Em entrevista exclusiva à Ponte, Luiz Eduardo Soares analisa o que mudou do seu tempo como secretário, a situação da polícia no Rio à luz do caso Marielle e como as relações entre crime e polícia produzem “degradação da democracia”
Luiz Eduardo Soares está estudando e combatendo a violência urbana no Brasil literalmente há décadas – na verdade, nem se lembra exatamente como começou nisso. Vindo da militância no PCB clandestino nos anos 1970, estudou inicialmente a violência no campo, mas no fim dos anos 1980, no nascer da nova democracia no país, já militava pela legalização das drogas e utilizava o termo “genocídio” para se referir à mortandade de jovens negros, de vidas ceifadas violentamente, pelo Estado.
Coautor de livros como Cabeça de Porco (com MV Bill e Celso Athayde) e Elite da Tropa (com Rodrigo Pimentel e André Batista, no qual José Padilha teria se baseado para escrever Tropa de Elite), além de vasta produção própria, Luiz Eduardo também teve vasta atuação política: além de secretário de Segurança Pública durante um ano e 3 meses no Rio de Janeiro (de 1999 a 2000) sob o governador Anthony Garotinho, também foi secretário nacional de Segurança Pública em 2003 no primeiro mandato de Lula (PT). Passagens pelas prefeituras de Porto Alegre como consultor e de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, como secretário de Valorização da Vida e Prevenção da Violência completam seu currículo.
Em uma entrevista feita em duas partes por telefone (“a Ponte é prioridade”, afirmou ao primeiro contato), à luz dos avanços na investigação sobre a execução da vereadora Marielle Franco (incluindo a prisão do então chefe da Polícia Civil no Rio, Rivaldo Barbosa, acusado de planejar o assassinato) Luiz Eduardo revisita sua luta política, analisa o entranhamento das milícias na segurança pública no Rio de Janeiro, critica o Ministério Público (que não cumpre sua missão constitucional de fiscalizar as polícias), a mídia (“e nem é essa coisa do Datena, que é um horror”, explica) e tenta explicar para a esquerda que violência policial é um entrave à participação democrática e à emancipação humana tão desejada pelos seus intelectuais: “Não há problema nas alianças, o problema é quando nós não estamos falando de adversários políticos que têm seus próprios programas, nós estamos falando de forças da degradação, que não são da degradação moral, são da degradação democrática. Inviabilizam a participação, a organização popular e acabam esmagando a cidadania”.
Leia abaixo a entrevista completa:
Ponte — Desde quando você lida com uma polícia dessas, como que começa a sua história em entender o quão endêmica, o quão profunda é essa existência de uma polícia corrupta no Rio de Janeiro e no Brasil?
Luiz Eduardo Soares — Eu não sei precisar exatamente em que ponto surgiu, digamos, a consciência sobre a gravidade do envolvimento das polícias no Rio com o crime. Não sei dizer exatamente como isso e quando surgiu, porque já lá se vão muitas décadas e, a memória é sempre um exercício muito falho, muito limitado. Eu falava em genocídio de jovens negros e de jovens pobres nas periferias das grandes cidades do Brasil e, em particular, no Rio de Janeiro, lá nos anos 80, quando se considerava essa expressão absurda, despropositada, meramente retórica.
A luta contra a brutalidade do Estado, por meio dos centros penitenciários, da justiça criminal e das polícias, foi uma constante. Eu não tenho como precisar exatamente a partir de que momento isso se tornou para mim uma matéria de vida, mas certamente foi naquela transição democrática. Eu era militante do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, na clandestinidade, e acompanhava aquele processo com um engajamento muito direto. Não era uma questão, para mim, meramente acadêmica. Eu era militante, além de fazer universidade, fazer pesquisa.
Eu comecei estudando violência no campo porque, nos anos 1970, talvez a maior parte dos cientistas sociais interessados (não só cientistas sociais, eu acho que jornalistas que ainda podiam escrever a despeito da censura, os autores que escreviam literatura também), pensávamos ainda na chave do Brasil rural que se transformava, que se urbanizava, e violência para nós estava associada, além da violência do Estado na ditadura, estava associada aos crimes que eram perpetrados contra o campesinato, contra os trabalhadores rurais. O estudo da violência era o estudo da violência no campo.
Quando eu fui fazer minha primeira pesquisa, que foi no mestrado (na época nós chamávamos tese de mestrado, porque não havia ainda o doutorado na instituição). O nosso mestrado, nós o fazíamos ao longo de cinco anos, com pesquisa original. A minha pesquisa foi sobre a resistência camponesa ao processo violento de expropriação no campo, na região amazônica, na Amazônia Legal, particularmente no interior do Maranhão, estudando o caso de um quilombo. Na época nós não usávamos essa categoria de quilombo, tínhamos uma comunidade camponesa composta por negros, herdeiros de escravos, que por conta da identidade étnica e da organização que isso suscitava, foram capazes de fazer face a um processo brutal de expropriação, que de resto havia derrotado os demais grupos camponeses em toda aquela região. Era no caso um cenário de sucesso, de vitória, por conta da organização que tinha a ver com a construção da identidade étnica, a memória histórica.
Quando o fenômeno de urbanização no Brasil trouxe para as cidades brasileiras e para perto de nós, que éramos urbanos, um pouco dessa experiência da violência com outras tonalidades, outras modalidades, a questão permanecia. E como é que a democracia vai lidar com isso? Agora que nós estávamos chegando na democracia, havia muitas ilusões de que, com a democratização formal das instituições, nós saltaríamos para uma realidade democrática.
E o que nós vimos é que não estava havendo transição na segurança pública e nas polícias. A parte fundamental do Estado, os aparelhos coercitivos, acabam mantidos intocados. Além de não haver justiça de transição, ou seja, além do fato de o Estado não ter se confrontado com os seus próprios crimes, o fato de o Estado não ter sido responsabilizado pelas torturas e assassinatos políticos, além de tudo, na área específica da segurança pública, não tinha havido sequer transição.
