Cena aberta de consumo de drogas no centro de São Paulo migra da Praça Julio Prestes para a Praça Princesa Isabel, distante 450 metros, mas população de rua segue esquecida pelas políticas públicas
― Moça, qual o seu nome?
― É Jeniffer.
― Então começamos bem porque é o nome da minha filha, que é um dos meus amores, fez 18 anos faz uns meses. ― responde com um sorriso R., de 33 anos. Negra, cabelos curtos, descalça, com shorts cinza, duas camisetas de manga curta e boné virado para trás, ela me autoriza a identificá-la e tratá-la no feminino, mas ao final da nossa conversa, confessa que gostaria de fazer a transição de gênero. “Eu queria ser homem, não sei se o Thammy [Miranda, vereador trans pelo PL em São Paulo] já se arrependeu alguma vez, mas se eu tivesse um nome seria Juninho”, conta ao lembrar do personagem Juninho Play, interpretado pela atriz Samantha Schmütz, e com quem é fisicamente parecido. Por isso, vou chamar R. de Juninho.
Ele estava sentado em um banco na Praça Princesa Isabel, entre uma quadra fechada e um parque infantil e uma base da Polícia Militar, no centro da capital paulista. O espaço começou abrigar diversas barracas de pessoas em situação de rua no início da pandemia, em abril de 2020, e nesta semana passou a ser foco da imprensa quando o fluxo, como é conhecido o espaço de comércio e uso de drogas na região conhecida pejorativamente como “Cracolândia”*, migrou dos entornos da Praça Julio Prestes, que já era chamada de Praça do Cachimbo por quem frequentava. A distância entre as duas praças é de cerca de 450 metros.
Uma comerciante de 62 anos, dona de uma lanchonete na Rua Helvétia há 34 anos, um dos locais que concentrava o fluxo, disse que percebeu o esvaziamento no sábado de manhã (19/3). “Os usuários saíram de madrugada porque eu cheguei para abrir [o comércio] às 5h e já não tinha mais ninguém, foram todos para a Princesa Isabel”, lembra. “Daí o governador apareceu aqui mais tarde, não falou com ninguém e entrou no hospital. Até acharam que o povo tinha saído por isso, mas não, não teve uma viatura, nem os policiais daqui da base entenderam o que estava acontecendo”, relatou. O hospital que ela se refere é o Pérola Byington, cujas obras, que fazem parte de uma Parceria Público-Privada e ocupam uma quadra inteira, estão quase finalizadas e com previsão de inauguração no segundo semestre deste ano.
À imprensa, o delegado da Polícia Civil Roberto Monteiro atribuiu a migração por ordem do tráfico de drogas, que é gerenciado pela facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Fontes ouvidas pela reportagem também confirmaram que a decisão aconteceu na quinta-feira (17/3) por conta de atuações repressivas com frequência das forças de segurança no local, já que o entorno da Praça Julio Prestes é mais “fácil” de ser encurralado e está mais “escondido”. Veículos já não passavam por trechos da Rua Helvétia, Alamedas Dino Bueno, Cleveland e Barão de Piracicaba, entre outras, há muito tempo. Na Praça Princesa Isabel, além do fluxo estar visível, está próximo do terminal de ônibus de mesmo nome, com acesso à Avenida Rio Branco, e cujo cerco seria mais difícil de realizar sem gerar um transtorno maior para o transporte público e para moradores e estabelecimentos comerciais.
O secretário executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura Alexis Vargas, de início não tinha atribuído como ordem do tráfico, tendo dito ao Bora SP, da TV Band, que pode ter acontecido, mas depois apontou que pode ter ocorrido por conta da atuação do poder público. Os governos municipal e estadual atribuíram o esvaziamento a uma ação conjunta a qual consideraram como um “desmonte inédito” e que, “com grupos menores” por causa da dispersão, “é possível oferecer políticas públicas com melhores resultados”. “Este é o resultado de um trabalho árduo, persistente e integrado que teve início com o Programa Redenção em 2017 e recebeu um importante reforço com a Operação Caronte da Polícia Civil no combate ao tráfico de drogas na região central”, declarou Vargas.
