Artigo | Mestres da Reportagem: ‘O que acontece em dez anos?’

Perto do lançamento de mais um livro, Patrícia Paixão, organizadora da série “Mestres da Reportagem”, reflete sobre os 10 anos do projeto que reúne a trajetória de quase 100 repórteres brasileiros

O texto abaixo foi extraído da apresentação do volume IV de Mestres da Reportagem com autorização da organizadora e os coautores e exclusividade para a Ponte Jornalismo

Ao caro leitor, proponho um exercício. Faça brevemente uma retrospectiva dos últimos dez anos da sua vida. Já nos primeiros minutos de reflexão certamente você se dará conta de diversos fatos marcantes que ocorreram com você e os seus nesses mais de 3.600 dias. Alguns tristes, outros alegres, outros que, mesmo sem ter relação direta com sua vida, acabaram provocando impactos na sua trajetória. Talvez você perceba até mesmo que seu próprio jeito de ver o mundo e pensar sobre determinadas questões foi alterado.

Há quase dez anos, em 11 de novembro de 2012, eu e mais de 80 estudantes de diferentes semestres do curso de Jornalismo lançamos o livro Mestres da Reportagem, com objetivo de valorizar o ofício de repórter, registrando a história da reportagem brasileira e de seus artífices. Quando começamos a realizar as primeiras entrevistas para a obra, no início de 2011, jamais poderíamos imaginar que o projeto ficaria tão grande, transformando-se em uma série. Assim que o livro foi publicado, novos aspirantes a jornalistas começaram a me procurar interessados em participar do projeto e, em 2013, demos início ao planejamento da sequência da série, realizando, em 2015, as primeiras entrevistas dos volumes II e III, até fazermos o lançamento deles em 7 de abril de 2018, envolvendo, de novo, dezenas de estudantes de Jornalismo e jornalistas formados, desta vez de diferentes instituições de ensino do país (o volume I foi produzido tendo apenas os estudantes da extinta Faculdade do Povo – FAPSP como coautores).

Em maio de 2018 eu já tinha um grupo de alunos de diferentes faculdades me procurando para fazermos o volume IV. Eu estava no meu segundo ano de doutorado, com diversas demandas da minha pesquisa, lecionava em três universidades, escrevia quinzenalmente colunas para alguns veículos de comunicação, isso sem contar a vida de dona de casa, mãe de duas meninas e dois pets. Ainda assim, sem pestanejar, abracei a ideia de mais um volume, a essa altura já ciente de que o projeto teria vida longa e que possui grande importância na memória do jornalismo brasileiro, afinal, nenhuma outra iniciativa tem atuado para documentar, de forma sistemática, a vida e a obra daqueles que se dedicam à reportagem no Brasil, e com o intuito paralelo de contribuir com a carreira de estudantes, proporcionando a chance de serem coautores de um livro, antes mesmo de se formarem. 

Nesses quase dez anos, desde o lançamento do volume I, muitas coisas legais aconteceram. Uma delas foi que diversos coautores da série conseguiram se colocar no mercado jornalístico, muitos a partir da experiência de participarem da produção do livro (relataram-me isso, após perceberem como o fato de terem participado da obra ajudou para que fossem escolhidos em entrevistas de estágio). Alguns daqueles pupilos que em 2012 estavam no papel de entrevistadores no Mestres I, com frio na barriga ao ficarem frente a frente com grandes nomes do nosso jornalismo, hoje figuram com destaque na área, com reportagens que abordam diferentes problemas da nossa sociedade e com prêmios e outras formas de reconhecimento. Estão muito próximos de se tornarem os mestres entrevistados dos próximos volumes da série. É emocionante contemplar essa evolução.

