Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio já denuncia mortes e prisões ilegais nas periferias, e criou canal “para mostrar que combate à violência continua”
O Brasil parou durante a pandemia do coronavírus. O que não parou foram as violações de direitos e os assassinatos de jovens negros e pobres nas periferias do país. Pensando nisso, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio criou a campanha “Fala Quebrada” para reunir denúncias de ações policiais violentas, além de outras situações de desrespeito aos direitos básicos fundamentais.
A campanha não é uma novidade para os integrantes e parceiros da Rede, que já realiza esse trabalho há seis anos. Mas foi uma alternativa criada para não perder nenhuma das denúncias recebidas pelo grupo, que aumentaram bastante nos dois últimos meses, e com a quarentena, muitos do articuladores não estão conseguindo fazer o trabalho de corpo a corpo nos territórios. No formulário disponibilizado pela Rede, é possível fazer a denúncia anônima e eles solicitam alguns dados para ajudar no levantamento de informações, como por exemplo quem cometeu a violência (PM, GCM, agente prisional, policial civil), localização e registro de imagens, se houver.
As denúncias podem ser feitas por este formulário
A Rede se constitui como um grupo com 45 articuladores em vários territórios. Além das periferias da cidade de São Paulo, o grupo atua em Bauru, Osasco, São José dos Campos, Limeira e no ABC Paulista. O objetivo é que esses articuladores possam ser a voz dessas quebradas, criando laços com os moradores para construir confiança.
A psicóloga Marisa Fefferman, integrante de Rede, explica que o grupo costuma receber majoritariamente dois tipos de denúncias: mortes e ameaças.
“Os meninos que, de alguma forma, estão junto dos outros meninos [assassinados] têm recebido várias ameaças. Ou porque moram do lado ou porque frequentam o mesmo lugar. O que a gente está vendo é que esses policiais estão ameaçando esses meninos de uma forma absurda”, argumenta.
Antes da campanha, o celular de Marisa era um dos pontos que concentravam as mensagens trazendo relatos de violações de direitos nas periferias, principalmente da capital paulista.
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Um dos casos que a Rede acompanha, e que foi noticiado pela Ponte, é a chacina em Sapopemba, no extremo leste da cidade de São Paulo, em 30 de setembro de 2019, quando três pessoas foram mortas. Na ocasião, os moradores do local foram ameaçados por PMs.
“A informação de uma morte se explicita como uma morte. Agora a situação de uma ameaça fica no ar. Então as pessoas nos mandam e as informações ficam comigo, porque não tem como registrá-las e não tem confiança para falar sobre isso”, explica Marisa.
O isolamento social durante a pandemia, conta a psicóloga, tem mostrado como a violência atua nas periferias: os bailes funk são justificativas para várias mortes.
“A pandemia explicita a condição da desigualdade social, explicita toda essa questão de uma sociedade violenta. Com essa questão da quarentena, a gente passa a ter diversas denúncias, filmagens de como a polícia atua, como ela vai ameaçando os meninos porque eles estão nas ruas”, elenca a articuladora da Rede.
“Você passa a justificar uma situação já violenta como uma forma de garantir a vida do outro”, argumenta.
Para Marisa, a contenção do isolamento social não deveria ser um trabalho das polícias. “Se a gente tivesse uma política pública que tivesse o pessoal da educação, a gente trabalharia isso de outra forma. Isso nunca foi trabalhado, sempre foi trabalhado na perspectiva da segurança pública, então é a lógica que se reforça”.
Ela aponta para a necessidade de complexificar adequadamente as razões pelas quais algumas populações são mais vulneráveis à violência do que outras e trabalhar as várias frentes da questão: acesso à educação, saúde, assistência social. “A política maior na periferia é a da segurança pública. E a gente tem recebido mais denúncias nesses dois meses, por isso a gente criou a campanha”, aponta.
Quando um caso chega para a Rede, o primeiro passo é contatar os familiares das vítimas, principalmente para mostrar que essas pessoas não estão sozinhas, que Marisa define de “processo de entrelaçar”. “É estar junto na questão afetiva e nos encaminhamentos, que são colher as provas que os familiares têm. Vemos como essa situação pode se transformar em algo maior do que só a denúncia”, detalha.
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Depois, o trabalho consiste em levar esses casos para a Ouvidoria das Polícias e para o MP-SP (Ministério Público de São Paulo). “Lá, esse caso sai com o nome da pessoa e com o nome da Rede de Proteção, isso quer dizer que, de novo, a pessoa não está sozinha, porque vamos estar acompanhando todo o processo e cobrando que o ouvidor trabalhe com isso”, conta.
“Na maioria desses casos, cobramos que o ouvidor mande para o corregedor geral da polícia, não para as bases, porque sabemos que se esse caso volta para a região existe um corporativismo e isso não possibilita que nada aconteça”, aponta Marisa.
No MP-SP, há quase dois anos, a atuação da Rede é discutir o controle externo das polícias. “Geralmente, conseguimos um promotor especial para acompanhá-los. Isso já aconteceu em alguns casos, como o da chacina de Sapopemba”.
As prisões injustas também são outra linha de denúncias recebidas pela Rede, que, para Marisa, fazem parte do genocídio da população preta, periférica e pobre. “Quando a gente tem essas pessoas nos territórios, sabemos na mesma hora que esses crimes acontecem e vamos até a região”.
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Em outras palavras, o trabalho da Rede é mapear as denúncias e interferir na lógica de uma política de segurança pública para que ela deixe de representar mortes e valorize o bem maior, que é a vida. “As mortes são invisíveis e as ameaças muito mais. Existe uma preocupação de denunciar, mas isso não se encerra. A grande preocupação é de mudar as políticas públicas, porque cansamos de denúncia”, conclui.