Ouça Prove sua Inocência, podcast da Ponte com a Fundação Heinrich Böll

Série em sete episódios conta a história de pessoas presas e até condenadas com provas frágeis e do sistema que permite que isso seja tão comum no Brasil

Quando começamos a idealizar o podcast Prove sua Inocência em parceria com a Fundação Heinrich Böll, remontamos a história não tão longínqua da Ponte Jornalismo que, pioneira, entendeu que esse fenômeno merecia bastante atenção por se tratar de uma vocalização do modus operandi seletivo, racista e classista pelo qual opera o nosso sistema de justiça criminal. De ponta a ponta. Do policial militar fazendo a abordagem na rua até o juiz de segunda instância. 

A imprensa, de forma geral, até muito pouco tempo tratou casos desse tipo como situações pontuais ou isoladas. Mas nós já apontávamos padrões que se repetiam nos casos de pessoas presas, acusadas e até condenadas com provas tão frágeis que não resistiriam a um olhar um pouco mais atento. 

Depois, o tema acabou ganhando espaço em telejornais de grande audiência e em portais de notícia que são referência nacional. 

As histórias mostram que não existe coincidência, mas um padrão de atuação das forças de segurança pública. E que o passado acaba sendo levado em conta na hora da sentença, mas é desprezado no processo de desumanização daquele corpo jogado no sistema prisional. O presente vira angústia, um lugar onde não há espaço para sonhar; e o futuro, uma utopia. 

Cesar Augusto Lopes, Jonatas Barbosa dos Santos, Jonathas da Silva de Paula Ribeiro, Jonathan Santana Macedo, Lennon Seixas Vieira, Joel Rodrigues Nascimento Junior e Rafael Erlan Ferreira de Moura da Silva cometeram um crime gravíssimo: nasceram na periferia da Grande São Paulo ou capital paulista, são pobres e têm a pele preta. Em comum guardam o fato de que foram presos injustamente. Mas como diz o ditado “cada cabeça uma sentença”, vou dizer aqui que cada história tem suas particularidades que você vai conhecer ao longo dos 6 episódios do podcast Prove sua Inocência, que ouviu 25 pessoas, entre vítimas, familiares, integrantes do sistema de Justiça Criminal e especialistas. 

Os episódios são:
EP1: Fui preso!
EP 2: O sistema de injustiças
EP 3: Por dentro do sistema
EP 4: Sobreviventes do inferno
EP 5: Via crucis
EP 6: De volta para a casa?

Você tá preso: do flagrante à provisória

O atendente de lanchonete Jonathan Santana Macedo, por exemplo, passou por vários reconhecimentos e, em um deles, foi obrigado a ficar olhando para uma placa com a foto de um palhaço com a frase “Olha aqui ladrão”.

Em todos os casos encontramos uma ou mais ilegalidades no momento da prisão pela Polícia Militar e o posterior registro da ocorrência na delegacia. A campeã delas é o desrespeito ao que determina o artigo 226 do Código de Processo Penal para o reconhecimento de um suspeito. Cada um a seu modo, nossos personagens foram supostamente reconhecidos pelas vítimas em procedimento repleto de falhas que vão desde uma foto de Whatsapp, passando por indução da autoridade policial – aquela história de o delegado apontar para uma única pessoa em uma sala: “é ele, não é?” – e até a colocação de pessoas completamente diferentes uma ao lado da outra. 

Outra situação bastante comum nos casos é o questionável flagrante. A advogada criminalista e uma das fundadoras do Innocence Project Brasil, Dora Cavalcanti, afirma que é bastante comum um flagrante não ser flagrante. “Lógico que o fato de uma pessoa ter sido presa na posse de um item subtraído, é um fator que funciona como um indicativo importante de autoria, mas não é o único”. Dora destaca a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em decisão do ministro Rogério Schietti, que mudou alguns entendimentos quando estamos falando em caracterização de flagrante. “Eu não posso mais entrar na residência de alguém sem estar munido de um mandado com o argumento da fundada suspeita, ou de que poderia estar ocorrendo um flagrante dessa forma fluída, porque aí eu legitimo uma invasão ilegal de domicilio. Isso é um julgado muito recente que protege a nossa população contra uma série de ilegalidades”, pontua. 