Aconteceram ao menos cinco da fases Operação Caronte, como ficou conhecida a atuação da Polícia Civil no território nos últimos meses desde a prisão de Lorraine Cutier Bauer Romeiro, 19, em julho de 2021 por tráfico de drogas, apelidada pela polícia e pela imprensa de “Gatinha da ‘Cracolândia'” por ser uma mulher branca que ostentava luxo nas redes sociais. Uma dessas ações, de 10 de fevereiro, teve imagens divulgadas pelos próprios agentes mostrando pessoas sentadas no chão sob a mira de fuzis. O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo encaminhou ofícios à Secretaria da Segurança Pública, ao Delegado Geral da Polícia Civil, à Secretaria Municipal de Segurança Urbana (por conta do apoio da GCM) e ao Procurador Geral de Justiça questionando a legalidade da atuação dos policiais, por entender que usaram de “métodos truculentos e excessivamente violentos”. O prazo de resposta foi de 10 dias e, segundo a assessoria da Defensoria, a resposta do poder público foi de que não foi observada ilegalidade e, por isso, vai acionar o Ministério Público.
Um policial de uma das bases da PM que foram colocadas na Rua Helvétia, ao lado das obras do hospital, também se disse surpreso à reportagem quando foi trabalhar e viu o espaço vazio. “Não sei se foi por causa da visita do governador, essa base está aqui há uns cinco meses, acho que aqui ficou melhor porque está mais limpo, mas não sei se isso aí é politicagem”, disse. “Vieram filmar aqui de que a ‘Cracolândia’ acabou, mas não acabou, só foi para a Praça Princesa Isabel”, critica a comerciante. “Esse é um problema social gravíssimo que não tem projeto, a guarda quando vem não quer saber quem tá no meio, já tive até cozinheira com diabetes que inalou gás de pimenta”, prossegue. “Fico até mal de falar nisso porque construí minha vida inteira aqui para a Prefeitura vir, comprar o imóvel, eu ter que colocar na Justiça para receber e ainda não recebi da Cohab, e quando me inscrevi para morar em um dos complexos daqui não me chamaram, deram a vaga para gente de fora”, lamenta.
A cena do fluxo na Praça Princesa Isabel também apareceu em 2017, quando ocorreu uma megaoperação em maio, reunindo mais de 500 homens da Polícia Civil, coordenados pelo Grupo de Operações Especiais (GOE), além de centenas de policiais militares com ampla ação do Choque e apoio da Guarda Civil Metropolitana em que Doria havia prometido que “a ‘Cracolândia’ ia acabar” e criou o programa Redenção, com foco em tratamento de dependência química a partir da abstinência total.
Na época, a Praça Julio Prestes e adjacências também foram esvaziadas, mas paulatinamente o ritmo o local voltou a ser ocupado. “Toda a vez que tem eleição, acontece isso, [os candidatos] dizem que a ‘Cracolândia’ vai acabar, mas acabou? Você viu lá a Princesa Isabel como está, então não sei como vai ser o dia de amanhã”, diz, desconfiado, José Carlos Costa, 63, que tem uma banca de jornal em frente à estação de trem Julio Prestes, da linha 8-Diamante, que desde janeiro passou a ser administrada pela iniciativa privada.
Na manhã desta quarta-feira (23/3), agentes da Prefeitura faziam ações de zeladoria no entorno, como tapa-buraco, conserto da rede de esgoto e limpeza das ruas. A Ponte abordou uma moradora do Complexo Habitacional Julio Prestes que não quis dar entrevista e apenas disse a situação ficou “melhor” porque “a rua ficou limpa com a saída dos usuários”.
Visíveis e invisíveis
Na noite de terça-feira (22/3), Juninho estava acompanhado de dois assistentes sociais da Prefeitura que anotavam seus dados e o haviam abordado há poucos minutos. “Estou vendo de tirar minha carteira de trabalho porque a minha está velha, o que eu mais quero é voltar a ter dignidade, estar com meus filhos”, revela, com olhos marejados. “Passei por muita coisa que me trouxe até aqui, maus tratos de uma madrasta, já fui estuprada, fiquei sete anos aqui, saí, me internei, voltei, participei da varrição do programa De Braços Abertos [da gestão Fernando Haddad (2013 a 2016)], mas é muito difícil”, lamenta. “Vaga feminina em abrigo também é muito difícil e para a casa da minha família eu não quero voltar porque não me dou bem, só queria estar com meus filhos, quem sabe um dia fazer engenharia, só que aqui a gente é visto como poluição”.
Um dos assistentes sociais ali confirma. “Realmente. A gente recebe a informação da nossa ala técnica sobre as vagas e vem aqui ver quem quer ir para levá-los”, explica. Na noite de terça-feira (22), o servidor disse que estavam disponíveis cinco vagas masculinas para o Centro Temporário de Acolhimento (CTA) Brigadeiro Galvão, que fica na rua de mesmo nome a 1,5 quilômetro dali. “Tem gente que vai, mas tem gente que recusa porque CTA é aquilo, tem restrições”, diz. E se tem mais pessoas procurando vaga do que está disponível? “Sempre acontece. A gente anota os nomes, mas tem mais gente precisando do que se pode ofertar”, prossegue.
