Após sete anos, Vinicius é absolvido de roubo que não cometeu

Vinicius Villas Boas, 37, foi condenado por um assalto ocorrido no interior de SP em 2016; desembargadores reconheceram que provas eram frágeis e reportagem da Ponte foi mencionada em decisão

Vinicius Villas Boas trabalha como analista de pricing e foi absolvido pelo TJSP em 21 de março | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O analista de pricing Vinicius Villas Boas, 37, sentiu um peso sendo retirado das suas costas e do seu nome. “Foram sete anos de muito sofrimento e foi o último recurso. Se não desse certo, eu teria que carregar isso pela vida inteira”, diz, aliviado. Há uma semana, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acolheu o pedido de revisão criminal feito pela defesa dele e o absolveu de uma condenação por roubo que aconteceu em 2016 na cidade de José Bonifácio, no interior do estado, cuja única prova era um reconhecimento irregular. “Eu às vezes acordo de madrugada achando que é um sonho”, completa, entusiasmada, a motorista e esposa de Vinicius, Carolina Sanchez, 35.

A revisão criminal é a última oportunidade para que uma sentença transitada em julgado, ou seja, sem possibilidade de recurso, possa ser avaliada novamente. E, para acontecer, alguma prova nova precisa ser mostrada. Essa nova prova foi o testemunho de um preso que o analista conheceu no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São José do Rio Preto, no interior paulista, que disse conhecer o real assaltante que teria sido confundido com Vinicius. Esse preso redigiu uma carta de próprio punho e foi ouvido por meio de um pedido de justificação criminal, que é um mecanismo de coleta de prova para fundamentar a revisão criminal, feito pelo advogado Nugri Bernardo de Campos.

Contudo, os desembargadores do 7º Grupo de Direito Criminal do TJSP, que avaliaram a revisão, entenderam que outros elementos evidenciavam mais a fragilidade da condenação: as imagens de câmera de segurança que, segundo os policiais civis, identificaram Vinicius; o processo de reconhecimento, já que o analista foi reconhecido por foto e depois sozinho de forma presencial; e que Vinícius tinha álibi pois era pintor na época e um colega confirmou que trabalhava com ele em uma obra quando o crime aconteceu.

Em reportagem de 2019, a Ponte mostrou que Vinicius foi acusado de dois crimes muito semelhantes e em locais bem próximos que aconteceram nos dias 17 e 24 de fevereiro de 2016 em José Bonifácio, interior paulista. O primeiro foi o roubo à residência, em que um homem foi amordaçado e trancado no banheiro por quatro criminosos, que levaram dinheiro e pertences. Foi por esse crime que Vinicius foi condenado a nove anos de prisão e, em recurso, teve a pena reduzida para sete.

Já o segundo foi um furto a residência, a pouco mais de 1 km de distância de onde aconteceu o roubo, mas os proprietários não estavam no local e encontraram a casa revirada ao voltarem do trabalho. A vítima decidiu ir atrás de câmeras de segurança das ruas vizinhas para tentar identificar os autores do furto.

Nelas, foi possível visualizar um veículo Gol cinza com as mesmas características do automóvel visto perto da cena do crime anterior. As imagens registraram o momento em que dois indivíduos entraram correndo no carro. Além disso, nas gravações é possível identificar uma picape Saveiro branca e um rapaz de calça branca e camisa azul que passa duas vezes. As filmagens desse caso é que passaram a fundamentar o trabalho de investigação da Polícia Civil sobre o primeiro roubo. Os processos, porém, correm separadamente e Vinicius ainda não foi julgado pelo caso de furto.

No entanto, os laudos periciais das gravações não dizem se é possível identificar o rapaz de calça branca e camisa azul que a Polícia Civil afirmou se tratar de Vinicius. Além disso, a data das imagens indicavam dia anterior ao do furto, 23 de fevereiro de 2016, e não foram anexados os vídeos originais. O relator Marcelo Semer descreveu em seu voto que, mesmo solicitando os arquivos originais, os registros apresentavam “péssima qualidade” e que só foi possível visualizar as gravações com clareza por meio da reportagem da Ponte. “Ou seja, tal mídia apenas surgiu pois familiares do réu tiveram êxito em chamar a atenção da mídia ao caso, tendo esta conseguido acesso às imagens originais”, escreveu.

