Diante de protestos motivados pela pobreza, que assola 21% dos colombianos, o governo respondeu com balas. Terá agora que responder a organismos e tribunais internacionais
A Colômbia vive um momento bastante complexo em função da repressão estatal e das constantes violações aos direitos humanos resultados de uma semana de intensas marchas. Bastante parecido com o episódio chileno de 2019, o estopim acontece por uma demanda concreta e pontual. Porém, hoje em dia a revolta contra a reforma tributária proposta pelo governo de Ivan Duque já não é capaz de explicar na sua totalidade o fenômeno colombiano.
São dois os momentos que se podem rastrear como condições de nascimento para essa Colômbia que há quase duas semanas está convulsionando. Por um lado, as manifestações que ocorreram no país em novembro de 2019 – e que terminaram encobertas pelas festividades de Natal e posteriormente pela Covid. Por outro lado, em março deste ano, o acordo do Estado colombiano com o Fundo Monetário Internacional. Portanto, não se pode considerar a greve nacional como um fato isolado e sim como continuação do que começou em 2019, ou seu epílogo.
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A sociedade colombiana e, em específico, a da cidade de Cali é pobre. Na cidade a população sobrevive como pode e na periferia são esquecidos pelo Estado. Cali também é cidade receptora de todos os migrantes internos que chegam da província de Cauca ou da região do Pacífico, frutos da guerra existente há anos entre narcotraficantes, guerrilha e Estado Nacional. E é justamente essa guerra que entrega a mão de obra barata que as indústrias da região necessitam. A taxa de analfabetismo, segundo dados da Presidência, é de 5,04%, o que equivale a mais de um milhão e meio de pessoas; o índice de cobertura de internet no país em 2020 era de apenas 75%; há parte da população em estado de desnutrição e com acesso reduzido a água potável — por exemplo nos departamentos (estados) de Guajira ou Chocó. Segundo o Departamento Administrativo Nacional de Estadísticas (Dane), a miséria já assola 21% da população total colombiana. Fica claro que não foi só a reforma tributária. Também não é casualidade que Cali tenha sido epicentro das marchas — e repressões — e também a cidade que mais aderiu à greve. A pandemia foi dura, porém a pobreza e o descaso já vinham de antes.
A resposta do governo diante dessa queixa generalizada foi excessiva. Desde o primeiro dia, encontramos uma violência estatal extremamente forte. Mas é possível dividir as últimas duas semanas de conflitos em dois momentos. Por um lado, do dia 28/4 a 30/04. Por outro lado, do dia 1º/05 até o presente momento. A respeito dos primeiros dias de manifestações, nada fora do normal para Colômbia: repressão brutal, porém nada além do já naturalizado. Contudo, a respeito do segundo momento é possível caracterizá-lo como crime contra a humanidade.
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O modus operandi em Cali é criminoso; bastante parecido com a operação Orión, em 2002 [ação promovida pelo Estado contra guerrilheiros de esquerda e apoio de grupos paramilitares que foi responsável pelo desaparecimento de centenas de pessoas], que começou na cidade de Medellín e se estendeu a outras cidades do país.
Sem muito esforço é possível encontrar em todas as redes sociais uma combinação entre repressão estatal e violência paraestatal.
Segundo a Fundacao Temblores, até o dia 15/5 foram 2.110 casos de violência policial; 362 vítimas de violencia física pela policia; 39 homicídios pela policia — aguardando confirmações; 1.055 prisoes arbitrárias; 30 vítimas de impactos nos olhos; 133 disparos com arma de fogo por parte da polícia; 16 vítimas de abuso sexual por parte da polícia — num dos casos, uma adolescente se suicidou no dia seguinte. O número de desaparecidos é muito pouco exato, porém ONGs falam de mais ou menos 400 até o momento. A conexão de internet desde o dia 5/5 tem sido de muita baixa frequência. Existem helicópteros sobrevoando a cidade dia e noite; drones militares em diversos pontos; bombas de estilhaço e tiros durante toda a madrugada. A Human Rights Watch condenou o uso de tanques militares que contam com um lançador de mísseis conhecido como Venom. Tudo isso não no Oriente Médio, na Colômbia.
A Colômbia é parte da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, pacto que vem sendo violado sistematicamente nas últimas semanas. Nos encontramos, portanto, com táticas e um modus operandi verdadeiramente de guerra contra a população civil. O governo nacional respondeu com balas à legítima inconformidade e terá que, agora, responder frente a organismos e tribunais internacionais. O senador Ivan Cepeda, junto a ONGs e outros atores políticos, apresentaram uma denúncia diante da Corte de Haia. O presidente Ivan Duque, o ministro de defesa Diego Molano, General Zapateiro, General Vargas e o ex-presidente Alvaro Uribe Vélez responderão por crimes contra a humanidade cometidos na Colômbia durante as últimas manifestações.
Até lá, Colômbia seguirá resistindo porque já não tem mais nada a perder, a não ser as suas algemas.
Sebastián Castro é jornalista colombo-argentino, integrante do “Contarnos”, espaço de narração e memória para colombianos no exterior
(Tradução: Guilherme Almeida)
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