Foi exatamente isso que aconteceu, por exemplo, com Cesar Augusto Lopes, que estava ouvindo música em sua casa, quando os policiais chamaram seu nome no portão, e com Rafael Erlan Ferreira de Moura, e os amigos Diego e Augusto, que tiveram a casa invadida pela PM quando dormiam depois de uma madrugada de trabalho. E até mesmo o suposto flagrante de Lennon Seixas Vieira é completamente questionável, já que ele foi preso em frente a sua casa quando estava passeando com o cachorro. 

Tem caso de quem não foi reconhecido e, ainda assim, foi preso provisoriamente, o que demonstra que, de fato, o reconhecimento tem dois pesos e duas medidas bem diferentes, a depender do aplicação: se for para acusar, vira prova inconteste; se for para liberar um suspeito, aí é desconsiderado.

Com falhas na fase de inquérito, problemas na coleta de provas, ausência de perícia, quando necessário, já parou para pensar como esse processo chega na mão do Ministério Público? E do juiz que irá julgar todo o caso?  

O tenente-coronel aposentado da PM de São Paulo, doutor em psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, mestre em direitos humanos e autor do livro O Guardião da cidade, justamente sobre violência policial, Adilson Paes de Souza, consegue resumir bem essa engrenagem do sistema de justiça criminal. “O policial militar pratica um ato e conduz a pessoa para o distrito policial, o outro ator desse sistema tem a oportunidade e obrigação de exercer o contrapeso e fazer a avaliação desse ato. Mas ele valida. Aí tem o outro ator que entra em ação: que é o Ministério Público. Ele convalida. Aí temos a audiência de custódia. Temos o Ministério Público e o juiz: eles convalidam. Chega na sentença, convalida. Em grau de recurso, o Tribunal de Justiça, que poderia rever todos esses absurdos, também convalida. Então nós temos todo um sistema viciado, que foi idealizada para que uma parte exercesse o controle da outra parte, num sistema de pesos e contrapesos, muito usado na política, a gente pode usar também. Porque o delegado, por exemplo, pode exercer esse freio de uma ação da Polícia Militar, corrigir e impedir a perpetuação disso. Mas ele convalida. Então o sistema que foi criado para ter instâncias de controle, acaba tendo instâncias de confirmação da ilegalidade praticada, porque todo esse sistema está contaminado por uma seletividade norteada pelo preconceito e pela discriminação”. 

Via crucis

A rua de terra com numeração desordenada na periferia de Guarulhos quase me fez desistir de chegar até a casa de Jonatas Barbosa dos Santos, 30 anos. O aplicativo de localização dizia que eu havia chegado ao meu destino, mas não encontrava a casa dele de jeito algum. Cheguei a pensar que estava num lugar totalmente errado. Chovia fino e fazia frio em São Paulo naquela manhã de sábado. Um breve contato por ligação via Whatsapp e a confusão se desfez: “Maria, a numeração é confusa mesmo, sobe mais aí, tô saindo aqui na frente de casa”. Ele descreveu a fachada e nos encontramos. Fui recebida pelo vaidoso Jonatas, que mais adiante iria me confirmar essa impressão, com cabelinho na régua, todo arrumado e a companheira dele Valdirene, com um belo sorriso no rosto. “Bem vinda, Maria!”.