O desembargador também apontou “insegurança” nos depoimentos dos policiais civis que se referiam às imagens e a informações de policiais militares não identificados e nunca ouvidos no inquérito de que Vinicius teria relação com os outros três suspeitos porque seria “conhecido na nos meios policiais”, apesar de não ter nenhum registro criminal anterior.

Um dos acusados, que foi apontado por conta da placa do carro que aparece em uma das filmagens e acabou absolvido, era conhecido na cidade de Mendonça, vizinha à José Bonifácio, como dono de um buffet de festas frequentado por moradores. “[…A] Acusação não apresentou qualquer prova de que o peticionário [Vinicius] tivesse relação com os demais réus para além de frequentar eventualmente o comércio, como informado pelo próprio peticionário”, argumentou Semer.

Fotos retiradas do Facebook de Vinicius foram anexadas no inquérito policial para basear reconhecimento | Foto: reprodução

O relator também entendeu, com base nos depoimentos da vítima do roubo e dos policiais civis, que o reconhecimento, conforme o artigo 226 do Código de Processo Penal, foi “propositalmente descumprido na esfera policial” porque a vítima foi apresentada a fotografias de pessoas de maneira informal e que apenas se reconhecesse alguém os policiais disseram que formalizariam o procedimento. A vítima mudou as descrições dos suspeitos no decorrer das investigações, de “pardo” para “escuro (pardo)”. Na fase de juízo, em frente a um juiz e a um promotor, disse que dois dos três homens que o assaltaram eram “mais morenos, porém não de pele negra”. Dos quatro acusados, apenas os negros foram condenados: Vinicius e outro rapaz.

O desembargador destacou que o procedimento também não foi seguido durante o processo judicial, já que ele foi apresentado sozinho e com roupa de presidiário para ser reconhecido, e relembrou jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre reconhecimento irregular e que o reconhecimento não pode ser a única prova para condenar alguém. “A forma como foi feito o reconhecimento, portanto, foi infirmada por vieses insanáveis”, criticou.

Trecho da decisão que cita a reportagem da Ponte sobre o caso | Foto: Reprodução

“Ao ver as fotos dos suspeitos em conjunto com o investigador Adilson, a vítima esteve exposta a seu viés, ainda que inconsciente. Não tendo reconhecido o réu na primeira ‘sessão’ de reconhecimento, teve o procedimento repetido, com resultado distinto. Exposta diversas vezes à imagem do réu vinculada ao delito, ao chegar na audiência e ser presentada novamente a Vinícius desta vez vestido com os trajes do sistema de justiça criminal apresentou total certeza de sua participação”, prosseguiu.

Por isso, Semer votou pela absolvição e foi seguido pelos colegas. “As únicas evidências dos autos contra o peticionário eram uma identificação impossível em vídeo feito na véspera de outro delito e um reconhecimento nulo. Por outro lado, o peticionário comprovou sempre ter tido trabalho lícito, ser pintor na época dos fatos e estar trabalhando no dia e horário dos fatos”, escreveu.

Em sequência: Carolina Sanchez (esposa de Vinicius), Dirce Sanchez (sogra), Bernardo Villas Boas (filho) e Vinicius | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Para Vinicius, ter de chegar até o último recurso para provar sua inocência não tem outro motivo que não seja racismo. “Infelizmente, eu vivo com o preconceito e não é de hoje, é desde a infância. Por isso, eu falo para a Carol [esposa], que eu não gosto de sair desarrumado para ir na padaria porque se a polícia vê um moreninho vestido mal na rua e um branquinho vestido mal, quem ela vai abordar? Eu vou dar um motivo a menos para chamar atenção”, lamenta.

