Carolina Maria de Jesus, a escritora que ainda precisa ser conhecida e reconhecida

    Há 106 anos, nascia a escritora que, como mulher negra, foi silenciada e resistiu; Vera Eunice se dedica a preservar sua memória: “Minha mãe pediu que eu não deixasse ela morrer”

    Carolina Maria de Jesus tem inúmeros romances e poemas inéditos | Foto: Acervo Audálio Dantas

    Há 106 anos, nascia Carolina Maria de Jesus. A escritora, que ganhou o mundo com o seu livro “Quarto de despejo: Diário de uma Favelada”, faleceu em 1977, mas muitos dos seus trabalhos ainda não foram publicados.

    Mulher, negra e moradora da favela do Canindé, extinta comunidade da zona norte da cidade de São Paulo, Carolina nasceu em Sacramento, em Minas Gerais, em 1914.

    O dia 14 de março, data de seu aniversário, muitos anos mais tarde também marcaria a história de uma mulher com características muito semelhantes: Marielle Franco, que há exatos dois anos foi assassinada por ousar ser quem é. Assim como ousou e foi Carolina Maria de Jesus. Por um hiato de tempo, ambas imprimiram sua marca na história da resistência negra.

    Carolina de Jesus ficou conhecida depois de encontrar o jornalista Audálio Dantas, em 1958, que a ajudou a publicar o ‘Quarto de despejo’, publicado em 1960. Em poucos meses, a obra bateu a marca de 100 mil exemplares e foi traduzido para 15 idiomas. Na época, o jornalista trabalhava na Folha da Manhã, do grupo Folha, e publicou uma matéria sobre Carolina, com grande repercussão.

    Carolina foi presa injustamente duas vezes. Na primeira, foi acusada por policiais de exercer bruxaria por estar lendo um livro espírita. Depois da segunda prisão, quando foi acusada de roubar o dinheiro de um padre, a escritora migrou de Minas Gerais para São Paulo a pé.

    Ela chegou em São Paulo quando a cidade estava em processo de modernização e viu as primeiras favelas aparecendo. Construiu o seu barraco e se alojou na favela do Canindé em 1947. Trabalhava como catadora de papéis para sustentar a si e aos três filhos que criava sozinha. Depois de publicar o primeiro livro, mudou para Santana, também na zona norte.

    Ainda na infância, descobriu o amor pela escrita. Os inéditos de Carolina Maria de Jesus vão muito além dos seus diários. Romances, poemas, provérbios e peças teatrais estão entre esses materiais que ainda não chegaram aos leitores.

    Em vida, Carolina de Jesus publicou 4 livros. Em 1961, publicou ‘Casa de alvenaria: Diário de uma ex-favelada’ e, dois anos depois, em 1963, publicou ‘Pedaços de fome’ e ‘Provérbios’.

    Em 1969, se mudou para um pequeno sítio em Parelheiros, periferia da zona sul da capital paulista, onde morou o resto da vida. Depois de sua morte, mais 5 livros foram publicados. Muitos dos seus romances permanecem inéditos.

    Em entrevista à Ponte, a professora Vera Eunice de Jesus Lima, 66 anos, filha de Carolina de Jesus, conta que a mãe não queria ser lembrada apenas pelos seus diários e que, até hoje, ainda está descobrindo quem foi, de fato, sua mãe.

    “Eu vivi com a minha mãe por 22 anos e parece que eu não a conheci. Sempre me pergunto ‘quem era essa mulher, meu Deus do céu?'”, brinca a filha. “Ela tinha uma inteligência única. Como Audálio Dantas dizia, nunca mais haverá uma Carolina Maria de Jesus”.

    “Eu fui assistir uma peça teatral há um tempo e aí no fim me perguntaram se eu sabia quem escreveu. Eu ri demais na peça, era muito engraçada, e me falaram que o texto era da minha mãe. Ela tem muitos romances escritos. Os poemas dela também são muito gostosos de ler”, explica Vera.

    Carolina Maria de Jesus autografando para Audálio Dantas o livro ‘Quarto de despejo’ ao lado da filha Vera | Foto: Acervo Audálio Dantas

    Vera conta que está atrás dos inéditos da mãe. Muitos deles estão em Sacramento. “A minha saga hoje é montar o acervo dela, deixar tudo em um lugar só. Quero que as pessoas vejam, tenham acesso, saibam quem foi Carolina Maria de Jesus. Não quero que as coisas dela fiquem em uma gaveta”, conta.

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    A tarefa de levar o legado de Carolina de Jesus pelo mundo foi destinada para Vera pela própria mãe, que no leito de morte pediu que a filha não deixasse com que ela desaparecesse. Era ela quem corrigia os textos de Carolina, ainda na infância.

    “Quando minha mãe morreu, ela me entregou uma carta onde ela pedia para eu propagar o nome dela, não deixar ela morrer. Pediu para eu ir atrás de alguns livros que ela sabia que estavam com outras pessoas”, conta Vera.

    “Minha mãe nunca quis meninas, ela sempre falava isso. Mas ela foi percebendo que era eu quem iria seguir com as coisas dela”, explica.

    A professora fala da mãe com saudade e admiração. “Apesar de a gente ter passado fome, ela era uma mãe presente, que procurava passar cultura para gente. Eu aprendi a ler com ela. Ela trazia muita arte para gente, tocávamos violão, cantávamos muito”, relembra.

    ‘Ela representa o silenciamento das mulheres negras’

    A pesquisadora Fernanda Rodrigues de Miranda, 34 anos, doutora em Letras pela USP (Universidade de São Paulo), que apresentou uma análise sobre a obra de Carolina de Jesus como dissertação do mestrado, conta um pouco desses trabalhos inéditos da escritora mineira.

