No debate político, candidatos lançam mão de estatísticas isoladas, desinformação e mostram que não têm a menor ideia do que fazer para a segurança pública
Geraldo Alckmin, governador do estado de São Paulo por anos e atual candidato à Presidência da República, passava por sabatina no Jornal Nacional – o telejornal de maior audiência do país. Lá, em meio ao já conhecido carisma de Alckmin que, entre outras coisas, lhe renderam a alcunha de Picolé de Chuchu, se iniciou o papo sobre segurança pública. Orgulhoso, o candidato apontou para o fato de que o índice de homicídios do estado de São Paulo simplesmente despencou nos últimos anos ligando-o a uma suposta excelência de sua gestão e negando qualquer influência, como apontado pela entrevistadora, com a sabida ação de organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), que desde os anos 90 atua no estado e tem crescido especialmente depois dos anos 2000, alcançando posições transnacionais. Em sua negação, estufou o peito para dizer que “São Paulo prende, cana dura” e, entre as provas desse fato “louvável”, destacou que o estado possui 22% da população brasileira, mas é, sozinho, responsável por 35% da população carcerária do país. Para finalizar, deu ainda um show para tentar demonstrar dureza e tratamento rigoroso quanto a questão criminal: prometeu mudar a lei de execuções penais acabando com as “saidinhas” e endurecendo as penas.
Suas colocações fazem o público registrar uma suposta ligação entre a dureza da polícia e o hiper encarceramento que o estado promove com a diminuição dos índices de assassinato. O recado é: se quiserem mais segurança e menos assassinatos, a cadeia é necessária e a polícia precisa promover a tal “cana dura”. Infelizmente, tal público receptor desse recado raramente faz parte da parcela de pessoas que sabe que: 1) São Paulo sempre foi o estado com a maior população carcerária do país – mesmo quando tinha índices altos de homicídio e 2) não há qualquer pesquisa séria que comprove a relação do aumento dos índices de encarceramento com a diminuição de assassinatos e crimes violentos¹**.
No caso das declarações de Alckmin temos vários problemas e contradições. A primeira delas é a mais óbvia: se São Paulo encarcera uma porcentagem de pessoas proporcionalmente maior do que a média de habitantes do estado, isso prova que, na verdade, a segurança pública do estado nunca esteve pior. A cadeia é o sintoma de um sistema adoecido que se mantém de modo cíclico – quanto mais prisões, maiores as chances dos detentos não terem uma readaptação social se tornando reincidentes, sujeitos-estatísticas que só lotam celas sem de fato permitir o tratamento estrutural dos principais problemas da segurança – não se está resolvendo a questão do crime, mas sim, organizando institucionalmente um truque, quase mágico e dos mais conhecidos e admirados pelos amantes do ilusionismo: o desaparecimento. O truque dialoga com o que vem sendo alertado pela campanha #EleiçõesSemTruque, da Rede de Justiça Criminal: é preciso estar alerta para as candidaturas que irão tentar se promover prometendo soluções “mágicas” para o tema da segurança pública – “soluções” que chamam a atenção, mexem com o senso comum, mas que trazem pouco ou nenhum elemento que realmente possa ajudar a resolver as maiores aflições populares no campo.
Do mesmo modo opera a colocação sobre mudar a lei de execuções penais acabando com as “saidinhas” – outro dos argumentos que apelam a uma conhecida e desejável ignorância da população. As tais “saidinhas” são direitos concedidos a detentos do regime semi-aberto que já cumpriram boa parte de suas penas e que se tornam aptos a sair da prisão em feriados limitados ao caberem em critérios como o bom comportamento. O cidadão comum pode pensar que é apenas uma ação de bondade ou falta de dureza com criminosos cruéis que colocam suas vidas em risco e essa visão é todo ano renovada quando as mídias publicam reportagens alardeando sobre o número de detentos que deixará a prisão em determinado feriado ou retomam histórias já desgastadas como a de Suzane von Richthofen e suas saídas nos Dias dos Pais ou das Mães, matérias que são compartilhadas com as famosas frases de revolta como “que absurdo” ou “a lei no Brasil é uma piada” e sem preocupação jornalística alguma em explicar para a população qual a função e serventia de tal direito.