Ainda olhando para todos esses anos, é lindo constatar que os volumes da série constam da bibliografia básica e complementar de diversas faculdades de Jornalismo pelo país e que, de tempos em tempos, eu e os coautores somos convidados a falar sobre o processo de produção dos livros em importantes espaços da área acadêmica. Em 2019, por exemplo, recebi o convite para escrever um artigo para o volume 5 da revista científica Observatório (do Núcleo de Pesquisa e Extensão Observatório de Pesquisas Aplicadas ao Jornalismo e ao Ensino, da Universidade Federal do Tocantins – UFT), para explicar o funcionamento do projeto e sua importância para os alunos de Jornalismo e a sociedade, já que, em cada lançamento, fazemos um debate extensionista entre o público, os coautores e alguns dos repórteres entrevistados, em um espaço prestigiado (a última roda de conversa aconteceu no Centro Cultural São Paulo), para discutirmos o gênero reportagem e sua relevância. 

Em 2020, mais uma vez representando os demais coautores (além de organizadora da série participo como autora de algumas entrevistas), pude falar sobre o projeto no 19º Encontro Nacional de Professores de Jornalismo. Enquanto apresentava a série para um grupo de docentes de diferentes lugares do país, percebi grande entusiasmo dos participantes e, para a grata surpresa minha e dos estudantes de Jornalismo e jornalistas coautores, ao final do encontro nosso trabalho foi premiado na categoria “Atividade de Extensão”, fato que foi noticiado por veículos de comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Foi um reconhecimento que, sem dúvida, marca a trajetória do nosso projeto.

Também fomos observando ao longo desses quase dez anos importantes mudanças no Jornalismo. Ainda que tenhamos muito (muito mesmo!) a caminhar no sentido de redações mais diversas e com coberturas mais representativas de setores sociais historicamente alijados em nosso país (como a população preta e parda, os indígenas e seus descendentes, as mulheres, a população LGBTQIA+; a mídia hegemônica permanece fazendo uma cobertura muito deficitária no que se refere às pautas desses grupos), vimos, nesses últimos dez anos, redações mais múltiplas e novos veículos jornalísticos, mais independentes e mais focados na essência do jornalismo (como atividade defensora dos direitos humanos), surgirem e, muitas vezes, produzirem reportagens mais aprofundadas e com temas de maior relevância, que os trabalhados na chamada mídia tradicional. Nesses novos veículos, muitos repórteres têm feito história e, portanto, passaram a ter suas trajetórias contempladas na série. 

Também fomos procurando, a cada volume, aumentar a pluralidade que desde o Mestres I temos como norte. O volume que está em suas mãos traz desde nomes com mais de 40 anos de reportagem, que produziram trabalhos históricos e hoje estão no panteão da profissão, como os jornalistas Antonio Carlos Fon, Lúcio Flávio Pinto, Rose Nogueira e Sérgio Gomes, até jornalistas jovens, que se destacam no mercado, como Chico Felitti e Caê Vasconcelos. 

As editorias em que atuam os jornalistas entrevistados nesse volume também são bem variadas, de Saúde, Internacional, Economia, Policial, Ciência, Meio Ambiente, à Cultura e Política. E, mais uma vez, há repórteres de diferentes mídias e regiões do país, contemplando gênero e raça. 

Além dos jornalistas citados anteriormente, a série traz os seguintes entrevistados: André Tal, Andrea Dip, Angelina Nunes, Chico Otávio, Cláudia Collucci, Elaíze Farias, Fabiana Moraes, Fátima Souza, Flávia Oliveira, Josmar Jozino, Juca Guimarães, Julio Maria, Marcelo Leite, Marilu Cabañas e Vitor Hugo Brandalise. Um time bastante rico de profissionais, que tem feito a diferença no jornalismo brasileiro, com furos de reportagem históricos e matérias de grande repercussão.

Ao todo, considerando os volumes anteriores, a série Mestres da Reportagem já registrou a carreira de 94 repórteres. Orgulho enorme! 

Se eu me esqueci de coisas chatas que aconteceram nos últimos dez anos?

Não, caríssimo leitor. 

A começar que perdemos mestres queridos, muitos dos quais gostaríamos que tivessem visto o progresso da série. Entrevistados fantásticos, dos volumes anteriores, nos deixaram, alguns cedo demais. Em 2016 faleceram Geneton Moraes Neto e Goulart de Andrade. Em 2018 foi a vez de Audálio Dantas e, no ano seguinte, Clóvis Rossi. 

