Coluna Abolição | Outros pactos: quando o true crime pede necropolítica

Mobilização gerada por séries como “Pacto Brutal” faz defesa da tortura e produz erosão da democracia

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

Deus me proteja de mim
E da maldade de gente boa
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde
Ilumine e zele assim

(Chico César)

Favela de Acari, 1990. 11 jovens foram assassinados por um grupo de extermínio. Nunca houve julgamento. Os corpos jamais foram encontrados. 

Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), 1992. 111 presos foram assassinados pela polícia. Ninguém foi definitivamente condenado. Até hoje, a maioria das famílias não foi indenizada. Recentemente, surgiu projeto de lei para anistiar os policiais envolvidos. 

Eu poderia ficar indefinidamente fazendo uma lista de histórias de famílias que perderam seus filhos (pais, irmãos, amigos) de maneira brutal e repugnante. Mais especificamente, uma lista de famílias que, ao saberem do assassinato de seus filhos, não contaram nem com o sistema de justiça criminal, nem com a grande mídia, nem com a indignação e o acolhimento da sociedade civil. 

Nesta lista não entraria a renomada autora de novelas Glória Perez. Em que pese que sua filha tenha sido assassinada de maneira também brutal e repugnante, no ano de 1992, Glória viu os assassinos de Daniela serem processados, condenados e presos. Viu também a sociedade civil, e em seguida, o parlamento, mobilizados para aprovar um projeto de lei que exacerbou a pena do tipo de crime cometido contra sua filha. Por fim, o sentido hegemônico da leitura midiática sobre o caso foi solidário a Glória, e entrou para a história como era justo contar: a trajetória de uma jovem e promissora atriz, vítima de um crime atroz.

Certamente, há uma dimensão irreparável na perda de um filho ou filha. Pode-se dizer, aliás, que o irreparável é a maior dimensão do acontecimento e que ele se perpetua no tempo. Dentro do que é possível, no entanto, houve reparação no caso de Daniela, especialmente se olhamos para a maneira diametralmente oposta como são tratados casos como os de Acari e do Carandiru.

Dessa maneira, foi com certa estranheza que recebi a notícia sobre uma série, no formato true crime, sobre o caso Perez. A justificativa que aponta para uma reparação à reputação da vítima, simplesmente, não convence. Isso porque não há difamação à Daniela que tenha sobrevivido 30 anos depois do crime. Nenhum portal, nenhum jornal, nenhum livro conta a história do crime difamando Daniela. Aliás, quando um dos assassinos ameaçou publicar um livro com conteúdo difamatório sobre a vítima, a justiça brasileira acolheu, mais uma vez, a dor de Gloria Perez, e proibiu o livro. Tudo que era possível entregar, a justiça brasileira entregou a Glória. Ela é uma exceção no oceano de mães que perdem seus filhos de forma violenta e que, a depender do que provoca a maioria dos produtos culturais no formato true crime, assim permanecerá.

Quero desde já me desfazer do argumento de que não se pode questionar uma mãe enlutada pela perda violenta de um filho. Recordo vivamente da parlamentar Keiko Ota (PSB-SP), de pé na tribuna da Câmara de Deputados, com a foto do filho assassinado estampada na camiseta, e clamando por redução da maioridade penal, lá pelos idos de 2015. Keiko, propositalmente, dava a entender à audiência que a morte do seu filho tinha alguma coisa a ver com violências fatais cometidas por pessoas menores de 18 anos. Nada mais falso. A criança foi sequestrada e assassinada por policiais que faziam bico de segurança privada nos estabelecimentos comerciais da família da deputada. Felizmente, ela foi questionada.

Estamos em 2022, e a discussão legislativa da vez é o PL 6579/2013, já aprovado na Câmara dos Deputados, que praticamente põe fim às saídas temporárias de pessoas privadas de liberdade e que já estão em regime semiaberto. Essa pauta de degradação das condições de cumprimento da pena de prisão foi, durante décadas, mobilizada por meio de casos extremamente midiatizados (Jabotá, Ritchtofen, etc).

Em todas essas circunstâncias, gracejam mentiras como, por exemplo, o percentual de cometimento de novos crimes de pessoas em situação de saída temporária. Essa medição simplesmente não existe. Seja porque a administração penitenciária é feita em âmbito estadual e cada estado tem uma realidade diferente, seja porque não há pesquisa metodologicamente sustentável que obedeça ao critério básico da reincidência, que só pode ser considerada após uma segunda condenação, e não porque foi feito um boletim de ocorrência. 