E o que nós tínhamos era uma transferência dos alvos. Agora, se na ditadura os alvos eram subversivos, as oposições militantes, a partir do retorno da democracia, tudo continuava como estava, mas o alvo agora voltava a ser o de sempre, que nunca deixou de existir: os negros, os pobres, os territórios vulneráveis. Era o que a gente via, e a grande questão era de que modo isso daí vai prejudicar, ou inviabilizar, inclusive, modular, pelo menos, o desenvolvimento da democracia no Brasil. Vai ser possível alguma democracia de verdade se a gente, além dos limites do capitalismo, se a gente vai ter que conviver com esse sistema de justiça criminal, com essas prisões?
Eu me associei desde o início, já no final dos anos 80, à luta pela legalização das drogas e contra a violência policial, contra a violência do Estado por meio das prisões e das polícias. Isso foi uma espécie de desdobramento natural da indagação antropológica, sociológica e da angústia das ansiedades políticas, de militância.
Quando nós passamos a viver um quadro muito diferente da ditadura, que era aquele em que os governadores progressistas que estavam sendo eleitos e passavam a ter a oportunidade de apresentar uma versão distinta da ação policial, o que nós vimos era uma dificuldade muito grande, porque como fazer diferente com os mesmos funcionários, as mesmas máquinas institucionais? E além disso, para onde caminhar? Que alternativas haveria? Como seria possível uma política pública de segurança democrática para o novo Brasil que emergia? Ou será que a segurança pública estava condenada a ser uma área ocupada, hegemonizada sempre pela direita e até pelos fascistas que já estavam presentes lá na ditadura também? Será que nós estamos então condenados a ser sempre geridos, conduzidos nessa área pela direita? Qual é a nossa alternativa no campo progressista e no campo popular, democrático?
Havia aí dois problemas. Um era responder a essas perguntas e o outro era tornar essa pergunta legítima, tornar essa pergunta aceitável para o nosso próprio público, para o público progressista. Porque era muito difícil nos primeiros momentos, nós éramos desacreditados, “vocês estão malucos, claro que essa é uma questão atinente exclusivamente à direita, nós não temos nada a ver com isso e nós temos que lutar pelas transformações socioeconômicas, pela educação pública gratuita, universal, pela saúde pública e pelo fortalecimento da cidadania para alcançar um outro modelo de sociedade, de socialismo, etc. e o resto se arranja no caminho”. E a gente, os que estávamos na reflexão, na militância, na segurança pública, pensávamos “não vai se arranjar no caminho se nós não definirmos um rumo, se nós não tivermos uma estratégia, se nós não apresentarmos opções reais, isso não vai se ajustar no caminho, simplesmente não vai por uma série de razões, é muito complicado”.
Essas máquinas estão ali, não foram tocadas e os que não querem enfrentar esse debate estão autorizando na prática a que a direita continue dominando essa área e nós vamos assim para o abismo cada vez mais fundo, não é possível. E do outro lado das plateias, gente dizendo que nós não temos que nos comprometer com repressão. Nós estamos vivendo numa sociedade de classes, enquanto houver sociedade de classes nós vamos ter Estado, enquanto houver Estado haverá leis, Justiça, alguma forma de Justiça Criminal e haverá instrumentos de coerção, porque é isso que define o Estado: haverá polícia.
E se nós vamos viver um país com Estado ainda por muito tempo, porque não está no horizonte uma revolução transformadora tão profunda, nós temos de definir o mapa do nosso caminho, nós temos de enfrentar essa questão, porque as polícias conviverão conosco, com essa sociedade, pelo menos por décadas e se elas não podem nunca chegar a alcançar um estágio minimamente aceitável, pelo menos nós podemos reduzir danos, e reduzir danos nesse caso não é pouca coisa. Nós estamos falando da salvação de vidas de milhares de jovens, jovens pobres, jovens negros, nós estamos falando da possibilidade que a população mais pobre se organizar com liberdade e se manifestar, participar, nós estamos falando da experiência da cidadania que vai ter impacto mais amplo sobre as questões estruturais da sociedade, na macropolítica.
Não é pouca coisa, reduzir danos, se é tudo que nós podemos fazer na área de segurança pública, fazer com que o Estado seja menos perverso, isso talvez já seja significativo bastante para que nós nos dediquemos a isso. “Ah, mas isso é um reformismo trivial, muito pobre, que ilusão achar que isso pode mudar.” Nós podemos impor freios, nós podemos impor obstáculos, nós temos que estar nessa luta constantemente, senão nós vamos ser tragados e isso não para aí, porque isso inviabiliza o que nós chamamos de democracia.
De início são esses enclaves institucionais refratários ao controle externo, ao controle político, ao controle social. Depois isso acaba corroendo as bases do Estado Democrático de Direito e todas as conquistas democráticas vão para o buraco. Não é possível, estou sintetizando para você um debate de décadas que ainda não foi vencido, que ainda está em curso, mas voltando ao fio de Ariadne, ao fio desse percurso histórico, de que se trata?
Governadores progressistas vão ser eleitos, agora é possível, com eleições no país todo, que haja candidatos progressistas que eventualmente vençam as eleições, o que eles vão fazer? Como lidar com essas máquinas? Vão fechar os olhos, ser cúmplices de tudo mais? Bom, nós vimos as dificuldades imensas, inclusive de governos progressistas, de darem passos mais significativos para tornarem essas instituições minimamente republicanas e afeitas aos ditames constitucionais. O que nós vimos foi ao longo dessas décadas a criação de enclaves institucionais, as instituições policiais se tornaram enclaves refratárias ao comando político civil. O Ministério Público, segundo a Constituição, equilibraria as coisas, porque exerceria o controle externo da atividade policial, e nesse caso nós teríamos uma forma de checks and balances, como dizem os ingleses e os americanos, um certo sistema de equilíbrio, porque haveria contrapoderes a limitar a autonomia dessas instituições que lidam com a força, que lidam com as armas, com a coerção.
