Apreensão de adolescente por policiais civis em Itu (SP) revolta família: ‘Perseguição’

Jovem de 16 anos está internado desde maio por ato análogo ao tráfico; mãe nega envolvimento com crime e luta para provar inocência do filho 

Delegacia de Polícia de Itu (SP), onde o jovem foi apreendido | Foto: Reprodução / Google Maps

João*, 16 anos, foi apreendido duas vezes no intervalo de pouco mais de um ano por ato infracional análogo ao tráfico de drogas em Itu, no interior paulista. Em ambos os casos, quem prestou depoimento o incriminando foram os investigadores da Polícia Civil. As duas vezes em que ele foi apreendido trazem relatos bem semelhantes: os agentes dizem ter flagrado o adolescente vendendo drogas e com ele acharam uma quantidade de entorpecentes. A família de João nega qualquer relação com o crime e se diz vítima de perseguição.

“Ele não merece. Já é pela segunda vez. Ele falou ‘mãe, até quando vai durar isso?’ Dói demais. O que eu quero é justiça e que essa perseguição possa cessar porque a gente já não aguenta mais. Queremos viver uma vida normal, nós não somos criminosos, não mexemos com nada de errado”, diz a mãe de João, a diarista Gislaine Marcolino Dalbello, 49 anos.  

O estudante do Ensino Médio foi apreendido pela primeira vez em abril de 2022. Ele diz  que estava tomando refrigerante com um amigo em frente a uma loja de conveniência quando a dupla foi abordada e colocada em uma viatura. A Ponte teve acesso ao boletim de ocorrência assinado pela delegada Márcia Pereira da Cruz no Plantão Policial da Delegacia de Polícia do Município de Itu. Ainda no BO são listados os investigadores Cirineu Yasuda Alves de Lima e Moacir Cova como os responsáveis pela apreensão do adolescente.

Ainda de acordo com João, o investigador Moacir teria colocado três porções de crack em seu bolso e que disse que “colocaria tudo na conta” do amigo do adolescente, que já possuía ficha criminal e era maior de idade. Ele também relatou ter sido vítima de agressão por outro policial, que em pelo menos duas situações lhe aplicou um golpe de enforcamento (mata-leão), pressionando seu pescoço e dificultando a respiração.

O relato de agressões feito pelo adolescente não chegou a ser apurado pela polícia e nem foi mencionado pelo promotor do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Christiano José Poltronieri de Campos. Ele representou contra o adolescente por ato infracional análogo ao tráfico de drogas com base na versão dos investigadores. Campos também não considerou que João contou ter sido machucado por um terceiro homem, que, segundo a família, não era Moacir nem Cirineu. 

Os investigadores contaram que, semanas antes da prisão, passaram a monitorar um local na periferia de Itu, que teria sido reativado como ponto de venda de drogas. O motivo teria sido a cobrança por parte dos moradores por providências que inibissem o tráfico. Rondas ostensivas, no entanto, são competência da Polícia Militar, segundo prevê a Constituição.

Contudo, Thaisi Bauer, secretária Executiva da Coalizão pela Socioeducação, explica que não há um impedimento legal para que policiais civis atuem desta forma. Contudo, ela ressalta que há arbitrariedade em diversas ações das forças policiais. 

“É preciso lembrar que as atividades das polícias são extremamente arbitrárias, a começar pela possibilidade de realização de abordagem policial baseada em fundada suspeita”, diz. 

A dupla de investigadores citou a delegada Márcia Pereira da Cruz, que, antes da prisão, fez abordagens frustradas a possíveis suspeitos — que não foram detidos porque não foi encontrado com eles nenhuma droga.

Ainda na versão dos policiais, o sucesso nas abordagens só teria acontecido um dia antes da apreensão, quando três homens foram presos na região por tráfico. Novamente monitorando a área, eles teriam visto um suspeito entregando drogas ao amigo do adolescente e na sequência, esse jovem vendendo acompanhado de João, o que motivou abordagem. Apenas o adolescente teria sido alcançado no contato inicial, sendo os demais presos em ações posteriores.

A versão dos fatos à polícia foi diferente da apresentada em juízo pelos policiais. Cirineu, por exemplo, disse que não foi encontrada droga com o adolescente, mas que teria visto ele escondendo drogas. Já Moacir, que João acusa de ter plantado o entorpecente, reafirmou sua versão. 

Essa contradição foi evidenciada pela defesa ao juiz Cassio Mahuad. O apontamento, no entanto, não foi suficiente para convencer o magistrado, que determinou a internação provisória de João. A justificativa, além de sustentada pelos depoimentos dos policiais, foi que o adolescente não estava comparecendo para cumprir uma medida anterior, aplicada por uma infração sem relação com tráfico, e que sofreu remissão (uma forma de perdão concedido pelo MP). 

O adolescente ficou nove meses internado na Fundação Casa de Sorocaba até ser liberado pouco antes do Natal de 2022. Uma decisão favorável, mas posterior à sua saída por já ter cumprido o prazo estipulado pelo MPSP, foi expedida pelo ministro Sebastião Reis Júnior do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em concordância com o parecer do subprocurador geral da República Antônio Carlos Pessoa Lins. O representante do Ministério Público Federal (MPF) aceitou o pedido da defesa de habeas corpus por entender que João não cumpria os requisitos para ficar internado. 

