Artigo | Mãe dá à luz, o Estado mata

    As Mães de Maio instalaram um incômodo nos quatro cantos do país, ao denunciar o genocídio antinegro na sociedade do mito da democracia racial, e desafiam a parir outro Brasil

    Reivindicar memória, justiça e verdade é a agenda do Movimento Independente Mães de Maio, que revela a emergência de uma democracia sólida e verdadeiramente humana a um patamar civilizatório em que não somente as vítimas do terrorismo estatal, mas toda a sociedade é convidada a pensar sobre como o Estado gerencia suas necropolíticas raciais – ou seja, de que forma o Estado elabora suas escolhas deliberadas (ou não), sobre quem deve viver ou morrer na sociedade. Ou ainda, em outras palavras, a plataforma de luta das Mães de Maio nos ajuda a localizar o racismo estrutural nas constelações de políticas, de crenças, dos discursos e dos saberes institucionais na distribuição desigual – intencional ou não – de mortes e punição no Brasil contemporâneo.

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    Essas são questões históricas sem nenhuma pretensão de respostas precipitadas por aqui. Quero, nessas linhas, de um lado, do meu lugar de mulher negra, oriunda da favela, me sentir autorizada a teorizar algumas hipóteses sobre essa temática; de outro, não sendo mãe biológica, peço licença às Mães de Maio, com as quais tenho a oportunidade de caminhar nestes 15 anos de luta, e oferecer algumas pistas sobre as maneiras pelas quais o racismo estrutural-institucional, intrínseco ao projeto de nação, apresenta-se na administração da justiça e organiza seu empreendimento genocida.

    Os Crimes de Maio[1] foram considerados o maior massacre ocorrido nos últimos tempos no Brasil contemporâneo. Portanto, na vigência da Carta democrática, esses crimes são, sabiamente, denominados pelo Movimento de “genocídio democrático”. Desde 2006, essas mulheres saíram das favelas e comunidades, das cozinhas das patroas, do quarto de empregadas e tomaram as ruas, o mundo. Politizaram a maternidade de mulheres negras, quebraram fronteiras e, para dor de cabeça da elite branca, internacionalizaram a luta e instalaram um incômodo nos quatro cantos do país ao denunciar o genocídio antinegro na sociedade do mito da democracia racial. 

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    Compreender suas experiências geográficas e existenciais requer desembaraçar os mitos sobre “justiças” e “verdades” produzidos pelos discursos institucionais. As suas trajetórias são centrais para a leitura do “lugar” de invisibilidade de mulheres negras no acesso aos direitos constitucionais, dentre eles o (não) acesso à justiça, como direito fundamental numa sociedade democrática e a leitura do “lugar” de hipervisibilidade na criminalização de seus corpos, marcados pelos estigmas “mães de traficantes”, “mães de bandidos”. Esse tipo de controle da imagem destas mulheres está evidenciado nas gravíssimas declarações da promotora de justiça de São Paulo Ana Maria Frigério Molinari durante uma audiência em que ela mesma afirmou que as mulheres que compõem o movimento de direitos humanos de pessoas assassinadas em 2006, seriam “mães de traficantes”. Segundo a representante do Ministério Público, “Após as mortes de seus filhos, em maio de 2006, passaram a gerenciar os pontos de vendas de drogas, com o apoio da facção criminosa PCC [Primeiro Comando da Capital]. Algumas dessas pessoas faleceram nos crimes de maio e os direitos [de gerenciar biqueiras] são transmitidos aos familiares que por vezes gerenciam ou até mesmo arrendam os pontos de tráfico de drogas”.  

    Esses estereótipos revelam as múltiplas opressões que atravessam as experiências das mulheres por serem negras, pobres, lésbicas, transexuais, mães, avós, indígenas, imigrantes palestinas, latinas, confinadas nas cadeias e penitenciárias, ou engrossando as fileiras desses espaços, do lado de fora, “puxando cadeia junto”. Esse tipo de criminalização da maternidade negra (comumente os direitos parentais são suspensos, pois são tratadas pela justiça como promíscuas, parideiras, moralmente corruptas, perigosas traficantes de drogas) faz parte do que Patrícia Hill Collins, tem apropriadamente denominado de estratégia de controle da imagem das mulheres negras. E estas estratégias de representações patológicas ganham folego e são reatualizadas quando elas são amplamente compartilhadas por autoridades públicas. Outras declarações oficiais, nos oferecem a dimensão das consequências desastrosas que recaem contra elas. Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão e Sérgio Cabral, respectivamente, justificaram seus projetos de poder ao afirmarem que: “filhos de beneficiários do Bolsa Família têm desenvolvimento intelectual mais lento que a média mundial”; ou “casa só com ‘mãe e avó’ é fábrica de desajustados para tráfico”; e ainda, “as taxas de fertilidade de mães faveladas são uma fábrica de produzir marginal”. Estes scripts patológicos auferidos às mulheres racializadas, como “fábrica de produzir marginais” e “mães de traficantes”, têm espaço e atuação no imaginário social de forma geral, são produzidos nos editoriais da mídia hegemônica, são comumente justificados em sentenças judiciais para motivar punições e  são estas distintas lógicas de criminalização que articulam e operam as políticas militarizadas de segurança pública.

