Tribunal de Justiça de SP determinou que Celso Vendramini preste serviços à comunidade por três anos e pague multa por falas discriminatórias em julgamento de PMs, em 2019; caso foi revelado pela Ponte
O ex-PM e advogado Celso Machado Vendramini, conhecido por defender policiais acusados de homicídios, foi condenado a três anos de reclusão em regime aberto por LGBTfobia após ter feito falas discriminatórias e atacado uma promotora lésbica durante um júri popular em 2019. O Tribunal de Justiça de São Paulo converteu a pena em prestação de serviços à comunidade durante o período, além de pagamento de 20 salários mínimos a um fundo público do Estado de São Paulo ou da União que se dedique à defesa dos direitos da população LGBT+ e mais 30 dias-multa no valor de um terço de salário mínimo.
A juíza Cynthia Torres Cristofaro, da 23ª Vara Criminal do Foro da Barra Funda, aplicou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que equiparou, em 2019, a LGBTfobia ao crime de racismo. Ela entendeu que a conduta do advogado foi “criminosa” e que ele proferiu discurso de ódio quando “associou (e associa ainda, mesmo em suas manifestações no curso do processo, mesmo em seu interrogatório judicial) a homossexualidade ao perverso e ao pernicioso, ao desvirtuamento da família, à corrupção de crianças, ao desrespeito a símbolos religiosos. Faz isso ao mesmo tempo em que faz afirmações de respeito do tipo ‘não tenho nada contra’, as quais, no entanto, sua fala como todo desmente. Confunde performances artísticas com pornografia, estabelece generalizações indevidas, silogismos defeituosos”.
A magistrada, contudo, não sentenciou Vendramini por injúria contra a promotora, ao argumentar que não ficou demonstrado que as falas dele se dirigiram especificamente à ela, embora ele tenha se referido à aliança de casamento dela e feito comentários sobre ela ter ou não filhos. “Não se sabe ao certo se a homossexualidade da promotora foi o mote das falas do réu, é possível, mas não é certo. E não se dispondo da imagem do julgamento, apenas do áudio, não há como se contar com percepção maior quanto à postura corporal do réu em relação à vítima, quanto à direção de seu olhar quando da pronúncia de suas falas, por exemplo, ao passo que os jurados ouvidos aqui como testemunhas não tiveram percepção de que as ofensas homofóbicas fossem especificamente dirigidas à vítima”, escreveu.
Além da gravação e da representação da promotora Claudia Mac Dowell, também foram ouvidas seis testemunhas, das quais cinco atuaram como juradas no julgamento e confirmaram que Vendramini fez falas discriminatórias durante o julgamento dos dois PMs que defendia e que o caso não tinha qualquer relação com a comunidade LGBT+. Também relataram que a promotora saiu chorando ao final do júri.
Cabe recurso à decisão. O Ministério Público entrou com apelação para que o tribunal reconsidere e condene Vendramini pelo crime de injúria.
À Ponte, a promotora Claudia Mac Dowell disse que é um avanço o judiciário reconhecer a LGBTfobia no discurso do advogado, porém concorda com a avaliação do MPSP de que o tribunal também deveria ter atestado que ela foi diretamente agredida com o discurso. “Apesar da absolvição para o crime de injúria, ler na sentença que o que ele fez é errado, parece tão pouco, tão óbvio, mas isso já tem um significado tão grande para mim e para muitos que estão na mesma situação que eu. É tão grande porque quer dizer que eu não estou de ‘mimimi’ como todos falam, porque acontece uma espécie de gaslighting, de ‘vocês reclamam demais, estão lacrando’. Não, eu estou reclamando porque isso é errado, ele não pode fazer isso. É bom poder ouvir isso do judiciário”, afirma.
Ela, que relatou nunca ter passado por situação semelhante em 30 anos de Ministério Público, resolveu encerrar a atuação em júris por conta do que aconteceu e pediu para ser transferida para outra promotoria criminal para evitar encontrar o advogado, que costuma atuar em casos de policiais que vão a júri popular. “Eu tenho 57 anos de idade e cansei de ouvir de pessoas que são iguais a mim que a gente é aberração, que a gente não pode ficar na frente das crianças, que a gente é contra a família, que a gente é antinatural. Por mais em dia que esteja a sua terapia, isso vai te minando”, diz.
“Eu não quero mais ouvir isso, não sou mais obrigada a ouvir e estou fazendo uma modesta contribuição porque se eu, branca, de classe média, promotora de justiça, tenho uma posição de proteção para poder falar disso e passei por isso, imagine as pessoas que não podem falar pelo o que estão passando”, declarou. “Os crimes de ódio passam pela piada, passam pelas micro-agressões, pela expulsão de locais públicos, expulsão de banheiro, apagamento, silenciamento e vai terminar nas agressões físicas, na eliminação, e nos suicídios também”.