De acordo com as pessoas que estavam na praça, as restrições são de horário para chegar e sair, casais não podem dormir juntos, com separação entre homens e mulheres, além de não poder levar animais de estimação e se manter abstinente dentro do equipamento. As condições dos centros de acolhimento já foram alvos de denúncias de insalubridade e más condições de higiene.
A Ponte percebeu que essas abordagens se concentravam mais nas laterais da praça e não no miolo onde se aglomerava o fluxo. “É uma orientação para gente ficar mais por aqui”, apontava o servidor para as áreas mais distantes, mas sem explicar exatamente o motivo. A reportagem percorreu toda a área sem identificação, inclusive por barracas onde também haviam traficantes vendendo drogas, além de pessoas em situação de rua que fazem uso de entorpecentes. Não encontramos as famílias com crianças que ocupavam a praça desde o início da pandemia.
Os irmãos Wilson Christian e Miguel, que deram apenas o primeiro nome e são de origem peruana, afirmam que ao tentarem ir para os abrigos da Prefeitura acabaram desistindo. “Disseram que a gente não poderia levar os cachorros, então viemos para cá”, disse. Ali, estavam correndo ao menos cinco cães, alguns filhotes, ao lado da barraca de lona improvisada que eles fizeram. “A gente estava no Atende e veio para a praça”.
“Atende” é o Atende II, último ponto de atendimento a pessoas em situação de rua na Luz, no centro da capital paulista, remanescente do extinto programa De Braços Abertos, com foco em política de redução de danos, voltado a moradores de rua da região, muitos deles dependentes de drogas, e que foi fechado pela Prefeitura em abril de 2020. Na época, o governo municipal não explicou o motivo do encerramento, mas a Ponte verificou que o imóvel fica na quadra 38, uma das que foram decretadas em 2017 como de interesse social para serem desapropriadas pela Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab) a fim de que fossem implantadas unidades habitacionais provenientes de uma Parceria Público-Privada (PPP) com o Governo do Estado e a construtora Canopus. Em julho de 2020, na primeira fase da pandemia, o secretário Alexis Vargas, que agora comemora a situação na região, solicitou ao presidente da Cohab, Alexsandro Peixe Campos, aceleração das desapropriações das quadras 37 e 38.
Na ocasião do fechamento do Atende, a Prefeitura enviou ônibus e vans para realizar a transferência de usuários cadastrados para o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica I (SIAT), na região do Glicério, distante três quilômetros da rua Helvétia, onde ficava a tenda, mas os irmãos voltaram para a praça. Esse equipamento havia sido inaugurado no âmbito do programa Redenção, criado por João Doria (PSDB) quando ocupava o cargo de prefeito e que teve continuidade na gestão Bruno Covas (PSDB) e na de Ricardo Nunes (MDB), então vice-prefeito que assumiu a administração quando da morte de Covas, em maio de 2021.
Essas quadras, a 37 e 38, inclusive, estão com o processo administrativo suspenso desde novembro do ano passado após o Tribunal de Justiça acatar uma liminar das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e a de Habitação e Urbanismo da Capital que apontaram que as ações da Prefeitura, “com a desapropriação de imóveis, provocaram danos ao patrimônio histórico e cultural”. O Ministério Público argumentou que “os projetos de revitalização, em seus moldes atuais, não respeitaram orientações do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (Condephaat), que constatou intervenções irregulares pela ausência de autorização” – como derrubada de imóveis.
O baiano Vanilson Santos Conceição, 34, que é conhecido como Jamaica e está em São Paulo há 18 anos, também é um dos que não se adaptaram ao serviço na ocasião. “Lá no Atende eu cozinhava para a galera, aqui na praça eu também faço isso, e tô com as minhas cachorras aqui e lá [no centro de acolhimento] não aceitam. E tem gente aqui que eu criei laço, não vou deixar sozinho”, afirma. Ele conta que costuma dividir o que prepara com outras pessoas que estão morando na praça e que consegue alimento por doação ou quando reúne trocados. Ele foi o único que permitiu ser fotografado.
