Daniele Campos de Oliveira, 32 anos, foi com o irmão até a delegacia e acabou presa; família defende inocência e luta por justiça
A vida da atendente Daniele Campos de Oliveira, 32 anos, parou em novembro de 2019, quando ela foi levada de casa, no Jardim Guarujá, periferia da zona sul da cidade de São Paulo, para ser detida por um crime, ocorrido cinco anos antes, que a sua família garante que ela não cometeu.
Em 15 de novembro de 2019, Daniele foi levada até o 47º DP (Capão Redondo), mesma delegacia que, anos antes, ela entrou, por vontade própria, para acompanhar um de seus irmãos, que foi chamado ali porque uma motocicleta que estava em seu nome havia sido usada em um roubo. Daniele foi condenada a 5 anos e 4 meses pelo crime.
Assim que avistaram Daniele, os policiais civis imediatamente detectaram que ela tinha características semelhantes às descritas pela vítima e pela testemunha de acusação: era negra e tinha cabelo de kanekalon, uma fibra sintética japonesa comumente usada para alongamento de cabelos com tranças, como box braids ou crochet braids.
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Os policiais, então, perguntaram se podiam fotografar Daniele, já que ela parecia muito a pessoa descrita pela vítima e pela testemunha, ambas brancas. Sem imaginar o que estaria para vir, Daniele aceitou na hora. Mas, para sua surpresa, foi reconhecida por ambas as mulheres como autora do roubo de uma bolsa que acontecera na madrugada de 11 de maio de 2014 na rua Henrique San Midlin, nº 600, no Capão Redondo, também na zona sul.
O boletim de ocorrência, elaborado no 47º DP pelo delegado Nilo Farias Hellmeister Junior, trazia a descrição dos quatro suspeitos, dois homens e duas mulheres, de realizar o roubo. A primeira pessoa descrita pelas vítimas era uma mulher negra, com cabelos pretos de kanekalon e com tererês (pedrinhas artesanais), magra, de aproximadamente 17 anos. A altura dessa suspeita era de 1,62 m.
A outra mulher suspeita de efetuar o roubo, era branca, de cabelo liso tingido de vermelho, com 1,64 m e usava capacete. Os dois homens, que seriam os motoristas das duas motos usadas no crime, eram negros: um magro e um forte, da mesma altura, por volta de 1,70 m. O mais magro, aparentava ter 17 anos e também estava de capacete. O forte, aparentava 24 anos, usava capacete e portava uma arma de fogo.
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O documento foi feito apenas no dia 13 de maio, dois dias depois do crime. As vítimas também descreveram uma das motos usadas no roubo: uma Honda CG 125 Ks vermelha.
A moto foi rapidamente localizada pelos policiais. O veículo estava no nome de Ailton Campos de Oliveira, um dos irmãos de Daniele. Em 23 de junho de 2014, quando foi ao DP acompanhado da irmã, Ailton declarou que havia vendido a moto para o primo, William Barreto de Oliveira, que, por sua vez, negou saber do crime.
Os primos, Ailton e William, também foram fotografados e submetidos ao reconhecimento das vítimas, que disseram que não eram eles os assaltantes. Daniele foi reconhecida com “100% de certeza” no dia 26 de junho daquele ano.
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Enquanto os anos passavam e Daniele estava em liberdade, sem receber as informações de seus defensores à época, o processo caminhava para a sua condenação. Em abril de 2016, o Ministério Público de São Paulo ofereceu denúncia e decretou sua prisão preventiva. Seis meses depois, em outubro, o juiz Helio Narvaez, da 8ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda, decidiu que havia indícios de autoria e materialidade da participação de Daniele no crime.
A primeira audiência do caso foi marcada para março de 2017. Como a testemunha de acusação não compareceu, uma nova data foi estipulada. Em abril de 2017, a vítima, a testemunha de acusação, Daniele, acusada pelo crime, e Aílton, como testemunha de defesa, foram ouvidos em juízo.
Na ocasião, Daniele negou participação no roubo e afirmou que, no momento do crime, estava em casa, a 2 km de distância. No primeiro depoimento, na delegacia, Aílton havia dito que estava em casa com a irmã naquela noite. Em juízo, ele mudou sua versão: ele estava em uma festa, mas Daniele permaneceu em casa.