E aí vem a onda de true crime (essa narrativa midiática de crimes baseada em casos já julgados), cujo efeito – até mesmo quem não é autor de novela e não vive de audiência sabe – é produzir ondas de indignação que alavancam o engajamento do produto cultural. Nada novo no front, disso já viviam o Você Decide, o Linha Direta, e tantos outros formatos para a TV desde o século passado. Disso vivem os podcasts e séries atuais, como Pacto Brutal, que explorou o caso Daniela Perez. 

As ondas de indignação decorrentes são, invariavelmente, formuladas em favor da pena de morte e/ou de prisão perpétua, duas formas de sofrimento decorrentes da prática de crimes que são inconstitucionais. Porém, como diz o ditado, água mole, pedra dura, tanto bate que a Constituição fura. Parece ser essa a finalidade de tanta insistência, como demonstra hoje a tramitação pelo fim das saídas temporárias de presos e presas no regime semiaberto, que foi, ano após ano, agitada a partir de “crimes famosos”.

Nos últimos anos, outra trajetória que me vem à mente quando penso na relação entre famílias enlutadas por causa de crimes terríveis, é a de Ari Friedenbach, pai de Liana, um caso também muito midiatizado. Ari foi do brutal assassinato da filha por um menor de 18 anos à esperada defesa da redução da maioridade penal que o elegeu parlamentar. Anos depois, ele se convenceu que a redução era um equívoco, assim como deixou de usar a camiseta com a foto da filha estampada. Existem muitas formas de lidar com o luto, inclusive, com o mesmo luto, e nem todas elas passam pela agitação política em favor do populismo penal que achata a nossa democracia já tão reduzida nos últimos anos. 

Mas quero, por fim, voltar às mães indignas de luto. Àquelas que não tiveram processo, julgamento, pena, indenização, nem roteirista de true crime interessado em suas dores. Quero voltar às mães de Acari, do Carandiru, de Maio, e centenas de outras para as quais não se desperta a solidariedade que se destina a Gloria Perez. É aqui que um pacto perverso se fecha sob aplausos também de setores ditos progressistas ou de esquerda. Os assassinatos brutais dos filhos dessas mulheres são arquivados e protelados indefinidamente nos trâmites da justiça porque, após a morte, eles foram chamados de bandidos, traficantes, monstros, sangue ruim, criminosos.

Toda vez que um true crime como Pacto Brutal vem à tona, não é a vida do assassino da atriz, que já cumpriu pena, que está em jogo. Aliás, salvo engano, ele apenas se tornou mais famoso. São as vidas de todas essas famílias que tiveram seus filhos executados porque, dentre outras coisas, é isso que a sociedade brasileira autoriza, mesmo quando supostamente se dirige “apenas” ao assassino de Daniela. São as mães de Vigário Geral, do Jacarezinho, do Cabula, que veem desaparecer qualquer possibilidade mínima de reparação pelo assassinato dos seus filhos enquanto a sociedade civil vocifera o que “merece” acontecer com… “bandido”. 

A relação aqui precisa ficar clara: o que se mobiliza a partir de um true crime como Pacto Brutal, ou seja, a partir da necessidade de reparação à família de uma vítima que, supostamente, não teria sido ainda alcançada (e foi, por todos os meios jurídicos e políticos possíveis) está diretamente ligado ao que impossibilita a reparação para mães que têm seus filhos assassinados sob a etiqueta de bandidos. Quando se brada que uma pena já cumprida deveria ser renovada, que uma lei nova deveria dificultar a progressão de pena, que a pena de morte deveria ser aceita no ordenamento jurídico, que a prisão perpétua é a solução, primeiro é preciso deixar claro que isso é a defesa, consciente ou não, de tortura. Segundo, é a erosão de pressupostos democráticos que estão especialmente frágeis neste momento histórico. Terceiro, e mais importante, o que se está demandando é necropolítica, não justiça.

E, por necropolítica, aqui chamo a atenção para as mil mortes em vida, as mutilações, a condição permanente de “estar da dor” de que trata Achille Mbembe e que transforma a existência de pessoas em mortos-vivos. Falo das mães que vagam entre os IMLs e as delegacias em busca de informações sobre seus filhos mortos e que, algumas, jamais poderão enterrar. É preciso que se diga que o corpo matável, o corpo torturável, o corpo desaparecido dos filhos dessas mães é uma possibilidade sempre atualizada quando se abre a boca para dizer o que deveríamos fazer ou ter feito com o assassino de Daniela Perez. 

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É preciso, urgentemente, desfazer esse pacto necropolítico que entrega toda reparação possível de um lado, mas somente ao mesmo tempo — e na medida — em que nega, retira, bloqueia e esquece de outro.

* Aline Passos é mãe de Benjamin, sergipana, doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. Professora de Direito Penal e Processo Penal. Pesquisa gestão privada de unidades carcerárias.

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