O advogado Nugri Campos também ressalta que todos os pedidos que pudessem favorecer Vinicius, como a perícia no celular para obter a geolocalização, eram negados e que o judiciário insiste na argumentação de fé pública, ou seja, de que os agentes públicos não têm motivos para incriminar alguém. “Os policiais e o Ministério Público têm credibilidade enquanto nos colocam numa caixa em que tudo que está fora é mero detalhe, como um reconhecimento falho”, afirma.

Ao mesmo tempo, Vinicius aponta que ter familiares de carreiras policiais não o blindou de passar por esse tipo de situação e que, na época em que foi preso, queria prestar concurso para agente penitenciário para garantir uma estabilidade financeira, já que seus pais foram funcionários públicos. “Eu ainda quero prestar concurso, mas não para agente penitenciário, para uma carreira mais administrativa, porque lá [no sistema prisional] eu vi muitos sendo afastados pelo psicológico. Já vi muitas histórias de guardas que piraram. É muita pressão, é uma energia horrível e difícil de aguentar”, afirma.

Vinicius trabalha de home office na área comercial de uma empresa que atua com venda de veículos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Ele permaneceu quase três anos preso em regime fechado até progredir para o regime semiaberto e, depois, para a liberdade condicional. Nesse tempo, ele aponta que teve simpatia dos outros policiais penais por ter comentado sobre o concurso, mas também vivenciou as dificuldades da massa carcerária, como estar em uma área chamada de “seguro”, que é voltada para presos não faccionados ou que são rejeitados pelos demais, além depender da família para ter acesso a itens básicos estando em unidades prisionais muito distantes. “Eu me apeguei muito a Deus porque lá eu vi de tudo. Já salvei neguinho que tentou se matar, já vi outro se matando e tive que ajudar a perícia a segurar um corpo. Foi um inferno em vida que eu vivi ali”, desabafa.

Mesmo em liberdade e morando em São Paulo, tinha que comparecer todo o mês no Fórum Criminal da Barra Funda para manter atualizada sua situação, como endereço e vínculo trabalhista. “Eu tinha que praticamente dormir na porta do fórum para pegar uma senha porque se eu chegasse mais tarde poderia não conseguir”, afirma, já que a fila para outras pessoas que também precisavam comparecer ao local costuma virar a esquina.

Quando Vinicius foi preso, o filho Bernardo tinha dois anos de idade. Hoje, ele tem nove. “Quando ela [Carolina] levava ele [para a unidade prisional], a gente dizia que eu ficava ali para trabalhar. E aquilo afetou a cabecinha dele porque ele perguntava quando eu ia voltar. Tanto que agora, depois que fui solto, eu voltei a trabalhar com decoração infantil até conseguir esse emprego na área comercial, e ele perguntou se eu ia embora porque ele lembrava e se sentia abandonado. Teve que passar por psicólogo”, lamenta.

Quando ainda vivia em Mendonça, Carolina conta que ainda teve que lidar com a discriminação dos moradores, já que a cidade tem pouco mais de cinco mil habitantes, e que era perseguida pela polícia. “Tinha vezes que eu levava meu filho na escolinha e uma viatura ficava me escoltando até onde eu ia”, denuncia.

“A gota d’água foi quando meu filho chegou da escola e perguntou ‘mãe, por que o papai roubou um posto de gasolina?’ e eu perguntei ‘quem te falou isso?’ e ele respondeu ‘foi a professora’. Eu falei ‘não, o papai é trabalhador, a gente vai resolver essa situação’. Não dava mais para ficar naquele lugar”, lembra. “A gente foi para lá para fugir da criminalidade de São Paulo, montar a nossa pizzaria que a gente investiu tanto e aconteceu isso. Eu tive que vender tudo.”

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Agora, a família espera que Vinicius também seja absolvido no processo de furto. “A gente vê a absolvição como um milagre porque foi tanto sofrimento que a gente quase não acreditou mais”, afirma Carolina.

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