Em entrevista à Ponte, outro irmão de Daniele, Paulo Campos de Oliveira, 36 anos, confirma que a irmã não saiu de casa naquela noite. “Ela não saía de casa, não gostava de balada e tudo mais. O namorado dela vinha visitar ela e ela ia na casa do namorado. Só saía para comprar o cigarrinho na padaria. Uma pessoa muito boa, nem sei como está sendo para ela ficar naquele inferno”, lamenta.
No dia do crime, Daniele saiu para trabalhar às 5h30. “Ela entrava às 7h no trabalho, que fica no centro da cidade, e como ia trabalhar de ônibus, precisava sair bem cedo”, completa Paulo.
Daniele está detida na Penitenciária Feminina do Butantã, na zona oeste da cidade de São Paulo. Desde o momento em que foi presa, a vida da sua família virou de pernas para o ar.
“Minha mãe está arrasada, estamos todos arrasados. A pessoa estar presa injustamente, por uma coisa que não cometeu. Não sei o que acontece com a nossa Justiça. Não é porque é a minha irmã não, mas ela é um amor de pessoa”, lamenta Paulo.
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A dona de casa Andréia dos Anjos Silva, 34 anos, melhor amiga e responsável por uma mobilização no Facebook pedindo justiça por Daniele, critica a prisão.
“Eu não entendo de advocacia, mas esse caso tem muitas falhas. Como uma testemunha fala que reconheceu a pessoa pelo cabelo e pela cor? Isso não existe, isso é puro racismo. São coisas que a gente não pode deixar passar. Somos negros, pobres, mas um pouco de conhecimento a gente tem”, aponta Andréia.
Ela conta que conheceu Daniele ainda no ensino médio, quanto estudaram juntas há 20 anos. “A Daniele para mim é como se fosse uma irmã mais nova. Eu tinha acabado de chegar na escola e a Daniele veio com o jeitinho de amiga doida se apresentando, apresentando as meninas da turma. Ali começou a nossa amizade”.
“Quando ela foi presa, foi um susto para todo mundo. Ela tinha me contado que foi na delegacia acompanhar o irmão, porque ele não estava muito bem de saúde. Infelizmente já se passaram 5 meses [da prisão] e ela está lá ainda. Até o fim a gente vai lutar por ela”, lamenta.
Revisão criminal
Atualmente, o processo contra Daniele está em fase de revisão criminal, última tentativa que o advogado Fernando Marin Hernandez Cosialls, que cuida da defesa dela, pode fazer para tentar reverter a situação da jovem desde que assumiu o caso. O processo de Daniele já havia sido transitado em julgado no Tribunal de Justiça de São Paulo quando a família acionou o novo advogado, em janeiro deste ano.
“A revisão criminal é para anular tudo o que foi feito até agora. Para isso, vamos apresentar provas novas, como o depoimento do primo dela [William] que resolveu confessar, dizer que foi ele e que ela não estava no ato”, explica Cosialls.
Mas, por conta da pandemia do coronavírus, a nova audiência ainda não aconteceu e William não foi ouvido pelo juiz Helio Narvaez. Pensando no avanço da doença nos presídios brasileiros, o advogado também solicitou a prisão domiciliar para Daniele, mas ainda não obteve retorno da Justiça paulista.
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O reconhecimento irregular é um dos pontos que a defesa tem abordado no processo. “Só ela foi reconhecida e isso aconteceu por acaso. Como ela foi acompanhar o irmão, os policiais disseram que ela parecia com a descrição das vítimas: ‘você é negra, tem esse tipo de cabelo kanekalon, você se incomodaria de tirar uma foto para mostrar para as vítimas?’. E ela, com a tranquilidade de não ter participado, autorizou”, avalia o defensor.
“O primo dela ficou tranquilo, porque sabia que ela não tinha participado e seria absolvida. Mas ela acabou condenada”, detalha o defensor, ao comentar o fato de Willian, que assumiu o crime posteriormente, não ter sido reconhecido pelas vítimas.
‘Efeito dominó de erros’
Para o advogado criminalista Flavio Campos, integrante do Educafro, o caso de Daniele é um efeito dominó de erros. “Quem pega o caso depois, valida os erros da etapa anterior e finge que tá tudo bem”, aponta.
O primeiro erro, afirma Campos, foi o reconhecimento. “A origem do processo criou todas essas nulidades que temos até hoje. Indo até a delegacia na condição de acompanhante, ela saiu de lá condenada porque os policiais cismaram que ela tinha as características de uma das suspeitas. Não acharam que ela precisava se explicar, já que, no processo, não tem interrogatório dela”.