Outra coisa triste, quase insuportável, foi o fato de, desde o início de 2019, estarmos tendo que lidar com um governo que ascendeu ao poder defendendo a ditadura e chamando o Golpe de 1964 de “revolução”. Um governo genocida, que nega a Ciência e se posiciona abertamente contra os direitos humanos, com posturas racistas, misóginas e LGBTfóbicas, e que, de forma declarada, tem os jornalistas como inimigos da nação. Esperamos, de coração, que esse ciclo de quatro anos de horror, de menosprezo ao Jornalismo, à Ciência, à Cultura, à Educação, ao Meio Ambiente e a tantas outras áreas essenciais, seja encerrado em outubro de 2022, com as eleições presidenciais.

Como se não bastasse isso, uma pandemia apareceu no meio do caminho, atingindo o mundo todo e, em março de 2020, o Brasil. As atividades de todos os cidadãos foram afetadas, incluindo as nossas, de jornalistas. Não foi fácil atuar de forma remota e ter o psicológico em dia para continuar a trabalhar, diante de números assustadores de mortos e contaminados. A pandemia também afetou o processo de produção desse livro. Muitas entrevistas tiveram de ser feitas de forma remota, para a segurança dos coautores e dos entrevistados.

Por fim, já na fase de fechamento deste volume, quando fazíamos a edição finalíssima das entrevistas, uma guerra entre Rússia e Ucrânia eclodiu em plena terceira década do século XXI. E, nesse momento (março de 2022), temos jornalistas brasileiros em solo ucraniano, fazendo a cobertura do conflito e colocando suas vidas em risco. Histórias a serem registradas nos próximos volumes da série Mestres

A verdade é que todos esses acontecimentos lamentáveis só reforçam a importância da reportagem e do trabalho de memória do Jornalismo.

Graças a repórteres de diferentes veículos que se uniram, em um consórcio de veículos jornalísticos, quando o governo, com sua postura negacionista e desorganizada, simplesmente deixou de informar o número de contaminados e mortos por dia, a sociedade brasileira continuou a conhecer o andamento da pandemia em nosso país, as histórias de vida de quem foi levado pelo novo coronavírus e como a realidade daqueles que vivem em regiões periféricas foi bem mais triste no enfrentamento dessa situação, do que a vida daqueles que puderam se dar ao luxo de se isolar e seguir outras medidas preventivas contra a Covid-19.

O jornalismo também seguiu mostrando as muitas questões problemáticas que envolvem a pandemia e esse governo, sem esmorecer mesmo diante de ataques sistemáticos, não só verbais, mas físicos. Nunca esteve tão clara a essencialidade da nossa profissão, como pilar da democracia e olhos e ouvidos da população, em especial daqueles costumeiramente esquecidos. Incomodamos sim, pois mostramos aquilo que os poderosos e criminosos tentam ocultar.   

Essas questões (ao lado de muitas outras) aparecem nas falas de alguns dos repórteres entrevistados para esse volume.

E sobre os grandes mestres da reportagem que nos deixaram, ao menos a história deles e de suas grandes matérias está muito bem documentada nos livros dessa série, para todos que desejem aprender com seus valiosos ensinamentos. Esse é o nosso maior legado.

Ajude a Ponte!

Finalizamos esse texto informando que já estamos em processo de produção do volume V e o que podemos afirmar é que nos sentimos empolgados com a possibilidade de daqui a dez anos estarmos fazendo mais um exercício de retrospectiva, que nos apontará, certamente, como a reportagem continua sendo essencial para esse país, em que muitas vezes a imprensa é o último porto seguro. Avante! 

* Patrícia Paixão é jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo e doutora pela Universidade de São Paulo, é professora do curso de Jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tendo lecionado também no curso de Jornalismo da Uniban, FIAMFAAM, FAPSP, Faculdades Integradas Rio Branco, Universidade Anhembi Morumbi e Universidade São Judas. Também organizou Jornalismo policial: histórias de quem faz (IN House, 2010) e coorganizou América Latina: Comunicação e Política, que faz parte da série USP Debate

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