Há nas saídas a lógica de tentar manter vínculos dos detentos com o mundo externo para que não se tornem abandonados e inaptos para a vida em sociedade quando finalmente cumprirem suas penas. O resultado óbvio da falta de adaptação e de vínculos afetivos e familiares é a reincidência – a grande maioria dos detentos que saí da cadeia sem uma família como apoio e sem um local para onde retornar acaba voltando para a prisão pouco tempo depois. As saídas são métodos para evitar que novos crimes ocorram e de garantir que o ex-detento retorne a sociedade com ferramentas que permitam a ele não voltar para as estatísticas criminais, fato que automaticamente colabora para que novas vítimas não existam. Acabar com as “saidinhas” é então um método de colaborar para o aumento da criminalidade e não o contrário, mas provavelmente Alckmin sabe disso – quem não sabe somos nós, os cidadãos que não queremos pensar em criminosos, que não nos importamos com como eles vão ou não voltar para a sociedade e que, muitas vezes, torcemos simplesmente para que nunca saiam das prisões. A sociedade deseja que o show de ilusionismo se estenda e que métodos não funcionais continuem sendo utilizados, desde que tenham a garantia de que os sujeitos-problema continuarão como manda o truque: desaparecidos.
Em poucos segundos de fala, Alckmin agiu como um perfeito mágico, elaborando medos primários do eleitorado e se apoiando nas mais famosas e batidas falácias para manter a crença de que ao fazer pessoas específicas desaparecerem de nossas vistas, trancadas em gaiolas superlotadas, estaríamos ganhando vantagens enormes e viveríamos como os personagens que brincam com onças em meio à borboletas e pássaros nos campos verdes que retratam o paraíso em publicações religiosas. O tucano João Doria, ex-prefeito de São Paulo, em sua campanha ao governo do estado, vem usando os mesmos artifícios ao dizer sempre que pode que irá aumentar o poder de atuação das polícias, fornecer tecnologia para que possam prender mais e permanecer nas ruas de modo ostensivo. Na segunda-feira (1/10), o tucano chegou a declarar que a Polícia Militar de SP, em uma eventual vitória dele, vai “atirar. E atira para matar”, gerando repercussão e crítica até mesmo de dentro da corporação.
Aqui são dois os truques: o de fazer aparecer verba para aplicar na polícia que, com sua suposta nova ação ostensiva e tecnológica, irá colaborar para mais desaparecimentos. Entretanto, nem Doria e nem Alckmin fizeram menção a composição dos encarcerados de São Paulo. Não mencionam e nem mencionariam que a maioria esmagadora dessas pessoas presas é ré primária e foi condenada por crimes não violentos como furtos e tráfico de drogas. Certos estão eles em não mencionar: precisamos nos manter acreditando que as cadeias estão lotadas de assassinos psicopatas, dos mais cruéis e frios possíveis. É o que faz o sistema carcerário sobreviver entre a opinião pública mesmo com dados robustos e pesquisas diversas sobre a falta de efetividade em sua suposta missão de proteger nossas vidas.
Dória e Alckmin não são elementos isolados em uma eleição onde uma candidata à deputada pedia votos exibindo o vídeo em que matava um sujeito que tentou concretizar um assalto a mão armada na frente de uma escola. Era o mesmo truque em sua fase mais literal e mandando recado semelhante. Não queremos de modo algum ser surpreendidos por alguém armado enquanto estamos com nossos filhos na porta da escola e é horrível sequer pensar em viver em uma sociedade onde isso aconteça. O que podemos fazer para resolver esse problema? Desaparecer com ele. E há modo mais literal de desaparecer com algo do que provocando sua morte?
