Uma política de segurança deve ser baseada na garantia de direitos de toda população e não na criminalização e segurança de apenas uma parte da sociedade
O carnaval acabou, dias de folia, ocupação das ruas com cultura desde os sambas enredo das escolas de samba às fantasias dos bloquinhos de rua. O carnaval é um momento de alegria, mas teve também como marca a repressão, foram muitos os casos de violência em bloquinho e mais de 1.500 pessoas foram detidas em São Paulo.
No noticiário nas últimas semanas nos deparamos com denúncias de policiais invadindo uma escola pública na zona oeste e agredindo e apontando arma para alunos; mais um jovem assassinado em baile funk na zona leste; uma mulher grávida foi espancada por um PM na rua e um policial atirou para todos os lados em um bloquinho de carnaval em São Paulo e diante de todo esse cenário de violência nos perguntamos há quem serve essa política de segurança pública? Quem está realmente seguro nesta cidade?
Segurança pública, ao contrário do que Bolsonaro e Doria insistem em dizer, não se resolve com PM na rua atirando para matar e muito menos armando a população. Devemos construir uma política de segurança baseada na garantia de direitos de toda população e não na criminalização e segurança de apenas uma parte da sociedade.
Segundo bem expressa Humberto Barrionuevo Fabretti, o paradigma tradicional da segurança pública, mantido através dos séculos desde os tempos absolutistas, é o da ordem pública. Segurança sempre foi sinônimo de ordem. No Brasil, desde o período colonial, passando pelo Império e pela República, e de forma ainda mais clara durante o Estado Novo e a Ditadura Militar, buscou-se proporcionar segurança a partir da manutenção da ordem.
Ou seja, a segurança pública surge como justificativa social e legal para a exclusão e encarceramento de negras e negros após a abolição da escravidão, pois a manutenção da ordem, nada mais é do que a manutenção de uma estrutura social pré determinada de privilégios de poucos em detrimento da maioria da população que é menos favorecida.
Além do mais, é necessário ter em mente que ao determinar que a segurança pública está baseada na manutenção da ordem e não na preservação dos direitos da sociedade como um todo, se escolhe proteger os interesses do grupo dominante em detrimento de grupos minoritários sujeitos aos seus preconceitos e discriminações.
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Na lógica do sistema de segurança pública imposto, para que a Polícia Militar possa garantir que os moradores dos Jardins não tenham sua “ordem” desestabilizada é necessário que os moradores das periferias não se sintam legitimados a ocuparem os mesmos lugares ou terem acesso aos mesmos bens de consumo, daí porque a Polícia exerce vigilância sobre corpos negros em bairros “nobres”.
Para que esse sistema genocida funcione é fundamental determinar o que é a ordem, para que assim o status quo possa ser mantido, determinando quais são os padrões de comportamentos permitidos e os proibidos, bem como quais serão os que terão os seus direitos garantidos e os que não terão, como no exemplo acima.
Quando a política de segurança pública segue a busca da manutenção da “ordem”, o Estado assume um compromisso sólido e sangrento com os interesses da elite escravocrata com os corpos negros há séculos nesse país, privando o povo negro de experimentar avanços civilizatórios, sendo submetido a, no máximo, atualizações do sistema segregacionista e racista que marginaliza e é responsável pela morte de um jovem negro a cada 23 minutos, pois na medida em que a polícia é treinada para matar, também é orientada para não proteger e criminalizar a população pobre, preta e periférica.
Percebemos isso em diversos casos que foram denunciados em 2020, com mulheres grávidas agredidas, crianças assassinadas, jovens presos injustamente, jovens assassinados, blocos de carnaval sofrendo repressão e muitos outros casos de violência policial que escancaram a necessidade de repensar toda a política de segurança a qual vivemos.
Outro fator deve ser considerado no que se refere ao insucesso da segurança pública, que é a sua compreensão como um direito individual. Aceitar a existência de um direito individual à segurança de uma pessoa significa que, para garanti-lo, é preciso eliminar as fontes de risco, o que necessariamente significa limitar o direito de outras pessoas. Para garantir que determinadas pessoas não sejam vítimas de crimes em um determinado lugar, é necessário negar acesso a esse lugar a outras pessoas.
Sendo assim, determinar o direito à segurança como um direito individual constrói um conflito entre a ordem pública e o direito à segurança, pois ao determinar qual o status quo a ser protegido, a principal tarefa dos agentes de segurança é de neutralizar e excluir as fontes de desordem. E assim, em vez de garantir o direito de todos, são excluídos os direitos de muitos para a efetivação dos direitos de poucos.
Nesse jogo de segurança em que a ordem é o fator principal a ser assegurado, o risco se torna um fator essencial. Quando a política de segurança se constrói baseada na manutenção da ordem, o risco passa a se relacionar diretamente com a prevenção, e se levado ao extremo, pode se tornar em uma verdadeira política criminal que determina onde, quando e quem é o criminoso em nossa sociedade.
Isso explica as incursões policiais na periferia com armamentos pesados, abusos generalizados, truculência e violência. Sendo determinado que a favela é uma fonte de risco e o seu morador um potencial “perigo à ordem”, surge a cultura de criminalização e extermínio que garante o encarceramento em massa de nossos jovens quando não os mata sob o pretexto do “auto de resistência” – uma estratégia jurídica fraudulenta de legitimar assassinatos cometidos por policiais – cujos inquéritos e investigações para apuração são direcionados por outros policiais que compactuam com a mesma ideologia genocida.
Uma sociedade obcecada pelo controle dos riscos se transforma em uma sociedade obcecada por segurança. Porém, quanto mais se busca segurança, em razão da política de criminalização, mais se gera insegurança, pois o risco é atribuído aos jovens negros que, sujeitos às exigências de uma sociedade capitalista, não possuem os mecanismos de acesso a essas metas do consumo, e apesar de estarem “atrasados” na pirâmide social, são perseguidos, mortos ou presos.
A segurança pública da ordem é a própria desordem das vidas negras, roubando vida ou tempo de quem não tem mais tempo a perder, pois de Agatha a Evaldo, já perdemos demais.
Tamires Gomes Sampaio, advogada, mestra em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, militante da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN) e Diretora do Instituto Lula.
Flavio Campos, advogado criminalista, ativista do movimento negro, membro da Educafro e diretor do Instituto Ação Geral – Quebrada eu Te Amo.