Jonatas Barbosa dos Santos e sua companheira Valdirene | Foto: Andre Porto / Ponte Jornalismo

Passamos pela cozinha e seguimos para a sala de visitas. Homônimo de um criminoso foragido do PCC (Primeiro Comando da Capital), e condenado por isso, Jonatas havia contado sua história para alguns veículos de imprensa, por isso, não teve dificuldades em desenrolar o papo. Relatou com detalhes tudo que aconteceu, a prisão injusta, a condenação, a liberdade conquistada em junho deste ano, quando o próprio Ministério Público reconheceu que havia ali um erro. A narrativa fundamentada e bastante fluída do Jonatas só se quebrou quando começamos a falar do tempo na prisão. “O que foi mais difícil? A saudade do meu filho”, disse, procurando conter a emoção. Jonatas é um sobrevivente, como todos os outros que aparecem nos episódios do podcast, cada um a seu modo. A saudade da família é também um sentimento comum. Assim como a fé em Deus para sair daquela condição. Uma das coisas que chamam muito a atenção na história de Jonatas, é que passou por unidades prisionais com condições muito insalubres e ficou gravemente doente. A outra coisa é que ele estava com a vida estruturada, em um emprego fixo e hoje não consegue mais trampo algum. No dia em que fui visita-lo, ele me mostrou sua bolsa térmica onde tem vendido trufas na rua para conseguir algum sustento. 

Quem também teve que lidar com uma falta tremenda do filho foi um xará dele, o Jonathas Silva de Paula Ribeiro, 32 anos. Para se ter uma ideia, a esposa dele, Talita Barbosa dos Reis, teve que inventar para o filho que o pai tinha ido vender água no litoral paulista. “Ele chorava, gritava a ausência do pai. Foi muito difícil. Ele ficou com o psicológico muito abalado”, relatou para mim, ao telefone, antes de agendarmos a entrevista. E colocou uma condição. “Vamos fazer na adega do Jonathas, porque não quero que o Nathan acesse de novo essas coisas”. 

Jonathas Silva de Paula Ribeiro e sua esposa, Talita Barbosa dos Reis | Foto: Andre Porto / Ponte Jornalismo

O caso do Jonathas foi de um clássico em situações de flagrante forjado. Morador de uma comunidade na Vila Ede, zona norte de São Paulo, por estar com dinheiro em espécie e ter passado próximo de uma biqueira, o que não é nada incomum para quem vive na quebrada, levou enquadro e depois, ainda por cima, conta que teria sido ameaçado pelos PMs a entregar quem eram os donos da boca, caso contrário o B.O. recairia sobre ele. “Quando estavam me colocando na viatura, comecei a falar pro pessoal: ‘segue a viatura’, porque senti medo de saber onde estavam me levando. Aí eles jogaram spray de pimenta em mim e eu fui tossindo, me abafando e eles me colocaram na viatura. Eles me pegaram por volta de 19h30 e eu fui apresentado só depois de 21h. A minha família já estava na delegacia”, conta. Jonathas relata que os policiais o tiraram na cena do suposto flagrante e o trocaram de viatura. “Eles colocaram uma sacola de droga na minha conta”. Jonathas quer sair, com urgência, do bairro com Talita e seu filho, para poder recomeçar em outro lugar. 

Dor e saudade

Quando virei a rua Baldomero Fernandez, na zona sul de São Paulo, além da descida íngreme, notei que, talvez, fosse ter dificuldade para manobrar porque a via estava se afunilando. Foi exatamente nessa rua que, em junho de 2019, uma moto roubada selaria o destino de Joel Rodrigues Nascimento Junior. 

A curva ao final da rua deixa a via tão estreita que é difícil pensar em manobrar o carro. Subi na calçada e não demorou muito para Kauiny Pereira Nascimento, 24 anos, irmã do Joel, aparecer. Gentil, fez eu me sentir em casa de cara e, ao entrar na sala, vi Keila Feitosa Gomes da Silva, 20, a noiva do Joel, sentada no sofá. Alguns minutos depois, aparece Lucineia Pereira dos Santos do Nascimento, 53. Tem dor e angústia nela. Mas tem muita força e verdade também. 

Começamos a entrevista e a timidez inicial de Lucineia dá lugar a um desabafo. “Pra mim, não basta só ele vir pra casa. O que eu quero também é que seja provada a inocência do meu filho, porque eu não quero que meu filho seja mais um pretinho para perguntarem para ele: qual o número da tua matrícula? Eu não quero isso”. 