Ocorre que o Ministério Público traiu seu compromisso constitucional de uma maneira geral no país, com algumas exceções, apesar de esforços louváveis de tanta gente boa, compromissada democraticamente nessas instituições. Apesar desses esforços individuais, de uma maneira geral, o Ministério Público lavou as mãos e acabou, na prática, sendo cúmplice desses genocídios de jovens negros e de todos os processos de autonomização inconstitucional das polícias.
Os governadores, quando se viam impotentes, quando percebiam que não exerciam controle sobre as polícias, tinham de decidir entre denunciar publicamente esse fato e tomar medidas para reverter o quadro, que foi o que eu pedi que o Garotinho fizesse, ou calar-se, recuar, pôr a viola no saco e subordinar-se à insubordinação, que é o que na prática acontece no país de uma maneira geral, com variações regionais e no tempo, mas basicamente as instituições policiais estão fora de controle. E é um caso patológico tão extensivo no Rio que se tornou evidente, mas isso se dá em todo o Brasil.
As polícias não estão sob comando da autoridade civil política e isso é uma espécie de espelho do que acontece nas Forças Armadas. Elas também constituem um grande enclave e não por acaso, as duas áreas estão interligadas profundamente, as duas áreas vivem com a força e isso leva a sociedade e o Presidente da República, inclusive a autoridade maior, a se verem constantemente, ou de tempos em tempos, acuados, porque têm de conviver, têm de tergiversar, olhar para o outro lado e criar ritualmente, cerimonialmente, meios que simbolicamente surgiram para a sociedade, que há sim comando, controle externo, que há sim autoridade se exercendo, que há comando da autoridade civil política.
Mas isso efetivamente não ocorre. E nós criamos um monstro que convive conosco, mora na nossa garagem e nós então evitamos a garagem, passamos direto para o quintal, fazendo uma curva, fingimos que não estamos vendo esse monstro ao nosso lado. Em algum momento o monstro dá as caras, por assim dizer, arreganha os seus dentes e as suas presas nos aterrorizam.
O que nós estamos vivendo aqui no Rio de Janeiro agora? Nós estamos vivendo de uma maneira dramática, de uma forma cruelíssima, cruel mesmo, esse fenômeno. Por quê? O caso da Marielle é um caso extraordinariamente importante e tem as suas singularidades, tem a sua importância para se discutir. Mas nós tivemos, de 2003 a 2023, 20.791 mortes provocadas por ações policiais. Elas já são cerca de 25% dos homicídios praticados no estado do Rio de Janeiro.
Isso significa alguma coisa realmente escandalosa. Quantos desses casos chegaram aos tribunais? Chegaram a definições judiciais, responsabilização ou até a determinação de inocência no caso de um julgamento que aponte essa doença. Quantos casos? Menos de 10% desses casos chegaram à Justiça. Por quê? Porque os inquéritos sequer se converteram em processo, porque o Ministério Público não apresentou denúncia.
E por que não apresentou denúncia? Por várias razões, omissão, complicidade. Mas, em particular, porque as polícias impedem a existência de investigação, obstruem a justiça. E como fazem isso? Impedindo que haja acesso da perícia ao terreno, não preservam o terreno, não preservam o corpo e dificultam de todas as maneiras a descoberta. Os casos sequer são examinados, muitas vezes. Por isso é possível que nós tenhamos tido no Rio de Janeiro, Ronnie Lessa como um assassino de aluguel conhecido por todos que atuam nessa área ao longo de décadas, matando e solto, livre.
E nós tivemos Adriano da Nóbrega, nós tivemos e temos outros. Alguns deles atuam como milicianos, outros atuam junto ao jogo do bicho, e eles chegam à política. Diante desse processo todo, há uma extraordinária tolerância e se decide o seguinte, “olha, vamos conviver, porque não é possível alterar esse quadro, vamos assimilar esse quadro, vamos nos deixar assimilar por esse quadro, vamos naturalizá-lo e vamos conviver”. Com essas assembleias legislativas que nós temos, governos que nós temos e com a participação do chefe da polícia em um crime mais importante desse recado no Rio de Janeiro.
Isso é a continuação de um processo. Por quê? Cinco chefes de polícia foram presos no Rio de Janeiro nos últimos 20 anos, cinco chefes de polícia. Não são cinco indivíduos, porque o chefe é representante de grupos, e isso é tomado como natural e nada se faz. Quando há identificação desses criminosos se faz uma responsabilização individualizada, mas a instituição aparece sempre à margem de qualquer foco realmente crítico.
Ponte — Qual foi o seu diagnóstico da polícia pelo lado de dentro, quando você chegou e se deparou com a situação da polícia no Rio? E agora, olhando de fora, como você vê a evolução da situação da corrupção, do crime em si, dentro da polícia fluminense da sua época paro o que a gente está enxergando hoje?
Luiz Eduardo Soares — A situação se deteriorou muito, porque de janeiro de 1999, quando eu me tornei subsecretário, até março de 2000, quando eu fui exonerado, nesse período nós implementamos uma série de mudanças e de reformas com muita resistência. Eu fui ameaçado de morte inúmeras vezes, enfim, mil situações difíceis e até naturais numa luta assim tão dura. Mas era um momento em que as reformas conquistavam credibilidade popular, inclusive reformas audaciosas, havia ideias que hoje não passariam de modo alguma pela opinião pública.