    Fernanda conta que o romance ‘Pedaços de fome’, publicado por Carolina de Jesus em 1963, é o terceiro romance de autoras negras publicado no Brasil. “Antes dela temos um da Marina Firmina dos Reis e um da Ruth Guimarães”, explica a pesquisadora à Ponte.

    Apesar de estudar a autora há mais de 7 anos, desde que entregou o seu mestrado em 2013, Fernanda afirma que é difícil responder quem foi Carolina Maria de Jesus. A complexidade da obra de Carolina, explica Fernanda, não pode ser colocada em apenas uma caixinha.

    “Carolina é uma escritora que a gente ainda está descobrindo. Ela ficou muito conhecida pelo personagem da favelada que escreve, mas o projeto literário dela envolve uma escrita multifacetada”, detalha Miranda.

    “A Carolina era debochada, irônica e extremamente sarcástica, com um texto muito lírico, poético. Tem uma série de traços da escrita dela que fica apagado porque a gente trabalha sempre nessa órbita da favelada que escreve”, continua a pesquisadora.

    A escritora rompeu muitas fronteiras dentro dos limites que as pessoas deram para o seu trabalho. “Quando ela surge, na década de 1960, ela está falando em um momento que a mulher negra era muito invisibilizada dentro do corpo literário, dentro da construção literária. Então antes da Carolina, a gente tem poucas que tinham chegado em um lugar de visibilidade”, explica.

    Para a pesquisadora, ainda hoje, passados 43 anos de sua morte, Carolina de Jesus ainda sofre o apagamento que atinge a voz da mulher negra de forma sistêmica.

    “A gente pode pensar a Carolina nesse contexto da mulher negra como uma mulher que sofreu preconceito de todos os lados, em todos os níveis e em todos os sentidos e que, ainda hoje, não conseguiu ter o seu projeto literário conhecido e reconhecido”.

    “Nós ainda não conhecemos de fato a produção da Carolina que é imensa. Ela tem 6 ou 7 romances escritos que não foram publicados. Se esses romances fossem publicados, já alteraria totalmente a condição minoritária em termos de quantidades de obras publicadas de mulheres negras”, aponta Miranda.

    Fernanda, que foi inspirada pela escritora a se tornar pesquisadora, explica que as publicações de Carolina de Jesus têm muita interferência de quem edita.

    “A gente é obrigado a ficar dentro dos campos dos fragmentos porque tem muita edição nos textos dela. Eu fui percebendo que pra eu conseguir alcançar a Carolina, eu tinha que ser uma super pesquisadora. Foi aí que eu decidi fazer o doutorado. Hoje me sinto pronta, de fato, para mergulhar na Carolina”, finaliza.

    ‘Não tem como falar de Audálio sem falar em Carolina e vice-versa’

    A jornalista Vanira Kunc, 62 anos, relembra a história de Carolina de Jesus pelos olhos do marido Audálio Dantas, que faleceu em 30 de maio de 2018. Vanira conta à Ponte que não conheceu a escritora em vida, mas se aproximou muito de sua filha, Vera Eunice. “Me apaixonei primeiro pela Vera e depois pela Carolina”, confessa.

    Muitos originais de Carolina de Jesus ficaram com Audálio e agora estão com Vanira. “Audálio doou para a Biblioteca Nacional, desde conversas até originais. Ele deu muitas entrevistas e palestras para contar como foi conviver com a Carolina”.

    Audálio Dantas conheceu Carolina de Jesus quando era repórter e foi fazer uma matéria na favela do Canindé. Chegando lá, ouviu Carolina falando sobre um livro que estava escrevendo.

    Carolina de Jesus caminhando ao lado de Audálio Dantas na favela do Canindé na década de 1950 | Foto: Acervo Audálio Dantas

    “A Vera estava em um evento em que a Conceição Evaristo disse mais ou menos essa frase: ‘o Audálio não descobriu a Carolina, a Carolina se mostrou para o Audálio'”, relembra a jornalista.

    “A gente não fala em Audálio sem falar de Carolina e a gente não fala de Carolina sem falar de Audálio. A morte dele não pode ser a morte dela. Tem pessoas que estudaram a Carolina, mas que teve a vivência que ele tinha, de lembrar coisas que aconteceram, não tem muitas”, completa Vanira.

    A jornalista conta que vai produzir um livro sobre a infância de Carolina de Jesus com o auxílio de Vera Eunice. A inspiração, conta Vanira, são os livros que Audálio escreveu sobre outros importantes nomes da literatura brasileira, como Graciliano Ramos, Mauricio de Souza, Ziraldo e Ruth Rocha.

    Vera Eunice, filha de Carolina de Jesus, à esq., ao lado de Audálio Dantas, no meio, e de Marisa, neta de Carolina | Foto: arquivo pessoal

    Durante todos esses anos, as duas famílias, Dantas e Jesus, mantiveram laços. “Quando conheci a Vera, ela já era adulta. A Carolina tinha uma admiração muito grande pela Vera e sonhava que ela fosse professora. Nós mantemos conversa com frequência. Quando o Audálio estava doente, em todos os prêmios que o Audálio ganhava, a Vera e a família iam. Alimentamos essa relação. Mesmo com a morte do Audálio, a gente continua conectada”, finaliza Vanira.

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    […] um desses pontos, os organizadores contam histórias de personagens negros, como Luiz Gama e Carolina Maria de Jesus, e conta sobre a importância dos locais para a história […]

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