A família se diverte em passagens engraçadas do rei da casa. É isso mesmo. Como dizem por aí, Joel é o “bendito entre as mulheres”. Filho de Ogum, primeiro Lucineia, depois Kauiny e por fim Keila contam do envolvimento com a espiritualidade que toda a família tem. 

“O Junior tem uma mediunidade muito forte. Ele foi convidado para fazer o desenvolvimento disso. Ele sonha, ele escuta, ele vê”, revela Kauiny. Joel previu que seria preso poucos dias antes disso acontecer.  

Keila conta sobre uma outra situação quando estava passando por um atendimento em uma gira, num terreiro. “Quando já tava quase no final, ele [o guia] falou: ‘eu vou cuidar do menino, tá? Eu vou lá visitar ele e deixar ele mais calmo, porque ele ta muito acelerado’.  Só que eu não tinha falado nada sobre o Junior. Não perguntei nada. Enfim, eu mandei uma carta pra ele no presídio contando que o baiano [uma das entidades que trabalha na linha de umbanda] iria visitá-lo. Aí ele respondeu: ele já veio”. 

A família de Joel Rodrigues Nascimento Junior ainda luta pela sua libertação | Foto: Andre Porto / Ponte Jornalismo

No quarto de Joel e Keila, fotografias na parede sobre a cabeceira da cama, formam um coração com momentos de afeto do casal e entre familiares e amigos. Keila conta que o companheiro é vaidoso e, abrindo o armário, mostra um par de tênis com uma pequena mancha sobre um deles. “Ele vai brigar comigo se essa sujeirinha ainda não tiver saído por completo”, ri. A relação deles fez quatro anos em setembro e começou em um encontro no Shopping Aricanduva, depois de trocarem uma ideia pela internet. Ela conta que topou conversar com ele após muita insistência. A distância entre os dois foi o primeiro obstáculo: morador da Vila Clara, Joel nunca tinha ouvido falar na Aricanduva. “Ele chegou primeiro que eu, quando eu cheguei, peguei a escada e ele me viu descer da escada”, ela para e começa a chorar. “Deu um negócio estranho, que eu nunca tinha sentido por ninguém, Minha mão começou a suar, me deu uma dor de barriga. A gente conversou muito, nem cheguei a ficar com ele, a gente só conversou, sobre tudo. Depois nos vimos de novo e ficamos e logo depois ele me pediu em namoro”. 

O coração de mãe de Regina Selma dos Anjos Santana também é só saudade. O filho dela, o atendente de lanchonete Jonathan Macedo Santana, está preso desde agosto do ano passado por um crime ocorrido antes da pandemia. “Ele sempre estava por aí pra mim, até porque nossa casa era muito próxima. A gente só não ficava mais tempo junto, porque ele trabalhava bastante. A rotina dele era assim: saía 10h e  voltava depois da 1h da manhã e quase sempre passava em casa”, diz. A situação de Jonathan já era complicada, quando ele acabou implicado em outros dois roubos. Ele foi considerado integrante de uma quadrilha especializada em assalto à residência, da qual um de seus irmãos fazem parte. Houve divergência em reconhecimentos pelos quais ele passou: em um, na delegacia, a vítima disse que tinha certeza de que era ele. Na audiência, a versão foi outra. Nada disso foi levado em conta, inicialmente. Os detalhes, inclusive com explicações da defesa dele, estão nos episódios do podcast.

O filho de Jonathan nasceu quando ele estava preso e teve alguns problemas ainda recém nascido, o que gerou sequelas, das quais o atendente ainda não tem completa ciência. Nem mesmo a família. “A gente não pode ver a criança”, desabafa Regina. “Logo depois que ele foi preso, ela [a esposa] desligou dele, não quis mais saber, não quis mais contato”, relata.