A ideia mesmo é de que as polícias precisavam ser profundamente transformadas e a ideia de que era preciso exercer autoridade sobre as polícias, inclusive em benefício dos trabalhadores policiais honestos, honrados, que mereciam respeito, então nós não poderíamos entregar a polícia a esses setores [banda podre]. Isso tudo parecia possível naquela época, hoje é absolutamente impensável, irrealista, naquele momento parecia possível. Tanto que eu fiquei no cargo um ano e três meses, mais ou menos, dizendo essas coisas e praticando e realizando, e a gente promovendo avanços.
A ideia era a seguinte: “olha, nós temos aí condições de contar com os setores profissionais legalistas, nós temos possibilidade de construir uma cultura legalista que pense a polícia como serviço público e como garantidora de direitos, nós podemos avançar nessa direção criando mecanismos e instrumentos que não vão nunca ser adequados porque a nossa arquitetura institucional, nosso modelo policial é muito ruim, irracional, mas nós não podemos transformá-lo porque está determinado pela Constituição e isso é matéria do Congresso Nacional, não tem como realizar no governo do estado esse tipo de mudança, mas nós podemos reduzir os danos e produzir uma série de transformações”.
E as pessoas me perguntaram: “você acha que você vai mudar a cabeça de dezenas de milhares de policiais? Como?”. Esse é um sonho absolutamente irrealista. Eu disse, “eu não vou mudar a cabeça de ninguém, mas eu vou impor a disciplina e fazer com que a disciplina seja praticada, respeitada, vou exercer a minha autoridade, autoridade que me foi concedida pelo governo do estado, junto com a soberania popular, o voto. Então, vai-se exercer essa autoridade, a polícia não vai matar, não vai agredir os direitos humanos, quando fizer será responsabilizada imediatamente. Vamos acabar com esse discurso defensivo, chapa branca, de que a polícia está sempre certa, que no máximo nós vamos realizar investigações rigorosas para punir, vamos acabar com a hipocrisia que sempre marcou o discurso social, a população sabe identificar quem está falando a verdade, vamos ser transparentes”, eu dizia isso nessas palavras, dessa forma desconcertante mesmo.
E as pessoas começavam a levar a sério, a polícia me testou, esses setores começaram a me testar, com as ameaças todas, com provocações e eu reagia mobilizando toda a força que naquele momento o Estado poderia ter para evitar que isso, que eu fosse desautorizado e que essas mudanças fossem desmoralizadas . Eu dizia, lembrando o velho Pascal, “ajoelhe-te e acreditarás”, ou seja, eu não tenho que fazer ninguém acreditar em nada, eu tenho que fazer que esses profissionais se ajoelhem, no sentido de que se dobrem às determinações constitucionais e eles, na prática, vão ter que se adaptar mentalmente também a essas novas práticas.
Bom, era ilusório, acabou sendo, mas era objeto de uma disputa política. Naquele momento não estava fechado o destino, o final dessa luta. E como é que isso acabou? Muito sinteticamente, isso acabou quando o governador se viu numa situação em que ele teve que mudar a sua relação com a Assembleia e com os partidos, porque só foi viável avançar porque nós blindamos a segurança pública totalmente qualquer interferência da política partidária, das indicações, das articulações dessa política fisiológica corrupta.
Essa blindagem só foi possível porque o governador, até quase o finalzinho do ano de 1999, rompeu com o MDB, que era a política tradicional do Rio de Janeiro. Picciani, Cabral, etc. Depois viria o Brazão, já estava ali nessa turma toda. O governador rompeu com esse setor e se fez um bloco progressista. Ele ganhou a disputa eleitoral contra o César Maia e ele teve o apoio do PT, do PCdoB, do PV, ele era do PDT do Brizola. Trabalhou só com o bloco progressista e governou esse primeiro ano dessa maneira, nos dando essa liberdade.
Nós fomos avançando, avançando. Até que no finalzinho do ano ele nos chama, eu na época já era coordenador de toda uma área, ele chama os cinco coordenadores para um café da manhã, ele muito feliz lá no Palácio e diz o seguinte: “acabo de receber uma pesquisa aqui, maravilhosa, que me apontou a mim, Garotinho, como o governador mais popular, mais bem avaliado do país, com 80 % de aprovação. Parabéns a vocês, a todos nós, é uma grande conquista, mas eu quero dizer a vocês que eu sou candidato à Presidência da República e que agora vocês vão tocar o governo e eu vou andar pelo país, ano que vem é ano de eleição municipal, eu vou visitar as principais cidades do Brasil”.
E imediatamente caiu a ficha para mim o que isso significava, qual é a posição que Garotinho disputaria. Lula já era pré-candidato evidentemente no campo progressista, no campo da esquerda, do outro lado já tinha José Serra (PSDB) ali colocado, qual seria a posição para o Garotinho? Ele não podia ocupar o lugar do Lula, nem teria sentido ir à esquerda do Lula, ou seja, ele vai para o centro e se ele vai para o centro ele vai redefinir as relações políticas na Assembleia e ele vai reatar com o MDB.
E o Garotinho sempre dizia: “se algum eu voltar a me aliar com o MDB, a primeira coisa que eles pedem é a sua cabeça”. Por que era tão crucial a minha cabeça? Não é por mim, é porque sem as polícias se fundindo a esses arranjos fisiológicos corruptos, não era possível dar musculatura aos projetos de poder que mais adiante se tornariam esses que nós conhecemos. Eles tinham fome de polícia, eles precisavam restabelecer as relações com delegacias, com os batalhões e refazer essa horda de coalizões embrutecidas e degradadas, era preciso isso.
Quando o Garotinho disse que ia ser candidato à Presidência da República, eu já deduzi o que ia acontecer e daí em diante foi um Deus nos acuda, ladeira abaixo. Ele foi entregando as polícias, eu querendo já sair do governo porque eu não poderia conviver com uma situação que inviabilizasse os nossos projetos, e ele me pedia para ficar mais um pouco, que era provisório, até que eu tive de apresentar publicamente o que estava acontecendo e dizer que a nossa grande luta era contra o fato de que as polícias estavam se colocando fora do controle, a corrupção não era só corrupção, era brutalidade, elas tinham atingido o topo, elas estavam no comando, que ou nós abriríamos uma guerra contra as polícias no sentido mais severo, real, profundo, sincero, ou nós seríamos engolidos por uma máquina que não era só policial, era política também.
