Quando imagens de espancamento vieram à tona, Confiança, rede varejista de Bauru (SP), considerou ato “gravíssimo” e demitiu seguranças, mas em processo judicial afirmou que agressões foram necessárias e acusou vítima de furto
Em 20 de junho do ano passado, no mesmo dia em que que chegaram ao noticiário imagens que mostravam seguranças de um supermercado da rede Confiança, em Bauru, no interior de São Paulo, desferindo um soco e um golpe “mata-leão” em um cliente, a empresa fez o que empresas costumam fazer nessas horas.
Emitiu uma nota em tom de desculpas, dizendo que repudiava “veementemente qualquer tipo de violência”, que considerava o ato “gravíssimo, inadmissível” e que por isso havia demitido os seguranças envolvidos na agressão. Bastou, porém, o jovem agredido, Wesley Felipe Mansueto da Silva, 26 anos, resolver lutar por por seus direitos e mover uma ação de danos morais contra o Confiança para a empresa decidir que não lamentava mais o que havia acontecido. Ao contrário.
Na contestação ao pedido de reparação movido por Wesley, em novembro do ano passado, os advogados do Confiança justificaram a agressão a Wesley, que teria ocorrido “por culpa exclusiva” do jovem. Segundo os advogados, “foi necessário contê-lo” porque “ofereceu risco à integridade física dos colaboradores e consumidores”.
A defesa do Confiança sustenta que Wesley teria agido com uma “falta de civilidade chocante”, ao supostamente agredir funcionários “que também são seres humanos e têm o direito de serem respeitados” – sem esclarecer por que o supermercado resolveu demitir esses mesmos seres humanos quando o caso veio à tona.
No mesmo texto, os advogados Hely Felippe, Rodrigo Bastos Felippe e Julio Cesar Fraile, responsáveis pela defesa do Confiança no processo civil, afirmam que o jovem teria cometido o “furto” de um chocolate, no valor de R$ 2,85, embora as notas fiscais mostrem que, pouco antes de ser agredido pelos seguranças, Wesley já havia gastado R$ 41,41 na compra de outros produtos.
O Confiança é uma rede de supermercados com quatro décadas de história, dona de 15 lojas nas cidades paulistas de de Bauru, Marília, Pederneiras, Jaú, Botucatu e Sorocaba. Menos de quatro meses após a agressão a Wesley vir a público, vereadores de Bauru aprovaram, em 5 de outubro, a entrega de uma moção de aplauso ao presidente da empresa, Jad Zogheib, por sua “trajetória de sucesso”
O que as moções de aplauso não mencionam é o histórico de agressões de seguranças da empresa. A Ponte Jornalismo identificou pelo menos outros dois casos, todos na cidade de Bauru: contra o mecânico Davi Ricardo, 35, que foi levado para uma sala fechada e revistado por suspeita de furto, em 12 de junho último, cinco dias após o episódio envolvendo Davi, e um ataque a chutes e pontapés contra um outro homem, em 18 de agosto de 2021.
Agredido por menos de três reais
“Quando chegaram em mim, eles não me acusaram de nada. Me agarraram pelos braços, começaram a me agredir ali dentro no mercado mesmo, sem falar nada”, conta Wesley Felipe Mansueto da Silva.
O jovem trabalha como agricultor autônomo, mantendo suas próprias plantações e auxiliando outros agricultores, além de atuar como cozinheiro e pizzaiolo. Ao longo de toda a sua vida, Wesley frequentou o Confiança do bairro onde mora, a Vila Falcão. Trata-se do bairro mais antigo de Bauru, surgido por volta de 1906, e foi ali que a empresa instalou seu primeiro supemercado, em 1951, na época chamado de Casa Confiança.
Na noite de 7 de junho do ano passado, contudo, Wesley não pôde concluir suas compras e retornar para casa, como de costume.
O agricultor foi abordado por dois seguranças quando saía da loja. Imagens das câmeras de segurança do próprio supermercado mostram os funcionários arrastando o jovem. Em dado momento, ele é atingido com um soco e um golpe mata-leão, e mais vigilantes aparecem. Em seguida, é levado para uma sala de uso exclusivo dos funcionários, chamada pelo jovem de “quartinho”.
“Me impediram de ir embora, começaram a me bater, a me arrastar e me puxar. Depois que eu entrei no quartinho, eles começaram a fazer umas ameaças e me acusar das coisas”, relata Wesley em entrevista à Ponte. O jovem afirma ter passado meia hora sofrendo agressões.