O truque do desaparecimento é tão comum, tão simplório, que chega a soar ridículo, afinal, não há como desaparecer com todos que nos provocam medo ou risco e pensar em fomentar essa possibilidade como programa político é irreal para além do bom senso ou de uma questão de direitos humanos básica pois, o que é risco para mim pode não ser para o outro e eu mesma posso ser lida como o risco de alguém – desaparecer com todos os criminosos e potenciais criminosos institucionalmente põe em risco a existência de todos nós – ou melhor, de todos nós que nascemos com a classe, raça e gênero dos indesejáveis e que já temos nossa existência ameaçada há tempos pelas atuais políticas de segurança.
Apesar de irreal, é um truque aclamado, que de tempos em tempos volta ao debate político. O estímulo a uma ideologia de valorização do truque do desaparecimento é inclusive homenageada. Um exemplo é o que o governador Marcio França fez com a PM que matou o assaltante. Ensinamos que o truque do desaparecimento é belo e efetivo, que todos podemos nos tornar magos e praticar o truque até que a sociedade se veja “limpa” – estarão todos enjaulados ou mortos, só sobrará espaço para os bons, os de bem, os de coração puro. Claro que não incluímos aí os crimes de sonegação, a senhora cleptomaníaca de Moema, o universitário que vende ecstasy nas festas da faculdade ou o político que desvia milhões de dinheiro público. Entre esses há certa classe. Já aquele cara que rouba um celular na rua, de bermuda, boné e pele negra, que classe ele têm? Precisa desaparecer. É incômodo. Na vista demais.
Antes de prosseguir, um lembrete: existe um medo e ele é legítimo. A violência é um tema sensível que faz suas maiores vítimas entre as classes menos privilegiadas: os negros, periféricos e pobres. Essas pessoas são as que preenchem os números gordos que mostram os índices absurdos de assassinatos, são os bairros onde essas pessoas moram que registram os maiores índices de criminalidade. Ódio e vontade de exterminar um problema que segue por décadas sem solução é uma reação comum daqueles que estão cansados. A questão é que o truque do desaparecimento não é trunfo novo – as cadeias estão lotadas, os assassinatos acontecem aos montes e a melhora segue sem chegar aos que mais sofrem com os males de uma sociedade violenta. O truque se mostra como realmente é – apenas um truque. Um trunfo midiático para dar uma suposta dureza e fazer a população acreditar que candidato x ou y sabe o que fazer quando, na verdade, seu uso demonstra que o candidato que o faz simplesmente não tem a menor noção e proximidade com o que de mais recente se têm discutido e provado no campo das pesquisas em segurança pública.
Fácil de ser aceito por uma população que tem medo, praticado à exaustão de modo ilegal nas áreas em que as câmeras não chegam e belo aos olhos quando queremos construir histórias irreais e simplistas onde o bem luta contra o mal, o truque do desaparecimento segue sendo um dos grandes trunfos ilusórios, mas mais do que isso: é uma prova de que seu candidato não tem a menor ideia do que fazer para de fato melhorar a segurança pública ou, simplesmente, que está disposto a prender mais gente ou exterminar um ou outro para que você tenha também a ilusão de que agora está mais seguro. Você não estará. Nenhum de nós estará.
Encarar o problema de modo maduro, embasado e coerente com o que se tem evidenciado nos últimos anos é necessário nesses tempos onde a cegueira provocada e a invisibilidade são dados como elementos políticos de fato. Que saibamos identificar o truque e os que se aproveitam do brilho pirofágico que ele provoca para esconder incapacidades de enfrentar a questão com seriedade, provando a todos que não há planos concretos para além da covardia personalista. Somos mais espertos que isso e os candidatos precisam saber e temer esse fato.
*Suzane Jardim é historiadora, educadora e pesquisadora nas áreas de história negra e criminologia. Foi uma das articuladoras da campanha 30 Dias por Rafael Braga, criada em 2017 para popularizar discussões sobre racismo, seletividade do sistema de justiça, guerra às drogas e encarceramento. É uma das autoras do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil.
**1. As principais pesquisas que mostram tal relação foram encomendadas por governos que promoviam a lógica da Tolerância Zero nos Estados Unidos e que tinham como objetivo “exportar” o método – objetivo tão importante que permitia aos pesquisadores usarem métodos questionáveis ou exagerar números para que parecessem mais atrativos em um PowerPoint.