O primo de Jonathan, Lucas Brito Oliveira, também falou comigo. Afinal, ele foi preso junto, mas, felizmente, conseguiu sua liberdade e absolvição. Foi um relato que fiz por telefone, mas, sem dúvida, com uma carga emocional grande. Lucas ficou no CDP de Diadema junto com Jonathan e falou sobre como o cárcere afeta a saúde mental, ainda mais se você estiver preso por um crime que não cometeu. Lucas também falou da dualidade de sentimentos experimentado por Jonathan ao saber que ele tinha conseguido se livrar na prisão.  

Joel e Jonathan são os nossos personagens que ainda estão na prisão. Suas histórias são contadas pela família que, do lado de fora, espera ansiosa pela volta deles para a casa. 

Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima

O porteiro Junior César Vieira da Silva, 53 anos, não descansou até encontrar uma prova que poderá ajudar a provar a inocência do seu filho Lennon Seixas Vieira da Silva, 27 anos, preso com os amigos Bruno e Rodrigo de Souza dos Prazeres, de 27 e 31, em janeiro deste ano. “A nossa vida não tá normal. Até que tudo isso acabe não tem como achar normal”, desabafou Junior, quando estive na casa deles em setembro.

Ao lado da esposa, Maria José Narciso da Silva, e do filho Lennon, Junior foi o primeiro a falar. “Quando eu ouvi que ele estava sendo acusado de um sequestro e roubo, eu procurei pisar no chão e pensar: ‘isso é impossível’. Um pai conhece seus filhos. Desde aquele dia, o impacto ainda está sobre mim”, explica.

Junior lembra que, quando Lennon saiu da prisão, ele levou dois hambúrgueres para o filho. “Quando eu vi aquele negrinho magrinho, eu disse: ‘é meu filho’. Eu reconheci ele de longe, apesar de ele estar muito transfigurado, diferente pela magreza, eu reconheci de longe e a gente se abraçou”, conta. 

Mas a história não terminou ali. “Ainda tem pra frente o julgamento. Mas a alegria de ter o filho de volta em casa é insuperável. Eu descobri que quando sai um membro de uma família, você perdeu a metade de si. Você precisa recuperar a outra metade. É como se eu tivesse tido um derrame. A gente precisava recuperar essa metade”, analisa Junior.

Lennon, com seu jeito espontâneo e papo reto, contou a real do tempo que passou na prisão, comparou o cárcere a uma gaiola e falou sobre quanto preza a liberdade. “Hoje em dia eu vejo um passarinho preso na gaiola, eu fico com raiva”. 

Sorridente e espirituoso, assim como o filho Lennon, Junior, bastante temente a Deus, me presenteou com uma singela caneca escrito: “O senhor é meu pastor, nada me faltará”. É ela quem tem me feito companhia nos últimos dias. Junior ficou imensamente grato por eu simplesmente tê-lo ouvido. É curioso como as violências que perpassam essas famílias as tornam agradecidas pelo mínimo, que era eu ouví-los com toda a atenção e respeito. 

A família de Lennon Seixas Vieira batalha para que o filho seja absolvido | Foto: Andre Porto / Ponte Jornalismo

Foi também com gratidão e generosidade que a dona de casa Edilaine Ferreira de Moura abriu sua casa, na periferia da cidade de São Paulo, para contar sobre como o filho, Rafael Erlan Ferreira de Moura da Silva, 19 anos, foi preso em janeiro de 2021, enquanto dormia, após uma madrugada de trabalho como entregadores de pizza. Junto com Rafael foram presos os amigos dele Diego Gomes da Silva e Augusto Ferreira de Souza. 

Do roubo pelo qual foram acusados, todos eles foram inocentados. Mas Diego, infelizmente, voltou para a prisão por ter comprado um celular produto de roubo. A modesta casa de Edilaine fica em um nível abaixo da rua e para acessá-la é preciso descer algumas escadas. Conversamos no quarto dela, sentadas na cama. A televisão estava ligada em um desses programas policialescos. Pedi permissão para baixar o volume. De cara, logo no começo da história do dia da prisão dos três amigos, Edilaine fala sem hesitação. “Quando eu soube, fiquei paralisada, mas no segundo seguinte, logo disse: ‘meu filho não é bandido’”. Edilaine viu o filho no dia da prisão, na delegacia, e depois apenas em março. 

