para dar entrada ao procedimento ou pegar a decisão judicial, foram impedidas de obter um direito básico: o nome.
A maquiadora Ashilley Mattos, 30 anos, foi uma delas. Em entrevista à Ponte, ela narrou que o promotor Roberto Góes Vieira se negou a realizar o procedimento de retificação de nome e gênero para pessoas trans por ir “contra sua convicções”.
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A maquiadora contou que chegou até a Justiça Itinerante depois de procurar incansavelmente os caminhos para retificar no cartório que, em tese, seria mais simples. Mas a burocracia para emitir as certidões a fez desistir. Em junho de 2020, a Ponte havia contado que o procedimento estava mais simples, porém continuava caro.
“Em março eu fiz uma busca, pelo Google, e aí comecei a seguir passo a passo do que eu encontrava. Estava tirando as certidões online, para depois tirar algumas que seriam direto no cartório, mas eu não consegui, não tinha informações. Escolhi ir na Justiça Itinerante pela rapidez. Fui lá na semana passada, dei entrada na documentação, o juiz já tinha assinado a sentença e eu ia só buscá-la”, conta Ashilley.
Para a maquiadora, “é notável que fazem de tudo para que a gente desista”. “Se você não tem informação, você vai tentar tirar pela informação que você acha na internet, que era o que eu tinha, pegar certidões que eu nunca ouvi falar na minha vida e nem onde pegar. A gente fica perdida e acaba desistindo”, lamenta.
Quando chegou na Fiocruz para buscar sua certidão, Ashilley teve a notícia de que não iria ser atendida. “O promotor avisou para os funcionários que todas as pessoas trans que fossem lá, buscar ou solicitar a sentença, deveriam voltar na próxima semana, porque ele não iria dar a assinatura dele por ir contra os princípios dele”.
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Roberto Góes Vieira, o promotor que negou a retificação, trabalho no cargo desde 1999 e é gerente do Fundo Especial do Ministério Público, membro do Conselho de Administração do Rioprevidência, na qualidade de representante do MP-RJ, integrante do Comitê Gestor do Portal Transparência do Ministério Público e integrante do Comitê Estratégico de Tecnologia da Informação do Ministério Público. Ele já foi agraciado com Colar do Mérito, maior honraria entregue pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, e com a Medalha Tiradentes, maior homenagem que pode ser prestada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Não é a primeira vez que um promotor de justiça vai contra uma determinação a favor de pessoas LGBTs. Em 2018, veio à tona que o promotor Henrique Limongi, da 13ª Promotoria da Comarca de Florianópolis, havia barrado o casamento de 112 casais LGBTs, mesmo com o direito garantido pela Resolução 175, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 14 de maio de 2013.
Para Bruna Benevides, pesquisadora da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), “apesar de a Justiça Itinerante ser um grande ganho para nossa população, para população vulnerável em geral, nesse caso específico a transfobia institucional prevaleceu diante de uma população que tem todos os seus direitos negados”.
A Antra, inclusive, tem uma cartilha de passo a passo para a retificação nos cartórios e um campo no site para denúncias de negativas de acesso a esse direito. Na manhã desta sexta-feira (4/12), a Antra enviou uma denúncia para a Corregedoria do Ministério Público do Rio de Janeiro cobrando um posicionamento do órgão.
“Por conta dessa negativa de um direito, conquistado na corte suprema do país, a gente fica preocupada do quanto essa prática pode se tornar corriqueira, da forma com que ela não pode ser aceita. É uma nítida violação dos direitos humanos dessas pessoas”, completa Benevides.
A defensora pública Letícia Furtado, coordenadora do Nudiversis (Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e dos Direitos Homoafetivos), da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, explica que, com a decisão do STF, a orientação da Defensoria é que pessoas trans façam a transição diretamente nos cartórios.
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“Foi uma decisão muito importante para todos que defendem os direitos da população trans e, com isso, não há necessidade mais de solicitar a retificação para autoridades judiciais, com laudos médicos. Agora só com a autodeclaração de identidade de gênero é possível pedir a alteração do nome e/ou gênero”.
Apesar disso, argumenta a defensora pública, após a decisão do STF, nenhuma pessoa trans deveria ser impedida de retificar o nome na Justiça. “O entendimento do STF é esse e foi regulado pelo Conselho Nacional de Justiça, basta a pessoa levar sua documentação e se autodeclarar para ser reconhecida de acordo com o seu gênero”.
