Análise| No massacre de Tulsa, a branquitude fez o de sempre: aniquilou, saqueou e matou

Há 100 anos, um bairro negro estadunidense foi exterminado em uma noite; A Nação Precisa Acordar, livro recém lançado no Brasil, traz as vozes dos sobreviventes

18 horas. 1.000 casas queimadas. 40 quarteirões incendiados. 9 mil pessoas desabrigadas. Uma turba de cerca de 13 mil brancos armados com anuência da polícia e do Estado. Não há uma estimativa oficial de mortos. Estes são os números que compõe o que é conhecido como o Massacre de Tulsa, quando a “metrópole negra” do sudoeste dos Estados Unidos foi completamente aniquilada pela branquitude. Poderiam ser também os números de alguma ação policial recente, mas o massacre tem quase 100 anos de idade já.

A jornalista negra Mary E. Jones Parrish legou no livro A Nação Precisa Acordar: Meu Testemunho do Massacre Racial de Tulsa em 1921, publicado no Brasil pela Editora Fósforo, um relato pessoal e um importante trabalho de registro de memória – uma das funções do jornalismo. Por meio de seu livro, em pouco mais de 150 páginas, ela cria um retrato do que aconteceu entre os dias 31 de maio e 1 de junho de 1921 no distrito negro de Tulsa, em Oklahoma.

Foto de um grupo de homens negros marcham pelas ruas de Tulsa, sob guarda armada, mantida no Departamento de Coleções Especiais da Biblioteca McFarlin da Universidade de Tulsa.

O distrito de Greenwood era conhecido como a “Wall Street negra”. Seus cidadãos construíram ali uma comunidade próspera com negócios dirigidos por pessoas negras, boas casas e serviços de médico, advocacia entre outros. Uma comunidade orgulhosa do que vinha conquistando ao longo dos anos. Uma espécie de paraíso negro no Norte estadunidense, região que sempre se aventou como espaço livre, avançado e progressista.

A farsa cai de forma muito banal. Um jovem negro pisa no pé de uma ascensorista branca. Há um diálogo alterado. O jovem é preso e, na imprensa e nas ruas, a história que corre é que houve um estupro, ressurgindo o velho mito do homem negro estuprador. Como rastilho de pólvora, organiza-se um linchamento e a informação chega ao bairro negro, um grupo de homens se organiza para proteger seu irmão. Dois grupos se encontram diante da delegacia. Umas dezenas de negros armados contra centenas de brancos armados. Um tiro e o inferno começa. “A partir daquele momento a pacífica e tranquila Tulsa se transformou numa estufa de destruição”, conta a autora.

Foto panorâmica da área de Greenwood depois do massacre | Wikimedia Commons

A princípio, a população negra acreditou que tinha as forças legais ao seu lado. Mas logo descobriram que – para variar – estavam sozinhos. “O tiroteio e o incêndio continuaram por longos intervalos […] Uma amiga do prédio ligou para o Corpo de Bombeiros. A resposta foi ‘Eles logo estarão aí’, mas nunca apareceram. Por volta de umas cinco horas, uma senhora amiga minha, ligou para o Departamento de Polícia e perguntou quando os agentes chegariam a Tulsa, e a resposta foi ‘Por volta das sete horas’”.

Aos relatos de Mary Parrish, que estava em Tulsa na noite do Massacre, se unem os de outros homens e mulheres que ajudam redesenhar o cenário de caos. “Os brancos atiravam em pessoas de cor que, aparentemente desconhecendo o problema, estavam a caminho do trabalho e, ao passarem por ali foram recebidas com uma saraivada de tiros”, relatou o advogado Richards J. Hill. “[…]Os brancos entraram nas casas recém-desocupadas, levaram tudo o que havia de valor, abriram cofres, destruíram todos os papeis e documentos jurídicos, e então atearam fogo aos prédios para ocultar o crime”, diz parte do relato do químico farmacêutico P.S. Thompson.

Havia caminhões para auxiliar os saques às casas das pessoas negras enquanto estas eram levadas de suas casas até locais específicos, passando diante de bairros brancos que faziam pouco caso de sua situação. Aviões com homens armados – avós dos helicópteros que sobrevoam as comunidades no Rio de Janeiro? – cruzaram os céus do distrito reforçando o cenário de guerra e eliminação de qualquer vestígio daquele quilombo urbano orgulhoso.

Foto dos incêndios durante o massacre de 1º de junho de 1921, mantida no Departamento de Coleções Especiais da Biblioteca McFarlin da Universidade de Tulsa.

A impressão desanimadora é de que, independente da situação em que se encontram – escravidão ou liberdade, os negros estadunidenses e nós aqui no Sul também – sempre seremos os alvos da violência da branquitude. Somos nós, pessoas negras, acusadas de não nos encaixarmos nos padrões de civilização da branquitude que somos as vítimas da crueldade que não é uma doença, um mero preconceito e sim algo que está na raiz do Estado e da sociedade lá e aqui. Os lugares ocupados hoje foram distribuídos com base nessa classificação que permite que haja quem possa ter e quem não possa, quem pode sobreviver e quem é descartável.

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100 anos separam Tulsa do caso do Beto no Rio Grande do Sul, das operações policiais no Rio de Janeiro, das prisões injustas e da violência policial aqui e lá. Talvez já não haja destruição física de bairros inteiros, mas há outras formas de se sufocar uma comunidade até sua morte. O “grande problema” para quem busca a aniquilação é que, assim como os sobreviventes de Tulsa, buscaram se recompor e reconstruir em meio a uma série de adversidade, os sobreviventes das violências atuais criam redes de luta e sobrevivência. Afinal, eles combinaram de nos matar e a gente combinou de não morrer.

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