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    Isso revela o lado macabro do genocídio antinegro que atua, não apenas na ação, no extermínio dos filhos/filhas, mas também no seu adoecimento e mortes prematuras. Elas lutam contra as múltiplas manifestações difusas a acumulativas do genocídio. A prevalência de sintomas de doenças é um exemplo disso: tristeza profunda, transtorno de ansiedade, alterações recorrentes no sono, sintomas de depressão, estresses, problemas nos órgãos relacionados à maternidade, como câncer de útero, de mama, ovário, tudo isso são doenças prevalentes entre elas e lhes confinam a uma simbiose mortal. As mortes de seus familiares produzem efeitos deletérios à sua personalidade. As palavras de Rute Fiuza, representante das Mães de Maio do nordeste e mãe de Davi Fiuza, desaparecido político da democracia, nos informa à dimensão do sequestro da identidade materna: “hoje eu não sou mais Rute Fiuza, sou a mãe de Davi. É assim que as pessoas me chamam. Assim que a sociedade me conhece”. Então criminalização, racismo e punição fazem parte dos mesmos processos de subordinação racial.

    Nesse sentido que a luta das mães não se limita ao viés penal, ou ao reestabelecimento e manutenção da paz social, ou à facilitação dos processos de reconciliação à preservação do Estado democrático de direito. Não se pode humanizar a barbárie. Não! O lugar de fala reivindicado por elas é o lugar das vozes plurais, da rebelião negra forjada de baixo para cima, no subterrâneo das suas experiências de dores e de luto. Quero pontuar que o “lugar de fala” de que trato aqui não se associa à reconfiguração do conceito de um certo modismo digital da atualidade com seu gritante esvaziamento de sentido político, que habitualmente sequestra outras vozes em nome de projetos pessoais e na limitada discussão antirracista, que finda ao incluir pessoas discriminadas na sociedade capitalista-punitivista. A arrogância em definir o “ser mulher negra” a partir de uma visão hegemônica capitalista de modo algum desafia os discursos neoliberais. Na verdade, esse modismo se apresenta como receituário das políticas neoliberais predatórias que apenas repõem as necessidades do mercado de consumo e mercantilizam as pautas históricas da luta do feminismo negro verdadeiramente radical e comprometido com uma outra forma de sociabilidade. Aqui é imprescindível resgatarmos as palavras de Audre Lorde, segundo a qual “as ferramentas do senhor não podem destruir a casa grande”.

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    As vozes plurais na luta por justiça, reparação e memória rechaçam a produção racial da verdade oficial, propõem desmantelar as estruturas racistas fortificadas pelo mito da democracia racial, convidam as diferentes frentes da esquerda a superar suas agendas de direitos civis em direção a uma construção de um outro mundo possível, na medida em que a pauta que demarca a abolição inacabada é a reivindicação pela vida das pessoas condenadas da terra. Nesse sentido é que a agenda, construída nestes 15 anos de luta e de esperança, é composta a partir das suas experiências históricas de resistência, cosmovisão, saberes, dores e subversão. Se as elites manejam as ferramentas do Estado e produzem fábulas de justiça e verdade, é essa corpografia subversiva, enlouquecida e brutalizada que desmistifica estas concepções e desafia a parir outro Brasil.


    [1] Os Crimes de Maio de 2006, na cidade de São Paulo, representam um dos casos mais emblemáticos de impunidade na era pós-ditadura militar. Entre os dias 12 e 21 de maio de 2006, mais de 500 pessoas foram executadas no estado de São Paulo, sendo que, oficialmente, ao menos 124 (cento e vinte e quatro) pessoas, comprovadamente inocentes foram assassinadas pelas forças policiais. No mesmo ano, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) organizou rebeliões simultaneamente em presídios de todo o estado de São Paulo. Fora dos presídios, a facção protagonizou uma série de ataques, incendiando ônibus, avançando contra prédios públicos e, principalmente, realizando atentados contra a Polícia, como viaturas, postos, delegacias e batalhões. Em resposta aos ataques, todo o efetivo policial paulista foi colocado em prontidão, revogando-se as férias e as folgas dos soldados. Segundo o estudo mais recente organizado pelo Movimento Mães de Maio e pela UNIFESP, em números oficiais, a polícia do estado matou pelo menos 124 pessoas civis, sob a falaciosa narrativa da “resistência seguida de morte”. (Cf.: Relatório: Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da antropologia forense e da justiça de transição, elaborado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia forense da Unifesp e Movimento Mães de Maio, em 2018.

    Dina Alves é feminista negra abolicionista. Advogada, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, é autora da pesquisa “Rés Negras, juízes brancos” e atriz

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