Eu fui exonerado, evidentemente, e daí se segue a história. Acabaram todos os nossos projetos, o ano seguinte explodiu de novo a violência policial, com liberdade esse enclave se ensejou, as práticas políticas voltaram a ser aquelas típicas, que então se generalizaram, e nós agora colhemos.
Ponte — Como que tem sido para você avaliar, mesmo a certa distância, esse avanço que a milícia faz sobre o estado do Rio de Janeiro?
Luiz Eduardo Soares — Antes, inclusive, de responder mais diretamente, eu acho importante salientar que até o fim de 2006, não havia investigação sobre milícias. No final de 2006, um delegado começou a se movimentar nessa direção, e foi sutilmente deslocado para o interior do estado, era um ano de eleição, e é muito interessante, isso foi adiantado na CPI, conduzida pelo então deputado federal Marcelo Freixo a partir de 2008, é muito interessante observar o mapa eleitoral de 2006, para verificar de que modo candidaturas ligadas à segurança pública demonstravam uma concentração de votos em áreas comandadas por milícias. E isso se refletia também no pleito majoritário, porque candidaturas majoritárias, por exemplo, o próprio prefeito Cesar Maia dizia que as milícias eram “autodefesa comunitária”, o Eduardo Paes (atual prefeito do Rio de Janeiro, pelo PSD) ainda dizia que não havia essa história de milícia. Havia, portanto, ali uma mescla, na época, de negacionismo, e de um negacionismo traduzido numa retórica que atribuía virtudes a essa ação criminosa.
Isso tudo é expressão de aliança política na base, porque naquele momento as milícias ofereciam uma espécie de monopólio no mercado de votos, monopólio localizado no mercado de votos, ou seja, faziam uma espécie de curral eleitoral beneficiando determinadas candidaturas. Era nítida a aliança entre políticos e milicianos. A partir de um certo momento essa equação começa a se desequilibrar, porque os próprios milicianos começam a demonstrar disposição para competir no mercado de votos. Isso os torna competidores e, portanto, adversários daqueles que eram anteriormente apenas seus aliados. Ou seja, os políticos tradicionais, fisiológicos, abertos à negociação com essa modalidade criminosa, eles acabam se assustando com o poderio desses grupos, acabam se preocupando com o potencial eleitoral e, uma vez no poder, começam a agir de forma distinta.
Isso fica patente na passagem de 2006 para 2007. No final de 2006, quem tenta investigar é punido discretamente, ou nem tão discretamente assim. E, a partir de 2007, com a eleição de Sérgio Cabral (MDB), a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco), com Cláudio Ferraz à frente como delegado titular, começa a agir e nós vamos ter, de 2007 a 2010, quase 500 prisões de milicianos.
Isso mostra uma virada e essa virada tem um sentido. Aquele tipo de tolerância e de articulação visando benefícios eleitorais, aquele tipo de cumplicidade que se dava, se transformava em um conflito, porque os políticos tradicionais, repito, se viram, de alguma maneira, pressionados por nossos competidores e começaram a liderar setores policiais profissionais que queriam avançar na investigação, começaram a liderá-los para que eles atuassem. E, assim, nós podemos ver como o Sérgio Cabral, que se beneficiou desde o início e depois, não obstruiu, autorizou o trabalho da Draco a partir de 2007. É importante entender essa dinâmica ali.
Depois, na sequência disso, houve um recuo das milícias. A partir dali, nós seguimos com essa primeira investida da polícia contra a milícia. Isso vai culminar numa ação da Polícia Federal, motivada até pelo setor de segurança do Rio de Janeiro, mais comprometido profissionalmente, o próprio Cláudio Ferraz. Uma ação da Polícia Federal, em 2010 e 2011, que desvenda vinculações dentro da Polícia Civil com a milícia. Lá virá a prisão do vice-chefe da polícia, muito vinculado ao então chefe. O vice-chefe se chamava Carlos Alberto B. Oliveira, não confundir Carlos Alberto Oliveira, que é uma pessoa muito séria. Mas esse Oliveira era o braço direito do então chefe, Allan Turnowski. E era miliciano, ligado às milícias e uma ação da Polícia Federal desvenda essa malha.
Por quê? Porque a própria Polícia Civil, o setor profissional, tinha chegado até lá, mas como esse grupo estava na cúpula, foi necessário pedir socorro à Polícia Federal. E o secretário Mariano Beltrame, que era próximo da Polícia Federal, a mobilizou indiretamente, com a autoridade que ele faz isso, mas indiretamente, e abriu espaço para que a Polícia Federal investigasse, interviesse e fizesse ali a intervenção.
E nós tivemos a queda do Turnowski e também a prisão do seu braço direito, o braço direito que estava com ele já há mais de 10 anos, etc. Esse foi o momento de recuo das milícias, recuo das milícias e o reposicionamento da Segurança Pública em 2011. O que acontece logo em seguida? Uma recomposição política, as milícias passam, como dizia o sociólogo, o nosso amigo Ignacio Cano, na pesquisa que ele fez naquela época, que nesse mundo de atitude passam a agir “no sapatinho”, que é uma expressão carioca, e quer dizer, silenciosamente, discretamente, e ao invés das práticas mais ostensivas de torturas públicas e assassinatos públicos, como pedagogia do crime, ao invés disso, o que nós passamos a ter é uma ação mais discreta, porque era preciso recuar. Aquela ostensividade toda, ela se tornou perigosa e as milícias, então criaram cemitérios clandestinos, chantageavam as famílias das vítimas para que elas não denunciassem, etc.
