Boulos quer polícia comunitária nos moldes que levaram NY a recorde de presos

Inspirado na política americana de “tolerância zero”, plano do candidato do PSOL prevê aumento do efetivo da GCM e policiamento de proximidade

Guilherme Boulos, candidato do PSOL | Foto: Bernardo Guerreiro/Divulgação

Guilherme Boulos (PSOL) quer a Guarda Civil Metropolitana (GCM) atuando no policiamento preventivo e de proximidade. Também promete dobrar o efetivo, estimado hoje em 7 mil agentes. As propostas constam no plano de governo de Boulos na disputa pela prefeitura de São Paulo. Especialistas ouvidos pela Ponte veem nas propostas um caminho para a militarização da GCM. A estratégia também possui, avalia um dos pesquisadores consultados, os moldes de política de “tolerância zero”, que levou Nova York (EUA) a um recorde de presos. 

A Ponte analisou os planos de governo dos cinco candidatos mais bem colocados nas pesquisas eleitorais. Foram consultados especialistas que analisaram as propostas dos candidatos para as áreas de segurança pública, políticas públicas para pessoas em situação de rua e direitos humanos, além de ações previstas para a região de cena aberta de uso de drogas, conhecida como “Cracolândia”.

Leia a análise dos planos de governo dos demais candidatos à prefeitura de São Paulo

O plano de Boulos e da vice Marta Suplicy (PT) trata diretamente de segurança no programa “São Paulo Mais Segura”. Com o efetivo da GCM dobrado — em cerca de 14 mil agentes — o plano é que eles passem a atuar em áreas de maior incidência criminal. 

Boulos quer os guardas em pontos de ônibus, vias movimentadas e próximos aos centros comerciais. Outra promessa é que todas as escolas municipais tenham vigilância da guarda. As ações integram o “policiamento de proximidade” sugerido pela campanha psolista.

Leia mais: O guarda virou caveira: como a GCM se militarizou para exercer papel de polícia

Para Acácio Augusto, professor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Laboratório de Análise de Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASInTec), a proposta é problemática e pode resultar em mais encarceramento, sobretudo de negros e pobres. 

Acácio lembra que a proposta de polícia comunitária vem do programa “Tolerância Zero”, implementado em Nova York, nos Estados Unidos, na década de 1990. “É uma tentativa forçada, de cima para baixo, de impor uma relação entre a comunidade local e os policiais. No fundo, é forçar o cidadão a fazer o papel de polícia, afirma. Para o professor, esse tipo de policiamento transforma frequentemente o morador em delator — e reforça estigmas como os que consideram pobres e negros criminosos.

Leia plano de governo de Guilherme Boulos

No artigo “Tolerância Zero“, o professor de Direito Penal na Universidade de São Paulo (USP), Sérgio Salomão Shecaira, afirma que o programa americano resultou em encarceramento em massa. O texto foi publicado em 2009 pela Revista Internacional de Direito e Cidadania. 

Para Sérgio, a política de Tolerância Zero passou a reprimir todo tipo de desordem social, mesmo que não significasse crime. “Lavadores de para-brisas foram perseguidos. Grafiteiros foram presos. Mendigos e sem tetos foram reprimidos”, argumenta o artigo. 

O texto também cita que a polícia nova-iorquina ficava perto de escolas para “identificar alunos gazeteiros” e os denunciar aos pais e à direção. Prefeito de Nova York à época, Rudy Giuliani passou a divulgar a queda nos índices de criminalidade. Sérgio explica que outros fatores que contribuíram para essa redução foram ignorados por Giuliani. Ele fala da queda no desemprego impulsionada pela recuperação econômica e da exaustão no mercado de crack. E ressalta que cidades que não adotaram o modelo também tiveram quedas significativas nos índices de criminalidade.

Policialesco e repressivo

No programa Escola Segura, com a GCM na porta de escolas acompanhando a entrada e saída, Boulos também evoca a política americana de tolerância zero. O texto defende a presença dos guardas nesses períodos, “além de realizar policiamento de proximidade nos arredores durante os horários intermediários”. 

O pesquisador Acácio chama a atenção para o fato de que mesmo Boulos tenha contado com a consultoria de um ex-comandante da Rota na elaboração de seu programa de segurança: Alexandre Gasparian, que atuou na gestão Alckmin-Moraes no governo paulista. Para ele, o programa psolista é genérico e “não aponta soluções diversas, que não sejam policialescas e repressivas”.

A crítica é acompanhada por Adilson Paes de Souza, pesquisador em segurança pública e pós-doutorando em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Para ele, a segurança pública é peça-chave nesta campanha eleitoral. Não por acaso, tanto Boulos, Datena e Nunes quanto Tabata e Marçal apelam para o que chama de “fetichização do militarismo” — com propostas que aproximam a GCM da PM.

Ele ressalta que o plano de Boulos e desses outros candidatos falham até no caso de medidas comprovadamente eficazes, como o uso das câmeras corporais. Em nenhum deles, diz o especialista, fica claro se as câmeras seguirão o modelo de gravação ininterrupta ou o proposto por Tarcísio de Freitas (Republicanos), que permite ao policial desligar a gravação quando quiser

Em maio, o governo de Tarcísio lançou um edital com modelo de câmeras onde a filmagem só inicia quando acionada. “Eles não deixam claro (nos programas) e o silêncio diz muita coisa”, afirma.

Descentralização positiva

Já outras medidas tiveram uma avaliação mais positiva de especialistas. O plano de Boulos propõe a descentralização de vários serviços na cidade. Há propostas ligadas à segurança com esse viés, mas não só. Saúde, educação e empregos também são contemplados, com foco na qualidade de vida nas periferias.