O pedido foi acolhido pelo STJ em janeiro deste ano, quando João já estava livre. O processo relativo ao ato infracional foi arquivado em fevereiro. Quatro meses depois, os policiais apreenderam o adolescente novamente. 

Nova apreensão

Desta vez, João preferiu o silêncio ao prestar depoimento ao delegado José Moreira Barbosa Netto, da Delegacia Central de Itu. A mãe Gislaine diz que orientou o filho a agir dessa forma depois do trauma da primeira internação. 

“Da outra vez ele falou tudo ali na hora, tudo que aconteceu e não resolveu nada. Mesmo assim, internaram sem uma audiência de apresentação, sem nada. Simplesmente foram mandando ele para a Fundação [Casa]”, contou. 

Segundo Gislaine, João estava em frente a uma tabacaria próxima da casa onde mora. Ele teria sido colocado uma viatura descaracterizada com outros suspeitos e levado até a delegacia. Segundo Gislaine, João não teria sido deixado lá, mas sim conduzido até a uma escola onde um dos polícias (que ele não conseguiu identificar) fizeram uma busca por drogas sem sucesso. 

No trajeto de retorno a delegacia, ele teria sido alvo de ameaças verbais.“O tempo todo eles vinham fazendo ameaças para ele, querendo saber onde tava a droga, ele falou ‘eu não sei, eu não vendo droga, eu não uso droga e nada’”, conta Gislaine. 

Já os investigadores Moacir e Cirineu relataram uma versão semelhante entre si, mas que não cita nenhum tipo de agressão ou participação de outros agentes Eles disseram que, com uma viatura descaracterizada, se dirigiram até o bairro São Judas. Lá teriam visto João e outro suspeito que, segundo eles, “já é conhecido dos meios policiais”. 

Os investigadores teriam acompanhando venda de drogas e um momento em que entorpecentes foram escondidos em uma mata próxima de um posto de saúde. Com o adolescente afirmaram ter encontrado duas porções de crack e R$ 30 em dinheiro em espécie. 

Os agentes dizem ter encontrado também 39 cápsulas de cocaína, que teriam sido escondidas por João e o outro suspeito. O celular do adolescente foi apreendido. 

A versão policial foi o bastante novamente para que o promotor Christiano José Poltronieri de Campos representasse contra o adolescente por ato infracional análogo ao tráfico de drogas. Campos também pediu a internação provisória de João. Ambos pedidos foram acatados pelo juiz Cassio Mahud, da Vara da Infância de Itu. 

A mãe denuncia que não houve audiência de apresentação, prevista no artigo 184 do Estatuto da Criança do Adolescente (ECA). É ali que é decidido se o menor será ou não internado. Gislaine diz que nem na primeira apreensão esse rito processual foi cumprido. “Das duas vezes não teve audiência de apresentação. Ele simplesmente foi levado para a Fundação”, comentou.   

Bauer vê com preocupação o fato de novamente somente o testemunho dos policiais ter embasado as ações do MP acatadas pela Justiça. Ela argumenta que são muitos os processos em que os policiais repetem os depoimentos e “não mudam sequer as palavras”. “Isso tem sido problematizado nos tribunais superiores. Isso porque o objetivo dos policiais é obter a condenação e justificar o próprio trabalho”, comenta. 

Uma audiência de instrução, que é o passo seguinte a de apresentação e antecede a decisão final do juiz sobre o cumprimento de medida socioeducativa, está marcada para quarta-feira (21/6). “A minha esperança para essa audiência é que tudo vai dar certo. Eu tenho fé, eu acredito”, diz a mãe.

Desde a primeira apreensão, Gislaine vive para provar a inocência do filho. Ela conta que deixou de trabalhar e de fazer atividades que gostava, como o treino de muay thai.

“Eu fico muito mal. Todos os dias para mim é só esse pensamento à procura de provas, de um meio de conseguir inocentar o meu filho porque ele não merece”, comenta, emocionada. 

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João é descrito pela mãe como um adolescente educado e muito amoroso. A preocupação de Gislaine é com a saúde mental do filho, que segue internado desde a apreensão. 

Outro lado 

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo pedindo entrevista com os delegados Márcia Pereira Cruz e José Moreira Barbosa Netto e com os agentes Moacir Cova e Cirineu Yasuda Alves de Lima.

Em nota enviada pela assessoria, a SSP informou que uma investigação preliminar foi instaurada para investigar a conduta dos agentes, mas acabou arquivada.

“O inquérito policial que investiga o caso em Itu está em em segredo de justiça por envolver menor de idade, em acordo com a Lei 8069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Sobre a atuação dos policiais civis, a 7° Corregedoria instaurou Apuração Preliminar para investigar a conduta dos agentes. No entanto, o caso foi arquivado por falta de elementos que comprovassem uma infração disciplinar”.

Também foram procurados o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Ministério Público com questionamentos sobre a atuação no processo. O TJSP informou que não magistrados não podem se manifestar sobre processos em andamento. Já o MPSP não respondeu.

*Nome fictício

Matéria atualizada às 18h37min do dia 20 de junho para incluir a nota da SSP

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