Esse recuo das milícias era um recuo no modo de agir, mas não um recuo nas suas ambições e avanços econômicos, políticos, etc. A partir daí, há uma recomposição, e as forças, então, passam a negociar em novos termos, as milícias vão se consolidando, avançando, as polícias vulneráveis internamente, porque não havia controle da degradação policial, e o quadro cresce exponencialmente, como a gente viu, com as consequências conhecidas.
Agora, retorno à sua pergunta: o que havia até 2000 eram as “polícias mineiras”, chamávamos assim, e era uma denominação geral para esse processo de autonomização de grupos que passavam a agir à margem da própria instituição e da legalidade. Grupos anteriores, até autorizados, sempre contando com beneplácitos, com autorização casta ou explícita dos superiores. Antes disso, esse beneplácito e essa autorização se dava já desde os anos 50, a criação de grupos que passavam a caçar os chamados marginais ou bandidos, etc., como uma espécie de força independente da legalidade, eram matadores que operavam com justiçamentos, mas sempre sob as bênçãos da autoridade do Estado.
Depois desse primeiro momento de criação desses núcleos especiais, e o fato de ter autorização para a execução desses municípios, esses núcleos passaram a entender que era uma posição muito interessante e lucrativa, e passaram a aproveitar essa autonomia concedida, uma autonomia conquistada, que se afastava até dos limites anteriores, e eles começaram a funcionar como esquadrões da morte, assassinos a soldo, vendendo seus trabalhos, a sua liberdade de ação e a sua perícia para matar eventuais inimigos, ou aqueles que perturbavam o comércio local, ou pequenos assaltantes que furtavam também, etc.
Isso ali de interesses locais, benefício também de políticos locais, na Baixada, etc. Esse tipo de arranjo era o desdobramento daquela iniciativa dos anos 50. E esses grupos encontraram na ditadura um terreno muito fértil para prosperar, eles negociaram, foram cooptados pela ditadura, atuaram na tortura, isso já está bem documentado, e serviam também ali, começaram a se aproximar, investiam na Baixada Fluminense, e se formaram conglomerados, com interesses bem específicos, políticos, econômicos, criminais, e eram egressos das polícias, não só egressos, ainda estavam ao lado das polícias, vamos falar de policiais.
Isso formava essa nebulosa que nós chamávamos de “polícias mineiras”. Isso tudo começa a se organizar a partir do tráfico, da observação que os policiais fizeram das startups do crime que eram os traficantes. Em que sentido? É como se você tivesse uma experiência observada por profissionais, experiência de jovens nas favelas, esses jovens mostravam que domínio territorial funcionava, a força das armas, e que isso era bastante lucrativo na venda de drogas.
Eles aprenderam que poderiam fazer o mesmo, e não se limitando às drogas. Eles podiam aproveitar o domínio territorial, o domínio sobre comunidades, substituindo os traficantes para muito mais, por atividade muito mais lucrativa do que exclusivamente as drogas. Quais seriam elas? Taxar toda a atividade econômica, impor taxas ao acesso à terra, entre empreendimentos imobiliários, transporte, comunicação, gás, luz, etc.
O que nós sabemos é que essa carteira de negócios foi se ampliando. Com essa retórica inicial, que combateria os traficantes, havia uma dinâmica de segurança. Isso não tinha nenhuma substância, porque eles negociariam o que tivesse lucro. Mas no início era interessante deixar de lado as drogas para que a legitimidade se impusesse. Depois, no processo, eles passaram a assimilar também o negócio das drogas, terceirizando, incorporando os operadores de varejo do tráfico, ou eles mesmos praticando diretamente.
Esse discurso caiu por terra na prática ao longo do tempo. Inicialmente havia essa forma de apresentação do projeto. O tráfico funcionou como uma startup experimental, cujo modelo de negócio depois foi aplicado de forma muito mais inteligente, ambiciosa, muito mais ampla, pelos profissionais de polícia, que eram mais velhos, mais preparados, e que puderam ir, aos poucos, substituindo o tráfico ou negociando com o tráfico. Aconteceu depois, ao longo do tempo, com o Terceiro Comando, como nós sabemos.
Essa transição se deu ali já na passagem. A partir de 2001, 2002, esse processo foi se afirmando. E aquela experiência muito localizada de Rio das Pedras foi ampliada. E o resto é história. Quem marcou a diferença categorial de denominação foi a jornalista Vera Araújo, do jornal O Globo, que fazia uma reportagem importante sobre a “polícia mineira”. E, em uma certa reportagem, passou a denominar esse grupo, esse tipo de operação, como “milícia”. E o nome foi aproveitado, porque era uma boa síntese, uma boa descrição, e o nome passou a ter vigência. Isso se dá nos primeiros anos do século XXI. Nós tivemos a transição. Mas o que é essa história? Há uma continuidade. Qual é o elemento de continuidade? Autonomização de grupos policiais. Autonomização porque eles passam a agir independentemente da corporação, independentemente da instituição, independentemente de parâmetros legais. Passam a agir, de fato, como protagonistas criminais, sem deixar de ser policiais inicialmente. Depois vem a incorporação de outros componentes e tudo mais complexo.
Ponte — Como que você reflete esse aumento dessa autonomização policial?
Luiz Eduardo Soares — Acompanhando isso, a gente via que aquilo que era objeto sempre da nossa preocupação, das nossas denúncias, das nossas tentativas de lutar, aquilo se fortalecia. O que era aquilo que nos angustiava? Era a autonomização progressiva dessas instituições, desse enclave. Esse enclave policial não se submetia a comandos civis políticos e internamente esse processo de autonomização, que nós medicávamos macroestruturalmente, vinha se dando também uma espécie de metástase. Se as polícias não se mostravam obedientes às determinações constitucionais e obedientes à linha de autoridade, à disciplina e à linha de autoridade, que segundo a Constituição, como a Constituição aponta, a linha de autoridade tem como termo, como eixo, como referência o executivo estadual, se os governadores não são capazes de comandar as instituições policiais, as instituições policiais escapam desse controle, são refratárias ao controle civil e político e são refratárias ao controle externo de qualquer natureza sejam ouvidorias, corregedorias. Eu criei uma corregedoria que envolvia as duas instituições, unificada, portanto, e externa, com elementos externos.