Nossa conversa durou mais de uma hora e meia, período em que ela explicou com detalhes o ocorrido e falou muito sobre o filho, a quem define como “um garoto bom, que sempre trabalhou, desde muito cedo”. Em alguns momentos, tentou segurar a emoção, mas não conseguiu, especialmente ao lembrar das cartas que trocou com o filho enquanto ele ficou preso. “Ele falava que tava tudo bem, mas só eu sei, só meu coração sabia que não estava”, desabafa. 

Ajude a Ponte!

Muito arredio, Rafael não apareceu para nossa conversa junto com a mãe, Edilaine, na data combinada. Depois, recebi dele algumas mensagens em áudio do Whatsapp. “Ele mudou muito depois disso tudo. Ficou mais calado, mais na dele. Não gosta de ficar falando, de ficar lembrando. Ele tem mesmo dificuldade de falar sobre tudo isso”, contou. 

Rafael me disse que não sente medo da polícia, mas que também não nutre bons sentimentos. No fundo, sinto que ele não quer pensar muito sobre isso. “Eu tô tocando minha vida. De trabalho, tenho vendido rosas. Também ajudo meu pai na oficina mecânica e faço bicos quando surgem”, encerra. 

Conheça cada caso citado no podcast

CASO 1
Lennon Seixas Vieira da Silva (preso com os dois amigos Bruno e Rodrigo)
Data da prisão: 5 de janeiro de 2021 
Registro da ocorrência: 47º DP (Capão Redondo)
Delegado responsável: Antonio Carlos Renno Miranda
PMs que efetuaram a prisão: Cristiano Flavio Gouvea e Felipe Garcia Grosso (1º BPM/M)
Acusação: sequestro relâmpago e assalto
Processo nº 1500420-91.2021.8.26.0228 
Promotora do caso: Maria Luiza Motomo Matusaki 
Juíza do caso: Maria Fernanda Belli
Situação atual: respondem pelos crimes em liberdade desde fevereiro de 2021

CASO 2
Jonatas Barbosa dos Santos
Data da prisão: 24 de novembro de 2020
Registro da ocorrência: 4º DP de Guarulhos (Grande SP)
Delegado responsável: João Batista Pires Blasi
Acusação: integrar quadrilha ligada ao PCC (Primeiro Comando da Capital), chefiar tráfico de drogas na zona leste de São Paulo
Processo nº: 1026127-97.2020.8.26.0602 
Promotores do caso: GAECO – Núcleo Sorocaba: Claudio Bonadio de Souza, Helena Cecilia Diniz Teixeira Calado Tonelli e Maria Aparecida Rodrigues Mendes Castanho.
Juíza do caso: Margarete Pellizari
Situação atual: Jonatas foi condenado em 27 de maio de 2021 a 16 anos e 1 mês de prisão. Em liberdade desde junho, depois do entendimento do próprio MP, tenta uma revisão criminal. 

CASO 3
Cesar Augusto Lopes
Data da prisão: 18 de setembro de 2017
Registro da ocorrência: 4º DP de Guarulhos (Grande SP)
Delegado responsável: Jorge Luiz Pinheiro  Filho
PMs que efetuaram a prisão: Carlos Ferreira de Franca e Constancio Mascarenhas de Queiroz
Acusação: roubo de carga
Processo nº 0002270-51.2017.8.26-0535
Promotor do caso: Filipe Demétrio Lopes
Juíza do caso: Priscila Devechi Ferraz Maia 
Situação atual: Absolvido por falta de provas em 16 de abril de 2018. O processo foi arquivado definitivamente em 28 de maio do mesmo ano. Pretende ingressar com indenização contra o Estado.

