Ativistas das Américas se unem em Salvador (BA) para cobrar políticas antirracistas

Morte de jovens negros e encarceramento em massa foram temas da Conferência Internacional da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas: “democracia brasileira é uma farsa”, diz Rute Fiúza

Rute Fiúza e a filha Camila durante a Conferência Internacional da Iniciativa Negra | Foto: Jefferson Machado/Iniciativa Negra

“Quais são os corpos que desapareceram nessa ditadura disfarçada de democracia?”, questiona Rute Fiúza. A ativista social é mãe do adolescente Davi Fiúza, um desaparecido forçado. Aos 16 anos, Davi foi colocado em um carro durante uma abordagem policial em Salvador, na Bahia, e nunca mais foi encontrado. Oito anos depois, sem julgamentos dos envolvidos, Rute diz falar com a voz do útero para denunciar os direitos negados aos negros no Brasil que, para ela, vive uma democracia forjada. “É uma farsa, ela nunca chegou nesse país”, afirma. 

“O luto se tornou luta por justiça e reparação”, diz Camila Fiúza, filha de Rute e irmã de Davi. Para ela, a escalada da violência letal assusta. “Nós pensávamos que, ao denunciar o caso do meu irmão, poderíamos parar a onda de violência”, conta. Hoje, lutando ao lado da mãe, a jornalista acredita que é necessária uma reparação do Estado aos familiares dos mortos.

“A sensação que tenho é que sem isso é como se a sociedade fosse cúmplice dos desaparecimentos forçados e das mortes de pretos”, fala Camila.

“Eles não param de matar nossos filhos”, diz Débora Silva, uma das fundadoras do Movimento Independente das Mães de Maio. Em 2006, Edson Rogério Silva dos Santos, filho de Débora, foi um dos mortos no que ficou conhecido como Crimes de Maio — quando grupos de extermínio formados por policiais mataram mais de 500 pessoas em São Paulo, em retaliação a ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), que mataram 59 agentes públicos.

A dor que une Rute, Camila e Débora, mães de jovens negros, se soma a de milhares de mulheres que tiveram filhos, pais e irmãos mortos pela polícia no Brasil. A cada 100 vítimas da polícia em 2022, 65 eram negras, segundo do estudo Pele Alvo: a Bala não Erra o Negro, produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec).

Na Bahia de Rute, a polícia foi a mais letal entre os oito estados (Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco e Piauí) analisados pelos pesquisadores. Foram 1.465 mortos, sendo 1.121 negros. Em São Paulo, onde a população negra é minoria, o percentual de pretos entre os mortos por policiais foi de 63,9%. 

Atravessadas pelo luto, Rute e Débora se tornaram nomes importantes na luta por políticas públicas antirracistas. “Eles nos matam tentando aniquilar nossa memória, nossa fé e nos colocar para sociedade como se nós fossemos incapazes, violentos e agressivos. Mas quem sofre é a violência e agressão somos nós”, afirma Rute. 

As duas mães cobraram o Estado brasileiro durante a Conferência Internacional Iniciativa Negra por Direitos, Reparação e Justiça, promovida pela Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas. O evento ocorreu em Salvador às vésperas do Dia dos Direitos Humanos, celebrado no próximo dia 10, reunindo além de ativistas do Brasil e nomes da Colômbia, Equador, Uruguai e Estados Unidos. 

Encarceramento

A ativista equatoriana Juliete Gamboa se emocionou ao contar sobre tragédias recentes que atravessaram sua família. Em agosto, a jovem negra perdeu um primo morto por violência policial. Há um mês, mais uma morte de um parente com o mesmo marcador.

Da esquerda para a direita, Dudu Ribeiro (co-fundador da Iniciativa Negra),  Dyana Blanco, Andrea Aguirre e Juliete Gamboa | Foto: Jefferson Machado/Iniciativa Negra

Integrante do coletivo Mujeres de Frente, ela falou da importância da memória e da efetivação de políticas que garantissem direitos básicos como acesso à educação. “Eu só consegui concluir meus estudos por conta do coletivo. Não tive apoio do governo”, contou. 

O acesso aos direitos básicos é o que marca a luta de Andrea James. Diretora do National Council For Incarcerated and Formerly Incarcerated Women and Girls (Conselho Nacional para Mulheres e Meninas Encarceradas e Ex-Encarceradas, em livre tradução), Andrea debate outra face da política racista: o encarceramento em massa.

Andrea ficou presa por dois anos e descreveu como precárias as condições de vida dentro da unidade em que esteve com outras 200 mulheres. Hoje, luta pelo desencarceramento, que relaciona diretamente com o racismo. Nos Estados Unidos, o número de negros em prisões estaduais é cinco vezes maior do que de brancos, segundo a ONG The Sentencing Project. 

Os Estados Unidos são o país com a maior população carcerária do mundo (2,1 milhões de presos). O Brasil ocupa a terceira posição nesse triste pódio com 773.151 encarcerados. Os dados são de pesquisa do ICPR (Institute for Crime & Justice Research) e da Birkbeck University of London. 

Diante de uma população carcerária gigante, a ativista estadunidense defende a expansão de medidas alternativas ao encarceramento. “Se não mudarmos o sistema de justiça, mulheres e meninas vão continuar sofrendo”, fala. 

Racismo é problema de direitos humanos

Dez de dezembro marca o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Nesta data, em 1948, foi proclamada pela Assembleia Geral da ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Esse foi o primeiro documento universal de defesa e proteção dos direitos fundamentais. 

Os 30 artigos tratam, por exemplo, do direito à vida e a proibição da escravidão, tortura e a prisões arbitrárias. Alexandra Montgomery, diretora de programas da Anistia Internacional, enxerga na realidade brasileira um distanciamento do que prega a Declaração. 

“Quando nós falamos em direitos para todos e na implementação da declaração universal, precisamos entender que ainda temos um caminho gigantesco a percorrer. Quando estamos em um país em que tem miséria, fome, violência, que tem uma família que tem adolescente ou um jovem negro que pode não voltar para casa simplesmente por ele ser negro, periférico ou moradora de favela, não estamos falando na implementação de direito. Estamos muito distantes”, diz.

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Alexandra defende que direitos básicos não podem ser vistos como privilégios e precisam ser aplicados a todos. “Me preocupo se não estamos indo cada vez mais distantes do ideal da implantação de direitos e garantias para todas as pessoas de maneira equitativa, mas reforçando que é para todas as pessoas, não só para a minoria de uma elite branca”, pontua.

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