Isso não funcionava porque o apelo corporativo sempre foi predominante. A Ouvidoria que nós tentamos aqui, com Julita Lemgruber, ela foi fulminada pelos interesses corporativos, a corregedoria unificada, externa unificada, foi fulminada, continuou funcionando até hoje, mas sem nenhuma efetividade, ela foi cortada, domesticada.
O Ministério Público jamais exerceu o seu dever constitucional de praticar o controle externo à atividade policial, se tornando conivente nesse processo. A sociedade não conseguia exercer nenhum tipo de controle e a autoridade suprema, o Executivo estadual, o governador, não exerceu controle.
Essa era a nossa grande questão que se manifesta, cuja implicação negativa mais imediata era o que chamamos de genocídio de jovens negros, jovens pobres, nos territórios vulneráveis, as execuçõe, a prática da brutalidade limitada, a liberação que se dá com a corrupção que vai se generalizando, essa corrupção que é indissociável da própria polícia, porque todas essas são manifestações dessa autonomia ilegal das polícias, se elas, enquanto instituições, no marco institucional mais amplo, se elas constituíram um enclave institucional que podia refratar a autodeterminação política e refratar a Constituição dentro das instituições, nós tínhamos o mesmo processo.
E esse processo era o processo em que as partes iam se autonomizando relativamente ao comando interno, então vai para o espaço hierarquia e disciplina, e você tem um processo centrífugo de multiplicação metastática dos grupos, dos nichos autonomizados. Nós estamos falando do mesmo processo. Quando a milícia aparece, é uma espécie de exacerbação dessa autonomização que agora caracteriza as polícias em seu conjunto, apenas as caracteriza mais e mais uma espécie de implosão das próprias instituições.
Esse processo parece o câncer, em que as células se multiplicam por processos endógenos e não comandados pelo corpo, e não submetidos ao equilíbrio do corpo. O que nós temos é um processo análogo, essas células, esses núcleos, esses interesses explodindo a coluna vertebral interna, que seria composta por hierarquia e disciplina, na instituição civil e na instituição militar. Tudo isso vai para o espaço, e isso estava presente na brutalidade da violência policial, na corrupção, na relação com o crime, nos vínculos criminosos, e particularmente nos quadros da morte. Tudo isso são manifestações do mesmo processo, da mesma lógica.
Quando as milícias começam a aparecer como protagonistas, será que agora a gente vai precisar desenhar, para mostrar o que está acontecendo, é a sequência dessa mesma lógica, que nós estamos identificando, denunciando e tentando controlar. É isso.
Ponte — Um secretário de Segurança do Rio de Janeiro anterior ao seu trabalho, o Hélio Luz, disse uma vez que uma vez foi perguntado o que precisava se fazer para diminuir o número de sequestros, que para diminuir o sequestro no Rio de Janeiro a divisão Anti-Sequestros deveria parar de sequestrar. E agora a gente vê, como um fenômeno dado, que a Delegacia de Homicídios precisa parar de matar. No caso da Marielle, a gente viu que houve o planejamento do assassinato feito pelo então chefe da Delegacia de Homicídios, que depois vai ser chefe da Polícia Civil, quando acontece essa execução. Além disso, há indícios de que se faturava pelo menos R$ 300 mil para atrapalhar investigações, a depender do caso. O Brasil tem uma taxa muito baixa de resolução de homicídios pela Polícia Civil. E a pergunta que fica quando você vê uma venda desse bem mais precioso, que é a vida, a taxa baixa de resolução de homicídios, ela é resultado da “incompetência” da Polícia Civil, ou ela é um projeto que é feito para vender mais?
Luiz Eduardo Soares — Eu acho que nós temos de cuidar um pouco disso. Uma resposta rigorosa teria de contar com dados, com informações que são inacessíveis. Até hoje, a inacessibilidade é parte desse processo de determinação, expressão e condição disso. Nós não temos informações sobre cada caso e não podemos, portanto, avaliar em cada situação onde houve o quê.
Mas é evidente que há uma ambiência de conivência, de prática de corrupção, de venda de impunidade, digamos assim, de venda de proteção, isso se dá no arrego e se dá na suspensão de investigações. E isso tudo também afeta o Judiciário, com as vendas de sentenças. E o interesse público se retirando da cena tantas vezes, recuando, isso é evidente. Na polícia isso é tudo muito mais evidente, mas eu não creio que o judiciário esteja isento disso.
Nós temos aí um problema que é difícil até de mensurar. Por isso eu tinha te dito antes, de 2003 até 2023, nós tivemos 20.791 mortes praticadas por policiais, correspondendo a cerca de um quarto dos homicídios perpetrados no estado. Desse número absurdo, menos de 10% chegaram ao pronunciamento judicial, aos tribunais. Houve um filtro do Ministério Público e tudo ali cessou. Tudo ali foi contido por debilidade da instrução do inquérito, falta de perícia, por atribuição exclusiva de verdade ao pronunciamento dos próprios policiais, corpo mole, falta de valorização das testemunhas locais, que também ficam frequentemente acuadas, falta de esforço no recolhimento de provas, e por anuência, por tolerância, nesse tipo de complexidade do próprio Ministério Público, que acaba sendo aliado no silêncio.
Quando você pergunta quantos casos nós temos que são expressões de incompetência e quantos nós teríamos aí de respeito à cumplicidade da corrupção, é impossível responder exatamente, mas nós temos certamente a presença dos dois fatores.No caso desse número que eu te dei, nem falando da taxa de elucidação de homicídios, é muito eloquente. Mostra a presença dos elementos de incompetência e de cumplicidade.