CASO 4
Rafael Erlan Ferreira de Moura da Silva (preso com os amigos Diego Gomes da Silva e Augusto Ferreira de Souza) 
Data da prisão: 11 de janeiro de 2021 
Registro da ocorrência: 100º DP (Jardim Herculano)
Delegado responsável: Fabiano Vieira da Silva
PMs que efetuaram a prisão: Diego de Souza Saldanha e Renato Oliveira Barros Junior
Processo nº 1501043-58.2021.8.26.0228
Promotor do caso: Danilo Palamone Agudo Romão
Juíza do caso: Lilian Lage Humes
Situação atual: Os três foram colocados em liberdade em 14 de março e absolvidos em 26 de abril. Contudo, Diego, ainda em abril, voltou a prisão, dessa vez porque comprou um celular produto de roubo. 

CASO 5
Jonathan Santana Macedo 
Data da prisão: 
Registro da ocorrência: 102º DP 101º DP (Jardim Imbuias)
Processo nº 1524532-13.2020.8.26.0050
Promotor do caso: Luiz Arthur Lughetti Capuzzo
Juíza do caso: Roberta Halage Gondim Teixeira
Situação atual: Segue preso no CDP de Diadema, embora tenha sido absolvido em dois dos três processos pelos quais responde. Defesa tenta liberdade e absolvição no terceiro processo.

CASO 6
Joel Rodrigues do Nascimento Junior
Data da prisão: 18 de junho de 2019 (primeira) e (segunda)
Processo nº 1514752-34.2019.8.26.0228
Delegado responsável: Armando Novaes
Registro da ocorrência original: 26º DP (Sacomã)
PMs que efetuaram a prisão: Salvatore Riccetti e Alexandre Azevedo da Silva
Acusação: roubo de moto com emprego de violência e arma de fogo.
Promotor do caso: Flavio Eduardo Turessi
Juíza do caso: Maria Domitila Prado Manssur
Situação atual: Joel foi condenado a 5 anos e 4 meses e cumpre pena em Marabá Paulista. O pedido de revisão criminal foi negado em 15 de abril de 2021 pelo o desembargador Alcides Malossi Junior.

CASO 7
Jonathas Silva de Paula Ribeiro 
Data da prisão: 14 de julho de 2020
Registo da ocorrência: 73º DP (Jaçana) – delegado Denis Kiss
PMs que efetuaram a prisão: Sandoval Galvão Santos e Danilo dos Santos Almeida (5º BPM/M)
Acusação: tráfico e associação para o tráfico de drogas
Processo nº 1514909-70.2020.8.26.0228
Promotora do caso: Ana Luisa de Oliveira Nazar de Arruda
Juiz do caso: Marcos Vieira de Morais
Situação atual: foi absolvido em 1º de fevereiro de 2021 e em 8 de fevereiro o processo foi extinto.

Participaram deste podcast, além dos nossos personagens, as seguintes pessoas (na ordem em que aparecem):

Talita Barbosa dos Reis (esposa do Jonathas de Paula da Silva Ribeiro)
Edilaine Ferreira de Moura (mãe do Rafael)
Lucineia Pereira Santos do Nascimento (mãe do Joel)
Kauiny Pereira Nascimento (irmã do Joel)
Keila Feitosa Gomes da Silva (noiva do Joel)
Lucas Brito Oliveira (primo do Jonathan)
Junior Cesar Vieira da Silva (pai do Lennon)
Paulo Barros (advogado)
Dora Cavalcanti (advogada criminalista e fundadora do Innocence Project Brasil)
Priscila Pamela dos Santos (advogada criminalista e diretora do IDDD)
Sean Habib (advogado)
Glauco Mazetto Tavares Moreira (defensor público)
Jefferson Rocha Reis (advogado)
Adilson Paes de Souza (tenente coronel aposentado da Polícia Militar do Estado de São Paulo)
Raquel Gallinati (presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo)
Hidejalma Muccio (procurador do Ministério Público Estadual de São Paulo)
Ivana David (desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo)
Maria José Narciso da Silva (mãe do Lennon)
Regina Selma dos Anjos Santana (mãe do Jonathan)

