Salvador, Camaçari e Itatim foram palco de mortes de sexta-feira (28/7) até segunda (31/7); uma adolescente de 13 anos está entre os mortos
19 pessoas morreram em intervenções da Polícia Militar baiana que ocorrem desde sexta-feira (28/7). As ações ocorreram na capital Salvador e nos municípios de Camaçari e Itatim. Entre os mortos está uma adolescente de 13 anos. A escalada da violência preocupa especialistas ouvidos pela Ponte. Eles condenam atuação armada sob justificativa de guerra às drogas e cobram manifestação do governador Jerônimo Rodrigues (PT), que até o momento não fez declaração pública sobre as ações.
As primeiras mortes ocorreram na sexta-feira (28) no município de Camaçari, distante 50 km de Salvador. Sete pessoas foram mortas na operação policial no bairro Jauá. Ao g1, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) informou que os policiais foram até o local após receberem denúncias sobre a presença de membros de uma organização criminosa. Ainda segundo a SSP, eles estariam no local para atacar uma facção rival. O grupo teria sido surpreendido pelos policiais e teria havido troca de tiros.
Os sete mortos, de acordo com a SSP, foram levados ao Hospital Menandro de Farias, em Lauro de Freitas, mas todos morreram. A secretaria divulgou imagens de armas (entre elas uma submetralhadora) e drogas que estariam em posse do grupo para divulgar o ocorrido. O caso é apurado pela 4ª Delegacia de Homicídios de Camaçari. Em nota enviada à Ponte, a Polícia Civil informou que recolheu o armamento dos policiais envolvidos para perícia e coletou depoimentos, sem deixar claro quem foi ouvido.
No domingo (30/7), foi Itatim o palco de mortes. A cidade é distante 213 km de Salvador e tem, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 15 mil moradores. Quem atuou neste caso foram policiais militares da Companhia Independente de Policiamento Tático (CIPT) das Rondas Especiais e oito pessoas morreram. As vítimas têm idade entre 13 e 23 anos, sendo três delas adolescentes (dois com 17 anos e um com 13). O caso é apurado pela 12ª Coordenadoria Regional de Polícia do Interior, em apoio à Delegacia Territorial do município.
Para divulgar as mortes, a SSP optou novamente por divulgar fotos de armamentos e drogas que teriam sido apreendidos na ação. Questionada pela Ponte, a Polícia Civil não informou se houve afastamento dos policiais envolvidos ou se algum deles já foi ouvido, mas enviou nota dizendo que parte dos mortos já tinha sido presa em situações anteriores.
O caso mais recente foi registrado na tarde de segunda-feira (31/7) na capital. Quatro pessoas foram mortas pela Polícia Militar no bairro de Cosme de Farias. A versão da PM é que houve uma troca de tiros e que os policiais estavam no bairro para uma ronda. Apenas dois dos mortos foram identificados. Eles são Anderson Jorge dos Santos Teixeira, de 26 anos e Max Santos de Jesus, de 20. A investigação é conduzida pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e as armas dos policiais foram encaminhadas para perícia.
As mortes elevaram a tensão e o medo nos locais que foram palco das mortes. Três colégios da rede pública municipal do bairro Cosme Faria, em Salvador, tiveram as aulas suspensas nesta terça-feira (1º/8) após as mortes.
Morador de Camaçari, Iago Ferreira, 25 anos, conta que mudou a rotina com medo da violência na cidade. “Eu prefiro não sair de casa nos momentos em que eu poderia, ou seja, o meu nível de lazer hoje externo a minha casa é muito baixo. Eu prefiro não sair na cidade de Camaçari e ir para Salvador em veículo próprio ou de algum amigo porque realmente não me sinto muito seguro”, comenta.
Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, organização parceira do Instituto Fogo Cruzado na Bahia, e também coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, fala que a polícia baiana tem sido protagonista nos conflitos registrados no estado. “A gente já viu antes dos episódios do fim de semana que a letalidade da polícia baiana vinha em uma crescente e ocupava a maior parte dos conflitos que estão acontecendo nos nossos territórios”, diz o pesquisador.
A Bahia registrou 6.659 mortes violentas intencionais (em números absolutos) em 2022, liderando o ranking nacional de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados em julho. O número considera os homicídios dolosos, lesões corporais que terminam em morte, latrocínio, mortes de policiais e as mortes cometidas por eles.
Outro dado alarmante: as quatro cidades com mais mortes violentas intencionais do país estão na Bahia. Jequié, no interior do estado, é o município com pior cenário, seguido por Santo Antônio de Jesus, Simões Filho e Camaçari — onde ocorreram sete mortes na sexta-feira (28).
O estado também é segundo com mais mortes violentas intencionais a cada 100 mil habitantes. A Bahia, que registrou taxa de 44,9, ficou atrás apenas do Ceará (45,2). Ambos superam a média nacional que ficou em 23,6 mortes violentas intencionais para cada 100 mil habitantes.
As polícias da Bahia também foram consideradas as que mais matam no país, superando o Rio de Janeiro. Foram 1.484 pessoas mortas em intervenções policiais oficiais no ano passado. O número representa 22,7% do total de mortes no estado.
