Artigo | Brasil, o país mais transfóbico do mundo

    Neste Dia Nacional da Visibilidade Trans, é preciso lembrar que a marginalização e a execução de corpos trans, que começa nos discursos de parlamentares brasileiros, é o projeto político mais forte hoje no país

    Existe uma agenda anti-trans em curso no mundo todo, que vem avançando rapidamente. Já não é mais um discurso há anos — tornou-se um projeto político e social consolidado, que é difícil de ser modificado. Esse projeto promete preservar “a família”, “a moral” e “os bons costumes”, garantindo que “os direitos das mulheres” sejam protegidos. Tudo entre aspas, porque sabemos que essa agenda nada mais é do que ódio e conservadorismo. E que só se preocupa com o homem cis, hétero, branco e de classe média.

    O ódio às transgeneridades, hoje, atinge todos os níveis possíveis. Está dentro das igrejas, nas big techs, nas Casas Legislativas, nas vozes de Donald Trump e Nikolas Ferreira, e é reproduzido por autores mais famosos do mundo, dentro dos nossos lares, nas escolas e universidades.

    Diante desse cenário, as identidades de gênero e a luta pelos direitos humanos tornam-se ameaças. E ameaças precisam ser combatidas. Nos impedem de ter afeto e acolhimento em casa, nos expulsam das escolas, e nos proíbem de usar banheiros públicos, praticar esportes, entrar no mercado de trabalho. Por fim, nos executam.

    Antes que se pergunte como podemos garantir que esses assassinatos são baseados no ódio, a gente explica: os algozes não tiram apenas a vida das pessoas trans, eles tiram as humanidades. Acontecem sempre das formas mais cruéis possíveis. Essa é a lógica da transfobia. E resta a nós, pessoas trans, contabilizar esses corpos. Registrar, uma por uma, essas vidas ceifadas. Transformar pessoas em números.

    O mesmo Estado que falha “cis-tematicamente” em nos proteger — e muitas vezes é responsável pela violência — não cria mecanismos para detalhar e registrar esses assassinatos.

    Mais uma vez, quem realiza esse trabalho doloroso é a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), encabeçado pela ativista Bruna Benevides, atual presidenta da rede.

    122 mortes só no ano passado

    Na oitava edição do “Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras“, com dados atualizados de 2024, essa que é a maior instituição da sociedade-civil em defesa das travestis e transexuais do país nos apresenta dados ainda alarmantes: 122 pessoas trans foram executadas ano passado no Brasil. Isso coloca o Brasil, pelo 16° ano seguido, no topo desse ranking mundial assustador.

    Embora tenha sido observada uma queda em relação a 2023, quando foram mapeados 145 assassinatos, nada temos a comemorar. Até porque existe subnotificação dos casos, algo recorrente em todos os casos de mapeamentos de violações. E precisamos ainda levar em conta o aumento da transfobia, principalmente na esfera política. Os avanços positivos em prol da população trans parecem, a cada dia, mais distantes.

    O cenário dos assassinatos da população trans evidencia como a transfobia, o racismo e o machismo caminham lado a lado. Nos últimos anos, o perfil das vítimas fatais da transfobia é sempre o mesmo: mulheres trans e travestis, negras e pobres. Dos 122 assassinatos mapeados no ano passado, 117 eram de mulheres trans e travestis. Do total dos crimes, 78% das vítimas eram pessoas negras. Em relação aos homens trans e pessoas transmasculinas foram mapeados 5 assassinatos.

    Sem nenhuma alteração no cenário apresentado nos anos anteriores, pessoas pobres e que utilizam o trabalho sexual como fonte primária ou secundária morreram mais.

    Adolescentes e jovens

    A população trans jovem é o principal alvo dos executores: na categoria de 13 a 29 anos foram mapeadas 52 mortes. A vítima mais nova tinha 15 anos e a mais velha, mais de 60 anos. A média da idade das vítimas, para 2024, é de 32 anos — inferior à expectativa de 35 anos.

    Em números absolutos, São Paulo volta ao topo do ranking nacional com 16 mortes, seguido de Minas Gerais (12) e Ceará (11). Pelo menos 68% dos casos aconteceram fora das capitais, em cidades interioranas do país. Rio de Janeiro (10), Bahia (8) e Mato Grosso (8) aparecem na sequência. Pernambuco, que liderava em 2023, caiu para sétima posição. Maranhão e Pará, ambos com 5 casos, fecham o Top 10 dos estados mais violentos para população trans.

    Você pode não apertar o gatilho, desferir a facada, lançar a pedra contra uma pessoa trans. Mas, se você concorda com discursos mentirosos e transfóbicos contra a nossa vivência, visando garantir uma supremacia cisgênera, suas mãos também estão tão sujas com os nossos sangues.

    Não conseguiremos mudar essa realidade sem lutar, ao mesmo tempo, contra a transfobia e o racismo. Não há mais tempo para que essas lutas estejam desassociadas, assim como a luta contra a vulnerabilidade social e o machismo. 

    Uma luta coletiva

    Precisamos, urgentemente, que pessoas cisgêneras (principalmente brancas) se levantem e rompam com essa exclusão, invisibilização e apagamento das vivências trans. Precisamos de um projeto político que reconheça e lute pelos nossos direitos, de políticas públicas que garantam a real democracia para o nosso país. E ela não existe sem pessoas trans.

    Precisamos destruir essas estruturas que permitem que essas violações continuem acontecendo. E, se for necessário, construiremos tudo do zero. Acolham, eduquem, contratem, assistam, escutem, leiam, elejam e, sobretudo, amem e protejam pessoas trans.

    Estejam com a gente para que o Brasil se torne o país que mais ouve ou assiste pessoas trans no mundo, que mais garanta e proteja nossas vidas. Queremos, nos próximos 29 de janeiro — Dia Nacional da Visibilidade Trans — falar de coisas boas e alegres, não mais chorar a morte da nossa população.

    *Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da periferia zona norte de São Paulo. É autor do livro-reportagem “Transresistência” (Dita Livros). Foi repórter da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021. Tem passagens pela Agência Mural, UOL, DiaTV e CazéTV. Atualmente é jornalista na ESPN e colunista da revista AzMina.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    Inscrever-se
    Notifique me de
    0 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários

    mais lidas

    0
    Deixe seu comentáriox
    Sobre a sua privacidade

    Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.