Eu diria que o que predomina é a cumplicidade, porque é uma postura que se reproduz e contra a qual não há nenhum esforço. Não é que tenha havido esforço que foi mal sucedido. Não há esforço, esses inquéritos nascem e morrem sem ser instruídos. O que me parece predominante é a cumplicidade, é a corrupção e é o predomínio desse discurso, de que “bandido bom é bandido morto, a polícia tem que matar mesmo e nós temos que dar cobertura à violência policial”.
Como se assim, nós tivéssemos vencido o crime e o resultado disso estaria em frente de nós.
Ponte — O que fazer? Como que a gente consegue hoje, nesse estado de, como você diz, degradação institucional nas polícias do Rio de Janeiro (óbvio que não é uma questão exclusiva do Rio de Janeiro), o que a gente pode fazer ainda como instituição, como nação, para refrear ou pelo menos tentar, talvez até eventualmente ter um refluxo disso, desse processo de autonomização policial e de corrupção policial, de tanto desrespeito aos direitos humanos? Porque a gente vê também que existe todo um discurso de que a polícia pode ser matadora, mas não pode ser corrupta. O caso da Marielle mostra para a gente que, na verdade, essas coisas andam de mãos dadas, como você mesmo falou.
Luiz Eduardo Soares — É, esse é o meu ponto, exatamente. Eu diria que há muito a fazer em muitos níveis. Vou destacar dois pontos aqui que são extremamente importantes. Um diz respeito ao trabalho da comunicação, trabalho da mídia, o trabalho que vocês têm feito, para mim, é parte da solução. O esforço de ir além do óbvio, muito além de sensacionalismo, dessa postura reativa que só dá atenção quando alguma crise dramática emerge e depois se esquece do problema, que trata sempre superficialmente, cada caso como se fosse absolutamente excepcional, portanto, se satisfazendo com respostas tópicas, individualizadas, sem reconhecer a profundidade do fenômeno e sem assumir, de fato, uma posição crítica mais estrutural.
A mídia tem sido um espelho de uma consciência muito leviana que, no melhor nos casos, mostra empatia com as vítimas circunstancialmente e faz eco a discursos inteiramente superficiais, que são expressão, por um lado, de ignorância e, por outro lado, de interesse, que acaba sendo cúmplice do pior. Vou te dar um exemplo muito concreto. Me procuram, eu já não respondo mais, há muitos anos parei de responder, você vai entender por quê.
Me procuram quando há uma crise, e isso acontece com frequência. Dizem, “ah, então, muito bem, como é que você viu isso e tal, e o que fazer”, não nesse sentido que você me perguntou depois de uma conversa profunda, no sentido trivial de uma conversa de cinco minutos. “O que fazer?”.Eu fico perplexo com a pergunta. Não, mas concretamente, objetivamente, usando esses advérbios, como é que você pode lidar com uma pergunta como essa?
“Objetivamente, concretamente, o que fazer?”. Nós temos estruturas degradadas a partir de uma certa lógica histórica que está se reproduzindo. “O que fazer?”. Refundar tudo isso e, em primeiro lugar, você deixar de fazer uma pergunta simplista, deixar de considerar que seja possível definir o que fazer, topicamente, concretamente, como se uma ação emergencial resolvesse esse problema.
E quando você se recusa a entrar nesse jogo de linguagem simplificador-reducionista, a postura do outro lado é, “ah, deve ser intelectual, não tem sentido prático”. Isso é cumplicidade involuntária, mas cumplicidade com o horror que nós vivemos. Estamos do lado da questão da vida e é muito importante. Ou então se faz aquela notícia entretenimento, que é, pergunta você alguma coisa, você fala, os colegas, as colegas falam, as vítimas falam e nós viramos algumas aspas que dão legitimidade a uma reportagem que ouve os dois lados. Aí ouve os policiais, ouve o governo e fica tudo assim, uma partezinha. E não é a mídia sensacionalista, entendeu? Porque todo mundo aí aponta o dedo para o Datena e diz “não, nós não fazemos esse tipo de jornalismo”. O jornalismo pior nem é esse do Datena, que é horrível, mas o pior é o que parece bonzinho, fofo.
A outra questão é a do campo progressista, que continua fazendo alianças com atores políticos comprometidos com esses processos de degradação. Em nome do realismo, da próxima vitória eleitoral, a partir de uma perspectiva oportunista eleitoral, em que a tática se impõe e anula qualquer perspectiva estratégica. É sempre a posição imediatista: “é preciso engolir sapos, é preciso buscar essas alianças para chegar ao povo, para conquistar votos. Quando nós dispusermos de votos suficientes, tivermos posições favoráveis, nós saberemos o que fazer e transformaremos a situação”. E, com isso, nós vamos alimentando esses atores que não são submetidos pelo campo progressista, que na verdade submetem o campo progressista. Esse tipo de beijo da morte, de pacto fáustico, está em curso.
E alguns grupos recusam a crítica que se faz, acusam de “udenismo”, moralismo, como se isso fosse um purismo. Sem entender que isso não se trata de moralismo, de purismo, as alianças todas no campo político são possíveis, dependem de conjunturas, da possibilidade de compartilhar alguns interesses comuns, compartilhar segmentos de um programa provisoriamente, isso faz parte da política, isso é indispensável.
Não há problema nas alianças, o problema é quando nós não estamos falando de adversários políticos que têm seus próprios programas, nós estamos falando de forças da degradação, que não são da degradação moral, são da degradação democrática. Inviabilizam a participação, a organização popular e acabam esmagando a cidadania. O que está em jogo são poderes micropoderes tirânicos que vão se fortalecendo, se multiplicando e passam a ser acoplados ao Estado. Essa atitude de tolerância e suposto pragmatismo me parece que é suicida.