Em resposta à divulgação dos dados do Anuário, a SSP da Bahia emitiu nota dizendo que os mortos em confrontos com as polícias são “homicidas, traficantes, estupradores, assaltantes, entre outros criminosos”. Por esse motivo, justificou a pasta no mesmo texto, não computava esses óbitos junto com os dados de “morte praticada contra um inocente”.
Na ocasião, a Ponte procurou o secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas, questionando a posição do governo. Crítico da atuação das polícias no estado antes de assumir a pasta, Freitas preferiu não comentar o caso e se limitou a dizer que a secretaria sobre que comanda atuaria em parceria com a SSP.
Violência é alimentada
A violência policial na Bahia tem sido alimentada por discursos que dão legitimidade às matanças, avalia o pesquisador Dudu Ribeiro.
“Ao longo dos últimos anos temos visto uma resposta sucessiva do comando da tropa em alimentar essa lógica de produção de mortes. Nunca é uma perspectiva de ‘vamos investigar, afastar, reparar’, muito menos os danos causados à vítima, mas sim uma espécie de legitimidade que inclusive vimos reforçadas nas falas do governador anterior. Essa lógica é uma senha para a tropa atuar com sede de sangue na rua”, comenta Dudu ao se referir ao ex-governador Rui Costa (PT), atual ministro da Casa Civil.
Uma das falas mais polêmicas de Costa ocorreu após a chacina da Cabula em 2015. Doze jovens negros morreram em intervenção de PMs das Rondas Especiais na Vila Moisés, uma comunidade pobre que fica na região da Cabula, em Salvador.
Ao se referir a atuação dos policiais, o então governador comparou o trabalho ao de um jogador de futebol. “É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”, afirmou Rui Costa à época.
A Bahia é governada há 16 anos por gestores petistas. Antes de Costa, Jaques Wagner comandou o estado entre 2007 e 2011. Ele é agora senador. “O governador acaba de chegar, são seis meses de governo, mas são 16 anos do mesmo partido político, e é necessário que a gente faça esse apontamento até porque não nos parece que diferenciou muito a fala do Tarcísio [de Freitas, do Republicanos, governador de São Paulo], um governador bolsonarista, da última nota da Secretaria de Segurança Pública, justifica que separava inocentes de traficantes, assassinos e estupradores”, diz o pesquisador Dudu.
Assim como a Bahia registrava mortes na sexta-feira (28), em São Paulo começava um massacre no Guarujá, no litoral. Uma operação (batizada de Escudo) foi iniciada após a morte do PM Patrick Bastos Reis, de 30 anos. Ele atuava nas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) e estava em serviço quando foi atingido por um disparo. Até a tarde desta terça-feira (1º), o governo de São Paulo confirmou 14 óbitos na intervenção policial que deve durar mais 30 dias.
Tarcísio de Freitas disse em entrevista coletiva na segunda (31) que não houve excessos dos policiais e que o trabalho foi profissional. A operação foi criticada por especialistas ouvidos pela Ponte, que classificaram como ação de vingança a operação em curso na Baixada Santista.
A falta de problematização da atuação das forças de segurança é vista como problemática para a socióloga e pesquisadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas Belle Damasceno. Ela avalia que é necessária uma mudança na forma como as polícias agem no combate ao tráfico de drogas.
“Nós [da Iniciativa] procuramos verificar quais são as medidas que de fato o Estado brasileiro tem adotado para lidar com essas pessoas. Porque confronto gera mais confronto. De fato em Salvador aumentou os números e a violência tem sido constante. Eu acredito que, se as estratégias de segurança pública desenvolvidas até agora, que são mais polícias, mais armas, mais viaturas, fossem a solução de todos os problemas, talvez não haveria mais confronto, porque é essa estratégia que vem sido usada há muitos anos e a violência só aumenta”, analisa a socióloga.
Para Belle o caminho deveria ser outro, mais focado nas áreas marginalizadas. “Precisamos investir nestes territórios com outras perspectivas de segurança pública que não são as que vão dar uma resposta imediata, mas é necessário intervenções que pensem não somente em curto prazo, mas a médio e a longo”, diz.
Ela aponta que dados do Instituto Fogo Cruzado, mapeados em colaboração com a Iniciativa Negra, registraram só no mês de junho 155 tiroteios em Salvador. Do total, 57 foram registrados durante ações ou operações policiais. Belle argumenta que a violência tem se concentrado no interior de bairros mais pobres e que não estão cobertos por muitas das políticas públicas do Estado.
“Salvador está violento porque vem de um processo de violação de direitos humanos e isso acabou gerando uma bola de neve. Falta de cidadania, de reconhecer algumas pessoas enquanto cidadãs”, completa.
Outro lado
A Ponte procurou o Ministério Público da Bahia, a SSP, a Polícia Militar e a Polícia Civil da Bahia questionando o andamento das investigações sobre as 19 mortes e a motivação de cada uma das intervenções nas três cidades.
Apenas a Polícia Civil respondeu e as informações constam no início da reportagem.
Até a publicação do texto, o governador da Bahia Jerônimo Rodrigues não havia se pronunciado sobre as mortes por meio oficial e nem em suas redes sociais particulares.