Essa é a segunda condenação sobre o caso que recai contra o ex-PM. Ele também foi submetido a processo na Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania (SJC) e foi condenado a pagar 1 mil UFESPs com base na Lei 10.948/2001, que pune de forma administrativa empresas e pessoas físicas por discriminação em razão de orientação sexual e/ou identidade de gênero. UFESPs são Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, cujo valor muda todos os anos. O valor de unidade de UFESP para 2023, por exemplo, é de R$ 34,26, o que corresponderia a R$ 34.260,00 a ser desembolsado por Vendramini.
O montante vai ser direcionado ao Fundo Especial de Despesa de Reparação de Interesses Difusos, destinado a projetos da secretaria. À Ponte, a assessoria da pasta disse que está analisando recurso a defesa de Vendramini impetrou contra a decisão. O advogado também tenta anular esse procedimento desde 2021 em ação no Tribunal de Justiça, que ainda não proferiu sentença definitiva sobre o caso, ao alegar que o Executivo não teria competência para legislar sobre direitos fundamentais — o que já foi rechaçado em uma decisão liminar (de urgência) naquele ano.
A reportagem tentou contatar Celso Vendramini, mas não teve retorno. Durante o processo, ele negou ter sido LGBTfóbico, disse que não sabia que a promotora é lésbica e “considerou que os jurados do caso eram conservadores, escolheu como técnica fazer crítica às ocorrências a que fez menção que considerou ofensivas a sua religião (é católico), mas não criticou a comunidade LGBT+ como um todo, elogiou-os em todas as suas falas”.
Relembre o caso
Em 2019, a Ponte revelou que o advogado e ex-PM Celso Vendramini fez comentários LGBTfóbicos durante dois dias de julgamento contra dois PMs que foram acusados que executar duas pessoas suspeitas de um roubo. Ele fazia a defesa da dupla.
“Já começou a falar que o atual presidente [Jair Bolsonaro] vai acabar com a corrupção, vai valorizar a família e ‘eu vejo que a promotora tem uma aliança na mão esquerda, ela deve ser a favor da família’. Fiquei quieta. ‘Bom mesmo é o [Vladimir] Putin [presidente da Rússia] que acabou com palhaçada de passeata gay’. Ficou por isso”, lembrou a representante do MPSP sobre uma das falas que ele proferiu.
O nível das declarações piorou na etapa final do julgamento. Após todos serem ouvidos (testemunhas de acusação, de defesa, em comum e os depoimentos do réus), há o debate, quando defesa (Vendramini) e acusação (Mac Dowell) apresentaram seus argumentos aos jurados para buscar a absolvição ou condenação, respectivamente.
Na tréplica, Vendramini disse: “Não tenho nada contra ser homossexual, quer ser vai ser entre quatro paredes, só não fica influenciando as crianças. Esse negócio de movimento LGBT só serve para uma coisa: ir na Avenida Paulista enfiar crucifixo no ânus e na vagina”.
Em outro momento, declarou: “O pessoal fala muito da Rússia… eu sou fã do Putin. Sou fã do Putin… lá não tem boi não. Lá não tem passeata gay Rússia não. E os comunistas adoram… né… os comunistas… a-do-ram…”. Entre as outras falas, também afirmou: “Vai sê gay lá na Rússia pá vê o que acontece… o Putin. Eu acho que a… a… a… a democracia da Rússia… é a democracia que eu gosto…”
A promotora explicou que permaneceu sem respondê-lo até antes do anúncio da sentença que absolveu os dois policiais das acusações. Foi quando pediu palavra à juíza para incluir oficialmente uma fala sua. “Constou um pequeno extrato na ata, fazia um público agradecimento ao doutor Celso Vendramini por ser tão explícito nesse tipo de pensamento retrogrado, obscurantista, medieval, preconceituoso. Ele mostrava para mim que que eu tinha obrigação, como homossexual e detentora de um cargo de autoridade, de exigir a defesa dos direitos de pessoas como eu”, explicou Mac Dowell.
Os policiais foram absolvidos na época, mas após recurso impetrado pela promotora, o júri foi anulado em 2021. A Ponte apurou que em 12 junho deste ano o novo júri foi novamente anulado porque Vendramini comentou que o ministro do STF Alexandre de Moraes era “advogado do PCC”, o que não é verdade, e houve uma confusão com a promotoria sobre interrupções durante questionamentos às testemunhas. No termo da audiência, que a reportagem teve acesso, o advogado contesta o Ministério Público, que disse que ele estava praticando calúnia, ao declarar “falei apenas o que está na internet”.
Além de encerrar o julgamento, cuja nova data ainda não foi definida, a juíza Paula Marie Konno acatou pedido do Ministério Público para que as cópias da gravação da sessão fossem remetidas ao STF para “providências cabíveis com relação ao que pode atingir a honra do Excelentíssimo Senhor Ministro Alexandre de Moraes”, além de ofício à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).