Série sobre assassinato de Daniela Perez passa longe dos debates que realmente importam sobre a justiça criminal
O fenômeno do true crime, que lança luz sobre crimes reais, tem se tornado cada vez mais atraente e rentável nos últimos anos, com serviços de streaming como a Netflix produzindo documentários à exaustão. No Brasil, talvez os principais exemplos sejam o Projeto Humanos – O Caso Evandro, podcast produzido por Ivan Mizanzuk, A Mulher da Casa Abandonada, de Chico Felitti, e, mais recentemente, Pacto Brutal, documentário da HBO Max feito a partir da perspectiva da escritora Glória Perez.
O documentário parte do assassinato da atriz Daniella Perez por Paula Thomaz e Guilherme de Pádua. O crime, ocorrido em 1992, posteriormente serviu de base para a aprovação de uma alteração legislativa que transformou o homicídio qualificado em crime hediondo, tornando a punição para esses casos mais severa. A movimentação pela alteração foi capitaneada pela própria Glória Perez, mãe da vítima, que, apoiada pela Rede Globo (maior emissora de televisão do país) e por diversos artistas, com forte apelo sobre a opinião pública, recolheu mais de um milhão de assinaturas à época.
Tanto Paula Thomaz quanto Guilherme de Pádua foram condenados e cumpriram a pena que lhes foi imposta. Prestes a completar 30 anos, o crime ressurge no imaginário popular por causa da obra, através de depoimentos de artistas famosos, extensos relatos da mãe da vítima e até mesmo de “especialistas”, que pouco ou nada se envolveram com os fatos no momento do ocorrido. O que nos é apresentado, portanto, 30 anos depois, é um lado da história que, apesar de podermos argumentar que deve ser respeitado, nem por isso deve ser menos questionado.
No quarto episódio, Ana Beatriz Barbosa, psiquiatra que assumidamente nunca esteve com o assassino, atesta que De Pádua é um psicopata, pois “certos crimes somente um psicopata é capaz de cometer”. Ao mesmo tempo, um ex-noivo de Paula Thomaz tem seus minutos de tela para afirmar que ela era uma figura muito possessiva e “emocionalmente desequilibrada”, coisas que quase toda mulher já ouviu sobre si, especialmente depois de romper com um homem. A intenção, aqui, parece ser a de levar o público a pensar que o casal cometeu o crime por serem duas pessoas com “sede de poder” e sem limites morais, psíquicos ou éticos.
Mais adiante, Glória Perez menciona uma suposta “ligação ritualística” entre o casal, iniciada com tatuagens íntimas e sacramentada no assassinato de Daniella. Diversos personagens surgem falando em suposto “ritual”, fotos nos são mostradas, até que, novamente, somos apresentados a mais uma especialista que, sem relação com o caso, irá nos dizer que haviam vestígios fortes de um “pacto com uma entidade maligna” na cena do crime. Em dado momento, uma parente de Daniella menciona a umbanda e o candomblé, frisando que tem respeito por todas as crenças, mas argumentando que existem pessoas “malucas” em todas elas. Diante disso tudo, a presença de Sônia Abrão, que chafurdou na lama no episódio Eloá, parece mero detalhe, apesar de não ser.
O desejo de criar um imaginário místico, muitas vezes com forte apelo ao pânico satânico, em cima de um crime, parece partir do pressuposto de que todos nós necessitamos saber quem são as pessoas ruins e essencialmente más ao nosso redor, como num desejo de internalizar que somos muito diferente delas. E, para elas, somente a prisão ou o manicômio seriam soluções suficientes para que nós, cidadãos de bem, vivamos em harmonia na sociedade, sem medo, com a sensação de que a justiça se fez. Aliás, ainda que se possa argumentar que no caso em questão houve o cumprimento de uma pena, o que parece ser sugerido durante todo o documentário, de formas não tão sutis, é que prisão nenhuma basta se não for perpétua.
Tudo aquilo que fugir da norma merece prisão ou manicômio: os “psicopatas”, as “histéricas”, as prostitutas, os homossexuais, os loucos, os que possuem crenças diferentes da normalidade cristã — a lista é longa. Digo prisão ou manicômio porque é o que parece implícito quando se afirma que Guilherme de Pádua seria um psicopata e Paula Thomaz “emocionalmente desequilibrada”. Quem não quiser ter sua moralidade ou progressismo colocado em xeque no que diz respeito à sede de aprisionamento perpétuo poderá argumentar, com palavras bonitas e cheias de boas intenções, que “prisão talvez não, mas minimamente um internamento psiquiátrico”, ao que Foucault irá responder com uma sonora gargalhada.
A verdade é que a lógica do isolamento do outro funciona para nós como uma excelente baliza, algo que Angela Davis já afirmou antes. Parece-nos mais fácil, mais cômodo, revisitar um crime ocorrido há 30 anos e nos deliciar com o horror e com a revolta do que assumir que, 30 anos depois, a violência contra a mulher somente aumentou (ainda que, de lá pra cá, tenhamos presenciado o surgimento da Lei Maria da Penha e da infame Lei do Feminicídio), quase dois terços dos homicídios sequer são solucionados, enquanto seguimos abarrotando, principalmente por crimes contra a propriedade e pela guerra às drogas, pessoas negras e pobres nas masmorras que fingimos não ver ou saber que não existem, no terceiro país que mais encarcera gente no mundo. Isso, é claro, para não falar na nossa hipocrisia de conviver tão bem, cotidianamente, com o genocídio dos jovens negros pelas mãos do Estado, através da polícia ou da fome, como se isso fosse consideravelmente menos absurdo do que crimes que viram documentários aclamados — aliás, muitos de nós nem sequer somos capazes de enxergar o absurdo nesse caso.
Muito longe de querer saber “a versão” de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, duas figuras que, ao meu ver, poderiam permanecer no ostracismo, interesso-me pelo universo por trás de tudo que envolve um documentário como Pacto Brutal e todo o burburinho que ele provoca. O populismo penal midiático, a guerra entre o bem e o mal, o desejo de nos afastarmos tanto de questões que são muito maiores e muito mais importantes do que revisitar algo já arquivado. Bom seria se o true crime nos fizesse aprofundar a verdade por trás da ideia de crime, prisão, direito penal, ressocialização e tantos outros termos bem intencionados, mas, infelizmente, tudo indica que estaremos remando, cada vez mais, em direção ao passado.
* Rafaela Venturim é graduada em Direito e mestranda em Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa.