Para Ministério Público, policiais que mataram jovens, em 2022, agiram por “motivo torpe”, ao considerar que jovens da favela eram criminosos e que suas vidas não tinham valor. “Não vai trazer meu filho de volta, mas a Justiça está sendo feita”, diz mãe de vítima
Três policiais militares foram denunciados pela Chacina da Gamboa, ocorrida em 1º de março de 2022, no Solar do Unhão, em Salvador (BA). Na ocasião, Alexandre Santos dos Reis, 20 anos, Cléverson Guimarães Cruz, 22, e Patrick Sousa Sapucaia, 16, foram executados pelos PMs, conforme a denúncia apresentada pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA). Os policiais foram afastados do trabalho por 180 dias.
A denúncia, oferecida pelo MPBA em outubro, foi acatada pela juíza Andrea Teixeira Lima Sermento Netto, da 2ª Vara de Júri da Comarca de Salvador, no último dia 17. Com a decisão, os PMs Tárcio Oliveira Nascimento, Thiago Leon Pereira Santos e Lucas dos Anjos Bacelar Dias tornaram-se réus por homicídio qualificado, abuso de autoridade e adulteração da cena do crime.
Um quarto policial, Marinelson Mendes Alves da Cruz, não foi incluído na acusação de homicídio, mas se tornou réu por ter supostamente ajudado a alterar a cena do crime, dentro do que prevê a Lei de Abuso de Autoridade.
Os três denunciados pelos homicídios seguiam trabalhando na Companhia Independente de Policiamento Tático (CIPT). Além do afastamento, eles foram proibidos de circularem no bairro onde crime ocorreu e de se aproximarem de testemunhas e vítimas até o fim do processo.
Com base nos laudos periciais, o promotor Fernando Lucas Carvalho Villar De Souza, da 3ª Promotoria de Justiça do Júri, e os promotores do Grupo de Atuação Especial Operacional de Segurança Pública (GEOSP) Aline Cotrim Chadomeira, Fernanda Fresgrave Bruzdzensky, Pablo Almeida e Tiago Ávila de Souza, descreveram que as execuções foram cometidas por motivo torpe, partindo da presunção de que os jovens seriam criminosas, sem provas que justificassem isso.
“Pelo exposto, verifica-se que o delito de homicídio sob comento, praticado pelos denunciados contra as vítimas Cléverson, Alexandre e Patrick foi cometido por motivo torpe, pelo fato de os policiais presumirem que todas as vítimas seriam criminosos da localidade de Gamboa de Baixo e que poderiam agir ofensivamente para matá-los, diante do desvalor de suas vidas, mesmo sem que houvesse qualquer reação armada ou resistência”, escreveram os promotores.
Silvana dos Santos, 49, mãe de Alexandre, ficou na mira de uma arma de fogo ao pedir para socorrer o filho, no dia da chacina. Feliz com o andamento do processo, ela espera ansiosa poder encontrar os algozes no dia do julgamento.
“Eu estive frente a frente com eles quando eles tiraram a vida do meu filho. Hoje, como nunca, vai ser uma satisfação ficar de frente com eles. Vai ser gratificante para mim poder mostrar que eu, como muitas mães, estamos vencendo uma batalha. Não venci a guerra ainda, mas venci uma batalha”, fala Silvana.
“Até meu choro hoje é de felicidade, de gratidão a Deus”, diz a mãe. Ela vê a denúncia como um primeiro passo para obter uma resposta do Estado sobre a violência contra o jovem. “Não vai trazer meu filho de volta, mas a Justiça está sendo feita”.
“Eu não vou ver meu filho nunca mais na minha vida. Não vou poder dizer que amo ele todos os dias como eu fazia, mas a Justiça foi feita e será ainda mais quando eu me encontrar com eles [policiais] e perguntar porque eles tiraram a vida de meu filho à toa”, afirma.
Wagner Moreira, advogado e coordenador do Ideas Assessoria Popular, entidade que acompanhou o caso, avalia que a tese de motivo torpe ajuda a explicitar a lógica do racismo estrutural.
Para Wagner, a denúncia está “associando duas premissas: a de criminalização do território (‘presumirem que todas as vítimas seriam criminosos da localidade de Gamboa’) e o de racismo (‘ diante do desvalor de suas vidas’)”.
“No Brasil a lógica que autoriza o extermínio do ‘outro’ é o racismo estrutural. O corpo negro é visto como de hierarquia inferior, e com menos resguardo juridico/institucional. Não se imagina que ao matar um “corpo branco” no seu habitat natural (um bairro de classe média ou alta) esse crime vai ficar sem investigação. Mas essa é a regra dos territórios negros em Salvador e no Brasil, como um todo”, diz o ativista.
Perseguição e execução
Para os promotores, os laudos periciais desmentem a versão dos policiais de que houve confronto com os jovens. Conforme a denúncia, os jovens estavam em uma festa na comunidade quando os policiais chegaram ao local e iniciaram uma perseguição.
Os policiais alegaram que, em meio a um confronto, mataram os três em uma casa abandonada. A história, contudo, é desmentida pelo MP, que aponta que Alexandre e Patrick foram mortos fora do imóvel e, já feridos, colocados dentro da casa.
Cléverson também foi perseguido e acabou morto em um dos cômodos da casa. Foi Thiago, conforme aponta o MP, quem atirou com uma submetralhadora por duas vezes contra o jovem. Um laudo pericial constatou que o sangue no local era da vítima e que os projéteis disparados eram do PM.
A perícia também desmentiu a versão narrada pelo PM Tárcio. Segundo o Ministério Público, partiram da arma dele os tiros contra Alexandre. O PM afirmou em depoimento que o jovem estava na casa no momento em que foi ferido, o que foi desmentido pelo laudo pericial.
A apuração também constatou que Patrick foi morto com dois tiros. Isso ocorreu fora da casa, já que o sangue dele foi encontrado na escadaria próxima ao imóvel, o que enfraqueceu a versão do PM Lucas, que atirou contra o adolescente.
A denúncia destaca ainda que os PMs não se amedrontaram diante da presença da comunidade e de familiares que chegaram ao local após escutarem os gritos e barulhos de tiros.
Os policiais tentaram limpar o local das execuções com baldes e vassouras dos moradores da comunidade, descreveu a denúncia. Só após tentar mascarar o crime é que o grupo teria levado os corpos dos jovens para o Hospital Geral do Estado. Todas chegaram lá mortos.
Na denúncia, os promotores destacaram que a conduta de socorrer mortos é praxe na segurança pública e busca falsificar uma excludente de ilicitude, que poderia inocentar os PMs.
“No entanto, essa versão comumente utilizada pelos agentes de segurança pública para embasar causa excludente de ilicitude de legítima defesa, não encontra respaldo na prova testemunhal e pericial acostada ao apuratório”, diz o texto.
Os promotores destacam ainda a tentativa de forjar um confronto feito pelos policiais. As armas apreendidas no local, que segundo a versão policial teriam sido usadas no confronto, nem funcionavam direito, conforme laudo pericial. Uma pistola estava com carregador não compatível para o uso, o que impossibilita disparo. Outro ponto é que não havia resíduo de pólvora nas mãos dos três jovens.
O MP também destacou que, mesmo na hipótese de confronto, os jovens estariam em desvantagem, já que as armas supostamente em suas posses estavam com problemas e os PMs estavam cada um com uma submetralhadora e uma pistola.
Crise na segurança
A chacina da Gamboa foi um episódio emblemático de violência, mas não é um caso isolado na Bahia. O estado governado pelo PT há 16 anos é o segundo mais violento do Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
A Bahia também é o estado em que a polícia mais mata no Brasil e os alvos são principalmente negros. Das 1.465 vítimas, 94,76% eram negras, considerando somente as que tiveram cor ou raça identificadas.
A resposta do governo estadual e federal à crise tem sido de mais dinheiro para a polícia sem que essa seja reformulada, o que não traz resultados efetivos, conforme análise de especialistas consultados pela Ponte. Enquanto isso, as mortes aumentam. Em setembro deste ano, mais de 80 pessoas foram mortas em ações policiais no estado.
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), o governo do Estado e a Polícia Militar baiana para comentar o caso, mas não houve retorno. A defesa dos PMs denunciados não foi localizada.