Íntegra das notas

A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, realizada pela empresa In Press, enviou a seguinte nota em atenção aos questionamentos da Ponte Jornalismo: “Todos os casos mencionados foram investigados, concluídos e relatados ao Poder Judiciário. As vítimas reconheceram os suspeitos como autores dos crimes de acordo com os protocolos estabelecidos pela legislação vigente, inclusive em salas próprias para isso. A ocorrência registrada pelo 4° DP continua em investigação, por meio de inquérito policial, sob sigilo decretado pela Justiça. A equipe policial do 101° DP ainda segue com as diligências para prender um terceiro envolvido nos fatos”.

O Tribunal de Justiça de São Paulo enviou a seguinte nota:

“Segue histórico sobre o funcionamento das audiências de custódia no Estado de São Paulo. Com relação a manifestações de magistrados, agradecemos pelo contato, mas, em razão do impedimento imposto pela Lei Orgânica da Magistratura, não será possível.   

Art. 36 da Loman – É vedado ao magistrado:   

III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.   

Nos casos em que o processo não corre sob segredo de Justiça, as decisões estão disponíveis para consulta pela internet e seus fundamentos podem ser utilizados nas notícias e no podcast. Como contraponto às entrevistas das defesas, seria interessante que o veículo ouvisse também o Ministério Público.  

Cabe lembrar que os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe à parte a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.  

Audiências de Custódia

Em 24/4/20, o Provimento nº 2554/20, em seu artigo 4º, suspendeu expressamente as audiências de custódia, uma vez que persistia a situação de emergência de saúde pública. 

Em 22/7/20, Provimento nº 2.567/20 manteve a suspensão das audiências em razão da  prorrogação do período de restrições sanitárias decorrentes da pandemia de Covid-19. 

Em 29/1/21 foi lançado projeto-piloto de audiências de custódia virtuais na sede da Circunscrição Judiciária de Guarulhos, que também abrange as comarcas de Arujá, Santa Isabel e Mairiporã. O preso tem garantido o direito de entrevista prévia e reservada com seu advogado ou defensor, que pode ser presencialmente, por videoconferência, telefone ou qualquer outro meio de comunicação. Durante a realização da oitiva, ele permanece sozinho na sala em que se realizar a videoconferência para assegurar sua privacidade, ressalvada a possibilidade da presença do advogado ou defensor. Essa condição é verificada com o uso concomitante de mais de uma câmera no local ou de câmeras 360 graus, para permitir a visualização integral do espaço durante o ato, entre outras medidas. 

Em 4/10/21 foram retomadas as audiências de custódia. De acordo com o Provimento CSM nº 2.629/21, para todas as modalidades de prisão, inclusive temporárias, preventivas e prisões civis, as audiências de custódia são realizadas por videoconferência (observado o artigo 19 da Resolução CNJ nº 329/2020, com a redação dada pela Resolução CNJ nº 357/20). Nos dias úteis, nas comarcas sem a estrutura exigida, as audiências de custódia devem ocorrer na forma presencial. Nos plantões de final de semana e feriados, que são realizados na forma remota, a análise de prisão observa os termos dos artigos 8º e 8ª-A da Recomendação CNJ nº 62/20, com vigência prorrogada pela Recomendação CNJ nº 91/21, e do Comunicado CG nº 250/20

Observação: O provimento CSM nº 2.629/21 foi regulamentado pelo Comunicado Conjunto nº 2.124/21 e o Provimento Conjunto nº 47/21.  

Atualmente mais de 90 comarcas realizam audiências por videoconferência. A lista está disponível aqui

O Ministério Público Estadual de São Paulo enviou a seguinte nota:

“O MPSP se manifestou nos autos”.

Cabe destacar que, além da SSP-SP, procuramos também a Polícia Militar de São Paulo, que, contudo, não respondeu em nota separada à da pasta de Segurança Pública.

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