Durante isolamento social, é fundamental que as redes de atendimento à mulher vítima de violência sigam em funcionamento e sejam fortalecidas
A Covid-19 está expondo as nossas fragilidades. Estamos sendo desafiados, dia após dia em nossa humanidade: a pandemia também nos testa à exaustão em nossos limites físicos, emocionais e econômicos.
Todos sofremos. Mas, para uma parcela expressiva da população, o choque do isolamento é ainda maior. Mulheres, em especial negras e pobres, estão em situação de vulnerabilidade extrema. Não bastasse a luta diária por casa e comida, elas têm de lidar com a crescente violência doméstica.
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Sobreviver ao coronavírus é um imperativo. Contra esse inimigo, ainda que seja desconhecido seu poder de destruição em nossos corpos, podemos usar o isolamento, a boa higiene, o comedimento e o cuidado como ferramentas. Há, no entanto, um inimigo do qual muitas não conseguem se desvencilhar. E ele está em casa, está ao lado, dorme na mesma cama, muitas vezes.
Um inimigo que cria armadilhas, que bate, que faz pressão psicológica, que difama, que desonra, que avilta, que rebaixa, que manipula, que persegue, que chantageia, que limita. São maridos, companheiros, namorados, podem ser pais também, podem ser tios, podem ser primos, são parentes, em primeira instância. Contra eles, o que fazer?
As medidas de isolamento social, segundo estudo conduzido pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, da sigla em inglês), nos levarão a um aumento médio de cerca de 20% dos casos de violência doméstica em todo o mundo, a cada três meses em que ficarmos em casa. Globalmente, serão mais de 15 milhões de casos de violência por parceiro íntimo em 2020.
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A convivência cotidiana potencializa comportamentos violentos por parte dos parceiros. Fragilizadas economicamente, as mulheres têm de enfrentar ainda uma via crucis para acessar os serviços de atendimento que deveriam lhes dar garantias e proteção.
Não precisamos ir longe para enxergar a crueza da realidade. No Rio de Janeiro, nosso quintal, o plantão da Justiça Estadual registrou aumento de 50% dos casos de violência doméstica após a instauração do período de isolamento em quarentena, ainda no mês de março.
Inquietante é saber que mulheres negras, moradoras de periferias ou de favelas, chefes de família, em sua maioria, estão em situação crônica de emergência mesmo antes mesmo do choque do coronavírus. É água potável que inexiste, o gás que acaba, as crianças que adoecem, a clínica da família que não atende, a alimentação que não passa de feijão com arroz, quando tem, é o remédio que tem que ficar para outro dia.
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É como se todo final de mês fosse anunciada, para essas mulheres e suas famílias, a chegada de uma nova pandemia diferente. Uma trama estrutural perversa e permanente, que envolve empregadas domésticas, catadoras de materiais recicláveis, trabalhadoras do sexo, ex-detentas, encarceradas em prisão domiciliar, migrantes, aquelas em situação de rua, as que não podem trabalhar porque têm a saúde debilitada, as muitas que não conseguem receber o benefício emergencial prometido pelo governo. Aos olhos de quem tem conforto e um lar para chamar de seu, é como se outras vidas não importem. Aos olhos do Estado, é como se todas fossem invisíveis.
A despeito de indiferenças e irresponsabilidades, essas vidas também importam e têm de ser protegidas. Precisamos buscar respostas para perguntas que não podem calar: qual condição têm as mulheres, sobretudo as mais pobres, de manterem-se em quarentena? Precisamos cobrar soluções efetivas e políticas públicas positivas que garantam saúde, direitos trabalhistas, e seguridade social.
É fundamental que as redes de atendimento à mulher vítima de violência sigam em funcionamento e sejam fortalecidas. O engajamento nas frentes de defesa da dignidade das mulheres é o que vai nos diferenciar lá na frente, quando a pandemia cessar. Mas precisamos agir agora, porque a vida não pode esperar. É urgente como antes, mas hoje, ainda mais.
*Dani Monteiro é cientista social, deputada estadual pelo Psol no Rio de Janeiro e foi assessora da vereadora Marielle Franco