O motivo de tanta violência foi um chocolate Snickers, no valor de R$ 2,85. Wesley conta que, enquanto fazia compras, colocou a guloseima no bolso da blusa de moletom, para comer no caminho de casa, e esqueceu de apresentar o produto no caixa.
As notas fiscais anexadas ao inquérito policial comprovam que, pouco antes de ser abordado pelos seguranças, ele já havia feito uma compra de um valor muito maior, de R$ 41,41, por uma garrafa de vinho, quatro latas de cerveja, um pacote de papel toalha e outros chocolates.
“Eles podiam ter me perguntado se esqueci de passar alguma coisa. Se eu tivesse esquecido não teria problema de voltar lá, de pagar, ou então de não levar. Se acontecer isso com alguém, tem que ter essa opção”, aponta Wesley.
Somente depois das agressões é que os seguranças do supermercado chamaram a polícia. Uma viatura da Polícia Militar foi ao local e levou Wesley para a sede da Polícia Civil em Bauru, a Deinter 4, onde assinou um boletim de ocorrência por furto. O boletim menciona a apreensão de dois chocolates, inclusive um pelo qual o agricultor já tinha pago.
Ainda na delegacia, Wesley tentou registrar um boletim das agressões e ameaças que teria sofrido, mas, segundo ele, os policiais civis se recusaram porque ele não tinha o nome dos agressores. Dias depois, após obter estes nomes, Wesley voltou à delegacia e conseguiu registrar as agressões.
Segundo o advogado de Wesley, Ricardo Baraviera, os policiais da delegacia erraram ao não aceitar o registro do boletim de ocorrência pedido por Wesley apenas porque ele não tinha os nomes dos seguranças.
“Não é necessário [ter o nome do agressor], até porque tem uns delitos que você não sabe a autoria no momento em que acontece. No caso do Wesley, se ele tivesse registrado o boletim de ocorrência, possivelmente a gente ia pegar o número e ia na delegacia complementar com o nome dos autores, porque a gente conseguiu depois”, explica.
Duas semanas após Wesley ser agredido, o caso veio à tona quando as imagens das câmeras de segurança foram exibidas na TV Tem (afiliada da TV Globo na região de Bauru). Após a repercussão, o supermercado demitiu os funcionários envolvidos na agressão, conforme fica demonstrado em um boletim de ocorrência registrado por um dos seguranças logo após a exibição da notícia na TV.
De acordo com a Central de Polícia Judiciária (CPJ) de Bauru, o inquérito sobre as agressões a Wesley segue em aberto. As autoridades policiais pediram duas vezes a extensão do prazo para apresentar suas considerações finais, pois um dos seguranças envolvidos nas agressões ainda não se apresentou para prestar esclarecimentos.
Pouca Confiança
Após a repercussão, o Confiança divulgou uma nota dizendo que “a empresa repudia veementemente qualquer tipo de violência, considera o ato gravíssimo, inadmissível e que vai contra todos seus protocolos e valores”.
O supermercado informou ainda que “os envolvidos foram prontamente demitidos de suas funções e seguimos colaborando com as investigações”.
“Reafirmamos o compromisso com a segurança de todos os clientes e colaboradores, atuando intensamente no treinamento das equipes de segurança e prevenção, para que episódios como esse jamais se repitam”, diz outro trecho do comunicado.
Wesley conta que, desde que sofreu as agressões, tem tido crises de ansiedade constantes e enfrenta problemas para dormir. Por essas razões, ele precisou atrasar um semestre na faculdade de Engenharia Ambiental e perdeu alguns trabalhos, o que o levou a problemas financeiros. O jovem, que sente medo ao andar na rua, precisou começar a fazer terapia por causa de tudo isto.
“Eu estou com uma crise de ansiedade constante. Tive algumas crises de pânico, umas duas pelo menos por mês. Sempre em alerta, qualquer barulho eu acordo. Estou sentindo que eles ainda estão me perseguindo, que eu estou correndo risco, e eu me senti prejudicado de diversas formas nesse meio tempo”, relata o agricultor.