Para Campos, a ação dos policiais foi enviesada: “Colocaram essas fotografias a disposição da vítima e da testemunha, porque o próprio delegado colocou no relatório que ‘constataram as características físicas’ e chegaram na conclusão de que poderia ser ela”.
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“O delegado não tinha nenhum elemento científico para se basear nisso. Pelo contrário. Se a gente fosse pensar um pouco na origem dessa prova, não faz sentido nenhum a suspeita ir até a delegacia sem ser chamada”, avalia.
A ação na delegacia só poderia ter validade, explica o jurista, se outra pessoa tivesse delatado que Daniele participou do crime. “Sem isso, a investigação não poderia correr com base no cabelo. Aí vem a covardia. Eles pensam assim: ‘eu não posso presumir simplesmente pela aparência, então vou submeter ao reconhecimento’. É bem cruel”.
O caso de Daniele, argumenta Campos, é muito parecido com o caso de Barbara Querino, a Babiy, dançarina negra que foi condenada sem provas por ter o cabelo igual da pessoa que teria cometido dois roubos. À época, Babiy foi acusada de integrar uma quadrilha de roubo de carros com o irmão.
“É a mesma ideia que carregou o caso da Barbara. Como estava ‘tudo em família’, o B.O. tinha que ser assinado em família. Por um milagre, nesse caso, as vítimas não reconheceram os rapazes, se apegaram só a Daniele pela questão do cabelo”.
Quem também critica o reconhecimento é a advogada criminalista Maira Pinheiro, integrante da Rede Feminista de Juristas (deFEMde). Ela aponta que o reconhecimento feito no 47º DP descumpriu as determinações do artigo 266 do Código de Processo Penal.
“Essa pessoa deveria ter sido perfilada do lado de outras com características físicas similares. Nesse caso, em particular, isso seria muito importante, porque os elementos que a vítima usou para destingir a pessoa que ela acha que praticou esse roubo são elementos altamente racializados. É um cabelo usado fundamentalmente por pessoas negras e ela identificou que era uma mulher negra”, argumenta Pinheiro.
A jurista lembra que evidências científicas indicam que, em grupos raciais distintos, a dificuldade do reconhecimento é maior. “Uma pessoa branca tende a errar mais em um procedimento de reconhecimento se ela estiver reconhecendo uma pessoa negra. Nesse caso, muito possivelmente, se colocasse várias mulheres negras com o mesmo tipo de cabelo, a gente não teria um resultado positivo”.
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Questionar o reconhecimento, explica Pinheiro, não é discutir se a vítima foi honesta ou não. É, na realidade, indicar as circunstâncias que o procedimento foi feito.
“Estamos falando de uma pessoa que foi abordada de noite, que estava assustada, que foi abordada por uma pessoa que usava um capacete. Mesmo que ela afirme com 100% de certeza, o que é bastante certeza para um ato que aconteceu um mês depois e uma pessoa que ela viu por segundos”, avalia.
Para a advogada, a absolvição por insuficiência de autoria é o caminho certo. “Em um caso como esse, a denúncia não deveria sequer ser recebida. O problema é que o nosso Judiciário lida com muita permissividade com as subversões de reconhecimento de pessoas e isso acaba produzindo condenações injustas com muita frequência”, finaliza.
Outro lado
A reportagem procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça de São Paulo questionando os trâmites do processo que levou à prisão de Daniele.
Em nota, a SSP-SP informa que a Polícia Civil indiciou Daniele depois da “análise de todo conjunto probatório levantado no inquérito, sendo ele composto pelas declarações dos envolvidos, reconhecimento de objeto e pelo reconhecimento seguro das duas partes que presenciaram a ação”. A pasta não comentou o reconhecimento irregular, apontado como problemático pela defesa da acusada e por especialistas ouvidos pela Ponte.
“O pedido de prisão da suspeito foi feito em fevereiro de 2016 e, em 2019, sua prisão foi cumprida após decisão judicial”, conclui a nota.
Até o momento da publicação, o MP-SP não se manifestou.
O TJ-SP informou que “não se posiciona em relação a nenhum ato processual”. “Se houve ou não materialidade suficiente para a denúncia e a condenação, nos autos há a fundamentação do magistrado. Os juízes têm independência em todos os atos processuais e há, na legislação vigente, os recursos próprios para que as partes recorram das decisões”, pontuou, em nota.
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