Artigo | Uma polícia com pressa e um jornalismo porta-voz

Investigação que levou à prisão de homem inocente pela morte da torcedora Gabriela Anelli reforça papel crítico da imprensa que não confia de olhos fechados na versão policial

Ilustração: Junião / Ponte Jornalismo

Aqui na Ponte estamos acostumados a nos deparar com uma série de erros que as polícias, o Ministério Público e até o Judiciário cometem e que levam pessoas inocentes à prisão. Reconhecimentos feitos de forma ilegal, uma pressa descabida em terminar uma investigação, a desconsideração de outros tipos de provas. Quantas vezes já não publicamos notícias assim aqui na Ponte? Quantas vezes nossa diminuta equipe já trouxe provas que inocentaram pessoas que foram presas, julgadas, acusadas de forma ilegal e errônea? 

Essa semana nos deparamos com um caso que ganhou notoriedade na mídia. A briga entre as torcidas de Flamengo e Palmeiras que levou a morte da jovem Gabriela Anelli esteve nas manchetes nos últimos dias. De acordo com o jornal O Globo, o delegado Cesar Saad, da DRADE/DOPE  (Delegacia de Repressão aos Delitos Esporte) teria dito “suspeito não. Autor”, com relação a Leonardo Felipe Xavier Santiago, uma certeza tão clara que parece já indicar a desnecessidade de mais investigação ou até julgamento. 

Em momento algum, houve questionamento por parte de veículos de imprensa se as imagens da confusão foram levadas em consideração na investigação. Em uma leitura coletiva do processo, a equipe da Ponte percebeu que a Polícia Civil não chamou para depoimento os guardas civis que estavam tentando separar a briga entre torcidas e nem pediu as imagens das câmeras nas fardas dos policiais presentes, nem qualquer outro material audiovisual que circulava nas redes sociais e na própria imprensa. 

Tudo foi baseado em testemunhos. Em depoimento, uma das testemunhas afirma categoricamente que o culpado foi Leonardo, pois fora capaz de “memorizar o individuo”, mas em momento algum dá a descrição de tal indivíduo antes de reconhecê-lo, como ordena o artigo 226 do Código Penal. Um dos PMs que efetuou a prisão afirma que “ali chegando tomou conhecimento que o autor Leonardo Felipe Xavier Santiago havia lançado uma garrafa”. Não se trata mais de suspeito, ele mesmo já crava a culpa em Leonardo, reforçando a reconhecida mentalidade brasileira da presunção da culpa, que contraria o ordenamento jurídico que preza pela presunção de inocência, ou seja, um ser humano só pode ser considerado culpado quando do trânsito em julgado de seu processo. 

A mídia se refestelou quando imagens do acusado foram vazadas e também quando as falas do delegado apontaram Leonardo como o culpado pela morte de Gabriella. Não houve questionamento por parte de nossos colegas jornalistas da narrativa que a polícia estava apresentando. Não houve preocupação de se disfarçar as escolhas políticas no enquadramento da história e nas vozes ouvidas nesta pauta, uma discussão que a jornalista Fabiana Moraes faz de modo brilhante em seu livro “A pauta é uma arma de combate”. No tribunal da imprensa, Leonardo era o culpado. 

Quando o MP trouxe outras provas e apontou um suspeito completamente diferente de Leonardo, todos os veículos deram a história sem fazerem uma autocrítica à sua mania de jornalismo declaratório. E não é a primeira vez que isso acontece. No caso de Lucas e Samuel, a cobertura da grande imprensa sensacionalista vespertina os tachou de bandidos, com direito a apresentador fazendo chacota com sua prisão. Passado algum tempo, de forma descarada, os mesmos veículos exibiram a versão da família, com os vídeos que indicavam que nenhum dos dois poderiam ter participado da ação criminosa. Houve um “ao contrário do que falamos anteriormente”? Ah, não, não mesmo. Vida que segue, ninguém viu nada, quem liga se chamamos uns pobres, uns pretos, de bandidos?

No caso da violência entre torcidas, a Polícia Civil errou, e isso não é a Ponte falando, mas o MP e a juíza que concedeu a liberdade a Leonardo. Esta última, inclusive, transferiu a competência de investigação para outra delegacia. “Ao contrário do noticiado e afirmado pelo delegado de polícia, o autuado não confessou ter arremessado a garrafa contra os torcedores do time adversário”, justificou a Marcela Raia de Sant’Anna, da 5ª Vara do Júri. “Diante da lamentável, para dizer o mínimo, postura do delegado de polícia, que se mostrou açodado e despreparado para conduzir as investigações, de rigor é a remessa dos autos ao DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa], órgão especializado e preparado para a condução de investigações desta espécie”.

A posição acusatória da imprensa é muito clara, sobretudo, com corpos que não contam com grandes escritórios de advocacia para defendê-los. A pesquisa Mídia, Sistema de Justiça Criminal e Encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas, de 2021, feita pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), indicou que, em 75% das notícias analisadas sobre crime, o único lado ouvido pela imprensa é o da lado da acusação. E ainda tem gente que acredita em jornalismo imparcial e neutro. Cito novamente a querida Fabi Moraes: “toda pauta organiza e desorganiza visibilidades, toda pauta hierarquiza e desierarquiza vozes, toda pauta estrutura e desestrutura discursos”. Em suma, caro leitor, toda escolha ou ausência no jornalismo é política. 

Aqui na Ponte, a gente é chato com as informações que recebemos. Quer ver isso na prática? Ano passado a Polícia Civil de São Paulo bradou aos quatro ventos que havia encontrado o quarto suspeito pelo assasinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, na Praça da Sé. O depoimento do tal suspeito tinha uma série de incongruências geográficas que levantamos em reportagem depois de discutir em grupo e apurar com cuidado. No dia seguinte às afirmações da Polícia Civil e da imprensa sobre o quarto suspeito, a Polícia Federal, responsável pela investigação do caso, simplesmente descartou a hipótese de que esse suspeito estivesse na cena do crime, tratando sua história como “versão pouco crível e desconexa”. Nossa chatice nos permitiu questionar as versões vendidas pelo delegado do caso e pela imprensa (aquela com grandes orçamentos e grandes equipes, sabe?). 

Uns veículos (grandes) defendem a democracia tendo colaborado com a ditadura. Alguns acreditam piamente nas falas das autoridades como se fossem a voz do divino. Por aqui na Ponte, trabalhamos sempre questionando tudo o que recebemos até encontrarmos respostas e as levarmos a vocês, afinal, o jornalismo não é porta-voz.   

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