O jovem entrou com um pedido de indenização por danos materiais e morais contra o Confiança. No processo, a defesa do supermercado nega as agressões, contradizendo a nota veiculada na imprensa após a repercussão do caso, e reafirmando que Wesley furtou o chocolate. “No caso concreto, o incidente ocorreu por culpa exclusiva do Autor [Wesley], que furtou um produto da Requerida [Confiança] e, após ser barrado, alterou-se, passando a agredir os funcionários da Empresa”, diz o documento assinado pelos advogados do Confiança.
Apenas cinco dias depois
Quando viu na televisão o “quartinho” onde Wesley teria sido agredido, o mecânico Davi Ricardo, 35, logo identificou o cômodo onde estivera. “Pensei que eles podiam ter me batido também”, conta.
Apenas cinco dias após as agressões contra Wesley, a mesma equipe de seguranças suspeitou que o mecânico, um homem negro com uniforme de trabalho, também estaria furtando chocolates da loja.
Era 12 de junho de 2023, Dia dos Namorados, e Davi estava pesquisando preços de chocolates entre as gôndolas para presentear sua esposa. Ele conta que ia com frequência ao Confiança da Vila Falcão, que ficava no caminho entre seu trabalho e a casa.
“Quando eu estava saindo na portaria, eles me barraram, alegando que eu tinha roubado chocolate e tinha guardado, que estava escondido no meio das minhas roupas”, lembra. Ele foi levado pelos seguranças até o “quartinho”, sem poder resistir.
“O segurança me acusou e pegou pela blusa com medo de eu escapar, de fugir, e ficou puxando pela blusa, pelo meu uniforme. Aí me levou lá no fundo no quartinho e me cercaram achando que eu ia fugir”, relata.
O mecânico diz que chegou a mostrar a nota fiscal, mas os seguranças se recusaram a conferir o documento. Eles também teriam se recusado a chamar a polícia, a mostrar as câmeras de segurança e, inicialmente, até mesmo a revistá-lo, o que fizeram por insistência de Davi.
Quando não encontraram nada entre seus pertences, Davi foi liberado – mas ele já era considerado culpado pelos funcionários. “Na hora que eu saí na porta, um dos chefes dos seguranças falou pra mim: ‘Eu sei que você pegou a barra sim e que você escondeu elas, mas tudo bem, pode ir embora’”, conta.
Ao sair da loja, Davi foi até a Deinter 4, mesma unidade para onde Wesley foi levado, e tentou registrar um boletim de ocorrência contra os seguranças por calúnia. No entanto, ele foi instruído a realizar o boletim em casa, de forma virtual, uma vez que a delegacia estaria muito cheia.
Para Douglas Belchior, professor formado em história pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e cofundador da Coalizão Negra por Direitos, o fato de as duas vítimas não terem conseguido registrar um boletim de ocorrência imediatamente após os episódios demonstra uma conivência das forças públicas de segurança. Ou, mais do que isso, um reforço da violência.
“Muitas vezes o atendente que está ali no plantão desqualifica e desencoraja a denúncia, ou ainda impede e nega o registro da denúncia. Esse é um procedimento ilegal, é mais uma violência que a pessoa sofre. Também é a prevaricação do serviço público, porque eles estão lá para fazer e não fazem”, destaca. Conforme Belchior, este é um serviço público que, para os pobres e para os negros, não funciona.
Assim como Wesley, Davi move uma ação por danos morais contra o Confiança.
Histórico violento
Outro episódio de violência ocorreu na madrugada do dia 18 de agosto de 2021, quando seguranças da loja do Confiança localizada na Avenida Nações Unidas, também em Bauru, agrediram um homem, supostamente em situação de rua, com socos e pontapés. Um vídeo que registrou o momento chegou a viralizar nas redes sociais e também repercutiu em alguns veículos de mídia.
Na ocasião, o supermercado também emitiu uma nota, dizendo que “esse tipo de atitude não faz e nunca fará parte de nossas diretrizes de trabalho”. O texto diz ainda que os funcionários da rede passam por “rigorosos treinamentos” para oferecer “segurança e respeito a todas as pessoas em nossas lojas”. À época, seguranças envolvidos também foram imediatamente demitidos, afirmou a empresa.
Em nota para a Ponte, a Polícia Civil de Bauru informou que a apuração sobre o crime não avançou, porque a vítima não compareceu a nenhuma delegacia da cidade para formalizar a ocorrência.
Violência é ‘protocolo da empresa’, sugerem ex-funcionários
Após a repercussão das agressões envolvendo Wesley, o supermercado Confiança demitiu seus seguranças e contratou uma empresa terceirizada para fazer a vigilância de suas lojas, a SPSP. Apesar disso, a empresa manteve por contratação interna o departamento de prevenção de perdas. Isto é, ainda há seguranças não terceirizados trabalhando no supermercado.
Pelo menos dois dos antigos funcionários que ocupavam o cargo de fiscal do departamento em junho de 2023, Gabriel Hachimoto Rodrigues e Diego Rosa Noronha, foram demitidos por justa causa. Diego aparece nas imagens das câmeras de segurança arrastando e, em dado momento, dando um “mata leão” em Wesley, ainda dentro da loja. No “quartinho”, o segurança aparece dando socos na vítima.
Ambos estão movendo um processo trabalhista contra o Confiança alegando que a punição não foi justa, pois estavam apenas “seguindo o protocolo da empresa”.
“Isso porque, a justificativa apresentada pela Reclamada [Confiança] ao dispensar o Reclamante [funcionário demitido] por justa causa mostra-se insustentável, não representando a realidade dos fatos, uma vez que obreiro agiu segundo as orientações da reclamada, ao passo que se deu dentro das normas de segurança estabelecidas pela Reclamada”, diz um trecho do processo.
Responsabilidade da empresa
Para Juarez Xavier, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutor pelo programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo, a contratação de uma empresa terceirizada na área de segurança funciona como uma forma de a empresa se eximir da responsabilidade legal em casos de violência.
“Eles têm feito isso de contratar terceirizados numa tentativa de se desvencilhar dos excessos ou reações cometidas pela empresa terceirizada. É uma tentativa legal de se desvencilhar”, diz o professor.
Juarez traz como exemplo os casos mais famosos que ocorreram no Carrefour, como quando João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por dois homens brancos em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O episódio ocorreu no Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro de 2020. Na ocasião, o supermercado demitiu os envolvidos e rompeu o contrato com a empresa terceirizada responsável pela segurança da loja.
“De uma certa forma, o movimento é fazer uma separação da empresa contratante da empresa de segurança privada, sendo que a responsabilidade é do contratante. Essa tentativa de tentar desvincular o nome da instituição é uma jogada política, com o objetivo de tentar reduzir os danos legais provocados por esse tipo de violação. Isso também tem sido muito comum nos últimos anos”, analisa.
Além disso, o professor aponta uma individualização da responsabilidade, o que fica explícito com a demissão dos funcionários envolvidos nesses casos. “Tem sido muito comum quando são flagrados nessa situação, a instituição responsabilizar individualmente a pessoa. É muito pouco crível que você tenha atitudes individuais de segurança privada sem que isso tenha respaldo no protocolo de ação das empresas contratantes”, destaca.
Douglas Belchior concorda. “Normalmente, em situações como essa, quem paga a pena é quem executa a irregularidade na ponta. Quase sempre também é um trabalhador alienado do processo, que cumpre ordens e é penalizado pela sua atuação individual”, diz.
Belchior afirma que, muitas vezes, é ignorado o fato de que o funcionário está ali cumprindo ordens. “Portanto, o responsável final pela violência não necessariamente é quem opera a violência, é quem promove a violência na ponta. Mas esse que promove a violência na ponta é treinado, estimulado e é muitas vezes obrigado a violentar”, afirma.
Para os especialistas, existe uma hierarquia de responsabilidades e, na presença de uma empresa terceirizada ou não, a empresa contratante é quem deve assumir a maior parcela de culpa.
O que diz o Confiança
A Ponte tentou contato com a assessoria de imprensa e defesa do supermercado Confiança, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
O que dizem as autoridades
A reportagem também procurou a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo para esclarecer as denúncias de omissão por parte da Polícia Civil de Bauru, que não registrou os boletins de ocorrência no momento em que foi solicitado pelas vítimas. Em nota, a pasta respondeu:
“Sobre a denúncia apresentada, a Polícia Civil esclarece que a conduta citada não condiz com as orientações e diretrizes da instituição. As equipes policiais são preparadas e estão à disposição para atender todas as ocorrências, que também podem ser registradas pela Delegacia Eletrônica. Além disso, a corregedoria da Polícia Civil está à disposição para formalizar e apurar toda e qualquer denúncia contra seus agentes.”
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Correções
Atualização em 28/3, às 9h25 - Retiramos da reportagem uma imagem de rede social que havia sido postada por outro supermercado que não era a rede Confiança