Por que a morte do apresentador de TV branco foi considerada uma tragédia, mas do menino negro não despertou comoção pública
O velório de Lucas Eduardo Martins dos Santos ocorreu quase ao mesmo tempo ao velório de Gugu Liberato.
A mãe do Lucas, Maria Marques Martins dos Santos permaneceu apenas 15 minutos para ver seu ente querido pela última vez. A mídia hegemônica esmiuçou o máximo a prisão, vida pregressa a criminalização da maternidade negra. As imagens de terror que a família de Lucas e a comunidade da Favela do Amor têm passado não dá para descrever nestas linhas. Isso porque não é possível descrever em palavras o terrorismo do Estado contra vidas negras e faveladas cotidianamente.
De outras bandas, o filho do Gugu Liberato, João Augusto Liberato, de 18 anos, durante o velório foi abraçado, consolado por policiais e teve sua imagem explorada por mais de dez dias sobre o que consideram uma tragédia que tomou conta da família Liberato. Tive a infelicidade de escutar do jornalista sanguinário, o Geraldo, que deveríamos tocar as mãos na televisão para ter dimensão da tristeza generalizada que tomou conta do país. Elogios não faltaram à dona Maria do Céu e a toda família, órfã do patriarca.
Acompanhei esse teatro da morte de Gugu, ao mesmo tempo em que chorei a morte do adolescente Lucas, ao imaginar a crueldade perpetrada contra seu corpo. As formas de mortes de Gugu e Lucas, a primeira morte morrida e a segunda morte matada, nos revelam características de uma sociedade colonial em que raça e racismo são estruturantes das hierarquias de status de humanidade.
Isso, talvez, nos explica, a descartabilidade do corpo de Lucas, seja na lagoa, seja na sua criminalização post mortem e, de outro lado, o reconhecimento público da tragédia à morte de Gugu. Nenhuma comoção pública sobre a morte matada de Lucas foi registrada. Isso porque essa morte não está registrada politicamente como tragédia e assassinato. Ao contrário, durante o velório sua mãe foi impedida de ter contatos com familiares e permaneceu algemada, contrariando as convenções de Direitos Humanos em que o Brasil é signatário.
Esse registro de status de humanidade que o corpo de Lucas e da sua família não conseguem acessar é o que legitima a permissão para policiais cometerem atrocidades e o Estado exercer a guerra permanente contra negros e negra e população indígena.
Quase ao mesmo tempo os velórios ocorreram entre as zonas do ser, o lugar do privilégio branco em que se reconhece a dor e o direito ao luto e a zona do não-ser, como espaço demarcado simbolicamente como lugar da inumanidade, dos corpos precarizados e criminalizados, e, portanto, locus de experimentos da violência.
Dina Alves é advogada e coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)