Em entrevista durante Festival 3i, repórter fala sobre o poder transformador de uma reportagem e chama de ‘covardia’ ataque de Jair Bolsonaro contra sua filha
O jornalista e escritor Chico Otávio, 57 anos, nunca imaginou cobrir segurança pública. Repórter de política do jornal O Globo, em 14 de março de 2018 isso mudou: com o assassinato da vereadora Marielle Franco, Chico, ao lado da colega Vera Araújo, passou a acompanhar de perto as investigações desse crime que chocou o país – e o mundo.
Apesar dos desdobramentos publicados nos últimos dias pelo UOL, o caso Marielle ainda não tem um desfecho.
Professor da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica), Chico já trabalhou como repórter nos jornais Última Hora (RJ), Jornal dos Sports (RJ) e O Estado de S.Paulo (sucursal Rio). Também já foi vice-presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e tem dois livros publicados: “Os porões da contravenção”, com Aloy Jupiara (Record 2015), e “Você foi enganado”, com Cristina Tardáguila (Intrínseca 2018). Ganhou o Prêmio Esso cinco vezes.
Um dos participantes da segunda edição do Festival 3i, que rolou entre os dias 18 e 20 de outubro na Fundição Progresso, no centro do Rio, Chico Otávio conversou com a Ponte e contou detalhes sobre a cobertura do caso Marielle e comentou o episódio em que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) usou o nome de Constança Rezende, filha de Chico, para atacar o jornalista.
“A reportagem tem um poder transformador. No caso Marielle, a publicação da entrevista com o Orlando Curicica derrubou toda a linha investigativa até ali. Olha a potência do jornalismo! Isso é estimulante, essa contribuição que a gente dá para a sociedade”, explica o experiente repórter.
Confira a entrevista completa:
Ponte – A Vera Araújo falou que o caso Marielle abriu as portas do inferno. Por que ela fez essa declaração?
Chico Otávio – A milícia, até então, estava sendo coberta de uma maneira muito pontual. Quando aparecia uma operação, eventualmente uma prisão, o envolvimento de miliciano no mundo na política era objeto de matéria. Mas isso nunca foi conectado e nunca foi estabelecido uma linha comum com todos esses casos. Marielle permitiu isso. E mais: essa operação “Os Intocáveis”, que pela primeira vez tocou na milícia mais tradicional, mais antiga e mais temida do Rio de Janeiro, que é a Rio das Pedras [zona oeste do Rio], é um subproduto do caso Marielle, derivou da investigação da Marielle. E o jornalismo foi atrás disso. Então, essa coisa de abrir as portas do inferno vem disso. É mergulhar mais a fundo nesse drama epidêmico que o Rio de Janeiro vem vivendo que é a expansão da milícia.
Ponte – Como está sendo essa longa cobertura do caso Marielle?
Chico – A gente falou muito de tecnologia hoje e a principal prova contra os acusados [de matar Marielle] vem do Google. A Polícia e o Ministério Público conseguiram quebrar o sigilo digital do Ronnie Lessa e concluíram que ele pesquisou os passos da Marielle, inclusive na véspera do assassinato, querendo saber onde ela morava, os hábitos dela e tal. Então veio do mundo digital a prova colhida contra o criminoso do caso Marielle. É um caso em andamento, a grande polêmica é se houve mandantes. Se houve, quem é esse mandante? É uma investigação cheia de reviravoltas. Uma delas foi promovida pela ex-Procuradora Geral da República [Raquel Dodge], que pediu, no dia em que estava saindo, a federalização do caso. É uma questão que ainda vai ser examinada pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça] e, de novo, se for autorizado já muda tudo e é mais uma reviravolta que vai acontecer [o mais recente desdobramento do caso é Domingos Brazão, ex-conselheiro do TCE-RJ e ex-deputado estadual, ser apontado como mentor do crime, em investigação da PGR, em reportagem exclusiva publicada pelo UOL].
Ponte – Como você entrou na cobertura do caso?
Chico – Eu sempre fui repórter de política, estava muito voltado para a Lava-Jato aqui no Rio de Janeiro, principalmente sobre o Cabral [Sérgio Cabral, ex-governador do RJ] e o Eduardo Cunha [ex-deputado federal], e a Marielle me fez mergulhar nesse mundo. Ainda bem que a Vera estava ali para me dar a mão, senão eu ia ficar completamente perdido. É uma grande areia movediça, você não sabe exatamente onde está pisando. O Orlando Curicica, miliciano que tava sendo acusado de ter providenciado a execução de Marielle e depois se provou que aquilo tudo era uma trama, apontou o dedo para Delegacia de Homicídios e disse para não confiar, porque a contravenção paga propina para DH não investigar nada. Você não sabe para onde vai.
Ponte – Qual a diferença entre cobrir política e milícia?