“O que aconteceu na quarta vai contra tudo o que está estabelecido pela jurisprudência nacional e pelo reconhecimento internacional. É um absurdo. Essa pessoa não pode estar no exercício dessa função. Isso nos preocupa demais”.
“Vamos comunicar ao MP, ao TJ-RJ e teremos que pedir o afastamento desse membro. Uma questão pessoal não pode impedir o direito a uma população em situação vulnerabilidade”, completa Furtado.
A defensora também lembrou que a Defensoria Pública consegue atuar para solicitar a isenção das taxas para retificação de nomes para pessoas trans com vulnerabilidade social. “Conseguimos solicitar a gratuidade tanto da certidão quanto do RG. Isso pode ser feito tanto pelos núcleos de atendimento dos bairros ou no Nudiversis”.
Outro lado
Procurado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, apesar de ser responsável pela Justiça Itinerante, informou que a demanda deveria ser encaminhada para o Ministério Público.
Por meio de sua assessoria de imprensa o Ministério Público enviou uma nota, pedindo a sua publicação na íntegra. Diz o texto:
“O promotor de Justiça designado para o Projeto Justiça Itinerante lamenta o teor do texto publicado pelo veículo denominado Ponte Jornalismo em razão das inverdades contidas na pretensa matéria jornalística.
Inicialmente, convém salientar que no dia 02 de dezembro de 2020 não houve qualquer recusa, por parte do promotor de Justiça designado, aos pedidos submetidos à Justiça Itinerante Complexo Maré/Manguinhos referentes à alteração do nome e do gênero de pessoa transgênero nos assentos de nascimento e casamento.
A informação de recusa aos pedidos formulados e a suposta motivação apresentada são inverídicas, uma vez que não houve recusa e, de igual forma, jamais foi mencionado ou alegado qualquer motivo de foro íntimo para deixar de oficiar em procedimentos dessa natureza.
O membro do Ministério Público designado para o exercício das funções perante a Justiça Itinerante, quando instado pelo magistrado para se manifestar sobre alguns pedidos de alteração de nome e do gênero de pessoa transgênero, ponderou que os requerimentos apresentados não estavam regularmente instruídos e, como fiscal da ordem jurídica, entendia que os documentos exigidos no art. 4º, §§ 6º e 7º do Provimento do Conselho Nacional de Justiça n.º 73/2018 deviam constar dos requerimentos para fins de deferimento, o que fez com que o magistrado solicitasse a devolução dos procedimentos para nova análise.
Frise-se que não houve recusa aos pedidos e, nem tampouco, invocação de qualquer questão pessoal na abordagem dos requerimentos apresentados, senão a atuação técnica do agente ministerial em sintonia com o exigido pelo Provimento do CNJ”.
A reportagem acha importante frisar que o Provimento do Conselho Nacional de Justiça n.º 73/2018 se refere explicitamente aos cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais e não a pedidos de retificação enviados à Justiça.
Também é importante notar que o parágrafo 7º do artigo 4º do provimento citado lista documentos facultativos, e não exigidos, para a retificação de nome e gênero, uma vez que, segundo o voto do relator ministro Marco Aurélio Mello que deu provimento à ADI 4.275 diz que “ao Estado cabe apenas o reconhecimento, é-lhe vedado exigir ou condicionar a livre expressão da personalidade a um procedimento médico ou laudo psicológico que exijam do indivíduo a assunção de um papel de vítima de determinada condição”.
A reportagem reforçou junto ao MP-RJ o pedido de entrevista com o promotor Roberto Góes Vieira.
ATUALIZAÇÂO: Reportagem atualizada às 21h40 do dia 4/12/2020 para inclusão do posicionamento do TJ-RJ
ATUALIZAÇÃO: A reportagem foi atualizada às 16h35 do dia 5/12/2020 para incluir nota enviada pelo MP-RJ
[…] A reportagem questionou o Ministério Público, a Justiça Itinerante e o Tribunal de Justiça e aguarda retorno. A Ponte também pediu entrevista com o promotor Roberto Góes Vieira mas até o momento da publicação não foi atendida. Com informações da PonteJornalismo […]
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