Na segurança, um dos exemplos é a proposta de descentralizar bases de atendimento para mulheres vítimas de violência, expandindo o atendimento para regiões periféricas. Outra promessa é ampliar a patrulha guardiã Maria da Penha, feita pela GCM. Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, elogia a iniciativa. 

“A violência contra a mulher não é igual ao homicídio de homem, que está sempre concentrado em alguns bairros. Ela pode acontecer em qualquer lugar, então é interessante esse olhar para a descentralização de serviços”, diz.

Gabinete para a “cracolândia”

Para a região da “Cracolândia“, que aparece como prioridade no programa de Boulos, a promessa é criar um gabinete específico no primeiro dia de governo. No conjunto de propostas está prevista a criação de uma inspetoria de segurança urbana para abranger os bairros Campos Elíseos, Luz e Santa Efigênia. Esse equipamento seria responsável por abordagens sociais e atuaria com a polícia.

Boulos promete um acolhimento humanizado para pessoas em situação de rua. Os locais já usados para essa função devem ter banheiros ampliados e infraestrutura melhorada. A proposta fala na criação de um conselho gestor em cada unidade de acolhida, com a participação dos moradores e de representantes da sociedade civil.

A prefeitura também pretende capacitar pessoas em situação de rua e oferecer a elas trabalho em obras públicas.

Assine a Newsletter da Ponte! É de graça

Apesar de considerar o plano de Boulos o mais completo, a ativista e advogada Dina Alves também diz que as propostas para a região no mais das vezes repetem o que já está sendo feito na gestão atual. 

“Ainda que apareçam propostas que, aparentemente, oferecem tratamento multidisciplinar, a segurança pública aparece nestas propostas como tábua da salvação. Ou seja, Cracolândia e Direito Penal são sinônimos. Isso revela que não há uma proposta de cuidado, atenção integral e saúde pública”, afirma.

Outro lado

Após a publicação desta reportagem, a equipe de campanha de Guilherme Boulos enviou nota à redação da Ponte, afirmando que, apesar de não constar do plano de governo, o candidato assumiu em diversas ocasiões o compromisso público de usar o modelo de gravação ininterrupto para as câmeras corporais dos GCMs — diferente daquele adotado pela gestão Tarcísio de Freitas para a Polícia Militar, que permite ao policial desligar o aparelho.

A assessoria do candidato também afirma que o modelo de policiamento de proximidade proposto em seu programa prevê a guarda como uma instituição “norteada pelos princípios do policiamento comunitário e da participação e controle popular”. E que reduzir o policiamento comunitário e de proximidade à política de “Tolerância Zero” nova-iorquina é ignorar o conceito original desenvolvido ainda no século 19, na Inglaterra, que previa uma ação policial baseada “em métodos de resolução de conflitos sem o uso da força”.

Sobre a presença da GCM na porta das escolas, a campanha diz que essa ação pressupõe diálogo e protagonismo da guarda, “em detrimento de operações delegadas e segurança privada, sem vínculo com os territórios, que predominam na atual gestão”.

Leia a nota na íntegra:

O plano de governo da chapa de Guilherme Boulos e Marta Suplicy traz 119 diretrizes gerais distribuídas em 27 áreas de competência da Prefeitura; 5 tratam da Segurança Urbana. Detalhes complementares têm sido apresentados pelo candidato em entrevistas e debates.

No que diz respeito ao modelo de gravação das câmeras corporais da GCM, por exemplo, Boulos já assumiu o compromisso público de que vai usar a gravação ininterrupta, diferentemente do atual modelo do governo do estado. Assim, a coordenação da campanha e o Grupo de Trabalho de Segurança se propõem a esclarecer este e outros pontos citados em matéria da Ponte.org.

O modelo de atuação previsto para a GCM de São Paulo se baseia no Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei 13.022/2014, uma das legislações de segurança mais progressistas do pais), que prevê a guarda como uma instituição norteada pelos princípios do policiamento comunitário e da participação e controle popular, com a previsão de realizar patrulhamento preventivo. Reduzir o policiamento comunitário e de proximidade à política de “Tolerância Zero” adotada em Nova York é ignorar o conceito original desenvolvido ainda no século 19, na Inglaterra, que previa uma ação policial baseada em métodos de resolução de conflitos sem o uso da força, visando a redução dos índices de criminalidade antes que ela ocorresse.

A Ronda Escolar e o papel da GCM como um todo pressupõe diálogo direto com a comunidade e o protagonismo da guarda em detrimento de operações delegadas e segurança privada sem vínculo com os territórios que predominam na atual gestão.

Importante destacar ainda que o programa de governo trata de soluções transversais que, em sua essência, preveem a descentralização da gestão com participação popular, a redução de distâncias, levando oportunidades e serviços onde hoje não existem, e, sobretudo, mirando a redução das desigualdades, incluindo o combate ao racismo, descrito em área específica do programa.

*Reportagem atualizada em 10/9/2024, às 14h50, para incluir a nota da assessoria de Guilherme Boulos.

Leia também

Datena quer mais fuzis para GCM e tolerância zero com drogas

Com ‘ideias de coach’, Marçal quer GCM no papel de polícia

Nunes defende políticas que aumentaram ‘Cracolândias’ e promete cidade mais vigiada

Tabata quer GCM no papel de Abin municipal

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude
Inscrever-se
Notifique me de
0 Comentários
Mais antigo
Mais recente Mais votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários

mais lidas

0
Deixe seu comentáriox