Integrante do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes, ligado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e idealizador do projeto Teto, Trampo e Tratamento na região, o psiquiatra e palhaço Flavio Falcone aponta que o Estado continua tratando um problema de saúde pública, que se intersecciona com outras áreas, apenas com repressão policial. “Mais uma vez na história se utiliza a desculpa do uso de drogas para esconder problemas que são sociais, como falta de moradia e trabalho”, critica.
“A maioria dessas pessoas já estavam na Praça Princesa Isabel antes quando o Atende fechou e nada foi feito. Agora que o fluxo está aqui, a narrativa da Prefeitura é de que conseguiu acabar com a ‘Cracolândia’, o que não aconteceu, e mostra a falta de uma política pública”. Para ele, “a pulverização do fluxo também dificulta a atuação das equipes de saúde e assistência em localizar essas pessoas para dar continuidade a algum tipo de tratamento”.
Uma vendedora de balas que divide uma barraca com uma senhora de 53 anos se disse descrente com algum tipo de atendimento do poder público. “Eu quero ficar aqui [na praça] porque a gente foi atrás de vaga em hotel social, mas está sem, estão dando prioridade para mulheres grávidas e crianças. Já estive em outros abrigos, na Casa Verde [zona norte], mas os quartos eram separados e eu não poderia ficar com o meu marido. No CAE [Centro de Acolhida Especial para Famílias] de Ermelino Matarazzo [zona leste] tinha o problema de se eu tivesse três faltas injustificadas, eu perdia a vaga, mas é difícil porque tinha dia que eu vinha usar [droga] aqui no centro e não voltava”, lamenta.
Uma catadora de materiais recicláveis que fez um barraco de lona para morar com o marido relata a dificuldade das restrições de alguns centros, mas ainda busca por oportunidade. “O meu marido, com quem eu tô casada há 23 anos, não chega perto se você fala de Caps [Centros de Atenção Psicossocial], infelizmente. Eu tentei vaga no hotel social na Rua Guaianases, mas disseram que não tem. Vim para cá depois que reencontrei meu marido aqui numa reportagem, e a situação não muda, é uma realidade muito complexa por que o que fazer com o povo que tá aqui? Medo a gente só tem da polícia que trata mal”, afirma.
O movimento A Craco Resiste, que denuncia violações de direitos humanos no território, considerou o deslocamento das pessoas como “limpeza social eleitoreira”, em nota publicada nesta quarta-feira (23). “A ‘Cracolândia’ é um conjunto de pessoas, a maioria pretas, pobres e saídas do sistema prisional. Uma população que precisa de políticas de moradia, acesso à saúde, renda e trabalho. Pessoas que sofreram múltiplas violências ao longo da vida, morando em favelas, espancadas pela polícia e presas até quando tentavam acessar comida”, diz trecho do texto.
O que diz a prefeitura
A Ponte questionou sobre o atendimento às pessoas em situação de rua e com dependência química, as intervenções urbanísticas no território e a atuação da GCM no local e aguarda resposta.
O que diz a polícia
A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre a atuação no território da Luz e a operação que foi alvo de ofício da Defensoria. A In Press, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota:
A Polícia Civil, como de praxe, respondeu o ofício enviado pela Defensoria Pública dentro do prazo estipulado. Na ocasião da referida ação (FASE 5 – Etapa 2 da Operação Caronte), 12 traficantes de drogas previamente e devidamente identificados durante trabalho de inteligência, foram presos em flagrante e tiveram suas prisões transformadas em preventivas pela Justiça, com anuência do Ministério Público.
Não houve qualquer intercorrência com usuários ou qualquer registro de feridos ou de vítimas de violência física. Os traficantes foram retirados do meio do “fluxo” enquanto que usuários permaneceram sentados.
Cabe ressaltar que ao longo de todas as etapas da “Operação Caronte”, 92 criminosos foram presos e todos eles permanecem encarcerados por decisão da Justiça, o que demonstra a pertinência do trabalho policial que é reconhecido pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
O que diz o Ministério Público
A Ponte procurou o órgão a respeito do ofício da Defensoria e sobre a atuação do órgão no território e aguarda resposta.
(*) A Ponte evita usar a expressão “Cracolândia” para se referir a regiões ocupadas por pessoas pobres no bairro da Luz, em São Paulo, ou em outros locais, por considerá-la imprecisa e preconceituosa. As pesquisas mais amplas sobre o tema, como a Pesquisa Nacional sobre o Crack feita pela Fiocruz em 2016, apontam que as causas da situação de vida dessas pessoas estão muito mais relacionadas com a pobreza e a exclusão social do que com o uso de alguma substância. Entenda: ‘Repórteres que falam em Cracolândia são uma fraude’, diz Carl Hart.