Chico – Eu fui muito treinado para entender e desmontar esses grandes esquemas de corrupção da classe política. Um dos personagens mais presentes nas minhas reportagens foi Eduardo Cunha, que é apontado como o malvado favorito. Foi muito difícil tentar entender o esquema de lavagem desses caras. Quando você migra pra milícia fica muito mais fácil porque é tosco, é rudimentar o esquema de lavagem deles. Ao mesmo tempo que isso é bom assusta, porque me faz avançar demais em cima de uma área onde a reação não é mais a ação de danos morais, com a milícia o assunto é outro.
Ponte – Como cobrir segurança pública de uma maneira mais segura?
Chico – Difícil, muito difícil. A melhor forma foi como eu falei na mesa, que é a solidariedade, a mobilização, é não deixar que essa cobertura fique na mão de poucos. Quanto mais essa cobertura ficar na mão de muitos, mais protegido estaremos.
Ponte – Chico Mendes, Tim Lopes, Dorothy Stang. A morte de Marielle é diferente dos outros casos de repercussão pela dificuldade de chegar aos autores e pelo ódio que a vítima desperta em parte da sociedade. Por que você acha que isso acontece?
Chico – Porque tem uma máquina corrupta, né? Aqui no Rio de Janeiro, se você pegar os grandes crimes ligados à contravenção nenhum deles teve conclusão. Todos permaneceram impunes. É uma máquina viciada. Tivemos dificuldades no caso da irmã Dorothy, tentaram federalizar e não conseguiram, foi complicado. Mas aqui o problema é o nível de confiança que você deve ou não depositar na Polícia e no Ministério Público do Rio de Janeiro. Eu aqui faço uma ressalva que hoje o GAECO [Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado] é comandado pela promotora Simone Sibilio, que toca a investigação da Marielle junto com uma outra colega, que é a Letícia Emily, que são mulheres muito aguerridas, muito impressionante o trabalho corajoso e eficiente no enfrentamento que nunca foi feito dessa forma no Rio de Janeiro. Só a Marielle que permitiu esse tipo de ação. Pelo menos esse efeito benéfico, dentro da tragédia, esse crime trouxe: um enfrentamento nunca feito antes contra a milícia do estado.
Ponte – No fim da sua fala, você trouxe que ser repórter é a melhor coisa do mundo. Por quê?
Chico – Ah, eu acho. É uma adrenalina, né? Tem muita coisa que concorre para isso. Primeiro é esse poder transformador da sua reportagem. No caso Marielle, a publicação da entrevista com o Orlando Curicica derrubou toda a linha investigativa até ali. Olha a potência do jornalismo! Isso é estimulante, essa contribuição que a gente dá para a sociedade já seria o suficiente para responder a sua pergunta, mas para mim não é só isso. Eu acho que sou motivado pela curiosidade, nunca estou satisfeito e me encanta saber que amanhã já tem outra história me esperando. Para mim, a grande motivação do jornalismo é essa. Outro dia um colega meu estava brigando por espaço, tentando ganhar mais espaço no jornal impresso pra minha matéria. Aí passou um colega meu e falou: “Nossa Chico, você brigando por espaço? Você? Cabelo branco? Parece foca [jornalista iniciante]!”. Aí depois eu sentei e pensei: pô, eu quero ser foca pra sempre. Se isso é ser foca eu não quero deixar de ser foca.
Ponte – Agora uma pergunta que você pode responder ou não. Como você viu o episódio em que o presidente Jair Bolsonaro usou o seu nome para atacar a sua filha?
Chico – Covardia. Eu vou te falar… sabe que eu sempre respeitei o Bolsonaro? O Bolsonaro uma vez foi na redação… na época eu estava em uma linha de trabalho focada para os crimes da ditadura militar e tinha, entre outras coisas, o Araguaia. E eu sabia que um dos capitães lá nas ações tinha sido Lício Maciel, esse cara tem um tiro, um buraco, no rosto porque levou um tiro de uma guerrilheira. Matou e abusou, mas era um cara reservado. Nunca ninguém tinha conseguido falar com ele. O Bolsonaro levou esse cara na redação para falar comigo. O Bolsonaro me ajudou a investigar os crimes da ditadura militar.
Eu acho que não temos que ter paixão, não temos que odiar os personagens das nossas matérias nem amar os personagens das nossas matérias. Tem que ter um certo distanciamento e respeito. E o que mais me chateou foi que ele não soube honrar esse respeito que eu sempre tive por ele, desde os tempos de deputado federal quando a gente tomava café perto do Palácio Duque de Caxias. Eu sempre respeitei, sempre ouvi, sempre acolhi as pautas e provocações que ele me fazia e agora ele me vem com uma dessa? Pelo amor de deus. É lamentável.
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